Diário da Peste,
1 de abril de 2020
Quase todas as lojas fechadas, menos alimentação, farmácia e outras vendas básicas.
Estado de emergência.
Em certos países, lojas de flores abertas.
As emergências precisam de flores.
Mas zero de beleza: as flores são para os mortos.
Os que já não vêem nem cheiram.
Os mortos já não podem ser contagiados pelo amor dos vivos, diz alguém.
Não te esqueças da beleza, nunca - diz outro amigo, de barba descalabrada, camisa torta.
Nos funerais as flores não são estéticas, mas úteis.
Não são bonitas, funcionam.
Eu sou um humano, diziam cartazes que alguns negros nos anos 60 do século XX traziam pendurados ao pescoço.
Imaginar milhares de pessoas na rua com esse cartaz em 2020.
Eu sou um humano.
“Estados Unidos atingem um novo recorde de vítimas mortais. Mortos ultrapassam os provocados pelo 11 de setembro.”
Do outro lado da janela, contam-me que um vizinho tem a Bíblia na mão ou a Bíblia tem na mão o vizinho.
Porque ele diz, esse vizinho, falando para a bíblia: estou na tua mão!
Por vezes lê alto.
“Jerusalém, tem coragem. Aquele que te deu um nome, consolar-te-á.”
"Crianças vítimas de maus tratos deixaram de receber visitas de rotina da segurança social "
“Risco de fuga ou abuso aumenta nas casas de acolhimento."
“Compra de carros caiu mais de 50% em março.”
Uma expressão síntese para a morte: acabaram-se os trabalhos.
"A paixão pelos objectos de consumo deve ser substituída pela paixão pelos assuntos comuns."
Cornelius Castoriadis, entrevista antiga.
Assuntos comuns.
Pela primeira vez, no mapa do mundo: de baixo acima, da esquerda à direita, um assunto comum.
A informação como objecto de famintos.
Um consumo ansioso, quantos mortos?
O que fazer?
Cuidados com os pés, com os sapatos, com as calças, com a camisa, com a saia, com a roupa, com as meias, com as luvas, com as mãos, com a boca, com os olhos e o cabelo.
O crocodilo pode estar muitos meses sem comer.
“Rússia enviou carregamento médico para os Estados Unidos.”
De repente, a consciência das mãos.
Elas existem muito mais desde há umas semanas.
Somos todos artesãos.
O cuidado com as mãos a tocar nas coisas.
Um artesão diante de legumes, lavá-los, desinfectá-los.
Atenção dirigida às coisas.
Todas as coisas brilham, por vezes com um brilho perigoso.
Tudo está a existir com mais força.
Os alimentos e os objectos.
A higiene em relação às coisas e ao próprio corpo.
O corpo tornado sagrado de novo.
Aquilo que tem de ser protegido.
Tenho uma colecção a que chamo cidade do mundo.
Miniaturas de casas e edifícios de diferentes cidades.
Está empacotada.
Imaginar que se pudesse empacotar o mundo, como nas mudanças de casa.
Guardar no armazém.
Para grande parte das pessoas, o exterior está guardado num armazém
Um verso: “Aguardo Deus com gula”.
Rimbaud e a sífilis em redor.
As doenças mudam de nome, talvez seja um disfarce.
Um amigo de Espanha, tradutor, diz-me que tem um amigo nos cuidados intensivos.
Tem 51 anos e nenhuma doença associada.
Os discursos, pôr as mãos nos ouvidos.
"Certos espíritos são comboios tão rápidos que não temos tempo de ver que estão vazios."
É preciso fazer parar o comboio.
Com uma meia na boca, aparece a Roma.
Pastora de objetos perdidos.
A Jeri vê, maravilhada, aquilo que há cinco minutos viu, maravilhada.
Está fascinada com as sombras.
Aperto o casaco, chove demasiado.
Por vezes, mesmo o exército cercado fica feliz por não poder sair.
Aprender a perder, um dia e depois outro.
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