Diário da Peste,
27 de março
Levanto os calcanhares, depois a ponta dos pés.
Um jogo de futebol Grémio-Flamengo.
"Páre de viver com dores nas articulações", televendas na televisão.
Carrego num botão.
Oração do Papa pela humanidade, canal 1.
A Praça do Vaticano vazia.
O Papa fala para um enorme espaço vazio.
Ouço em muitas casas pessoas a ajoelharem-se.
Há coisas que se conseguem ouvir em determinadas alturas e noutras não.
Nestes dias ouve-se tudo.
Até o barulho de alguém a curvar-se a muitos quilómetros de distância.
Os sinos tocam na basílica de São Pedro.
A arte de tocar sinos, uma arte das mãos, do controlo da força.
Sinos que não aceitam ser tocados por mecanismos.
Sinos de metal humano.
Mas nestes dias por vezes têm sido as máquinas a ficar no seu posto, a cumprir a sua missão, sem medo.
É preciso por vezes homenagear as máquinas.
Elas ficam.
Alguém me diz que não havia ninguém para tocar os sinos.
Só as máquinas.
Auden: “… sofrem, não fazem outra coisa."
Não falava das máquinas.
Desenhos animados, canal 2.
Programas da tarde: que lhe parece tudo isto? Pergunta alguém a alguém.
Não sei de que falavam, mas um deles responde e o outro ouve.
Canais de informação: um, dois, três, quatro, cinco. Páro de contar.
Bérgamo, cidade terrivelmente atingida.
Ajudem-nos, diz o director de um hospital em Bérgamo.
Uma adolescente de 13 anos morre em França.
A indústria de luxo francesa de perfumes produz álcool protector.
Não há melhor cheiro que o cheiro de um humano vivo.
Quatro enfermeiros elevam um corpo à porta do hospital e transportam-no apoiado nos ombros - um doente, está vivo.
Nos Estados Unidos há milhares e milhares de infectados.
Camionistas a avançar numa Europa deserta.
Um programa sobre cães que não podem ir para nenhuma casa porque não têm ainda os papéis em ordem para serem adoptados.
Cães com problemas mentais, falta de companhia.
Cães com cotovelos partidos, radiografias de patas de cães.
Depois de vermos tantas radiografias de pulmões fica estranho vermos radiografias de patas ou de pernas.
Nestes dias, parece que o corpo humano só tem pulmões.
Assustamo-nos com a presença do resto do corpo.
Parece uma invasão. Um insulto.
Televisão, canal abaixo.
Um programa que se chama ilha do amor, em que homens e mulheres cobertos de tatuagens e em fato de banho fingem cuidar de uma criança que afinal é um boneco.
O boneco, que imita um bebé, chora e julgo que cada casal bem musculado recebe pontos pelo tratamento que dão ao bebé boneco.
Covid 19, dúvidas num canal: como dar banho e ao mesmo tempo guardar distância em relação a alguém que esteja infectado e seja incapaz de se mover.
50 idosos vão de um lar para um hotel.
Aí vem Everton, vamos ver o que faz. O relato do Grémio-Flamengo.
Jogo gravado a passar num canal.
Não vi o que Everton fez.
Levanto-me para ir buscar uma maçã.
Uma faca, uma maçã, uma aura negra em volta.
É preciso comer.
Uma menina, em Itália, sopra numa maçã como se estivesse a apagar as velas de um bolo, sopra para afugentar o vírus.
Há um ritual.
Comer uma maçã torna-se simbolicamente um aniversário.
Os aniversários passam a ser diários.
Auden: "Aqui a guerra é impotente como um monumento"
Um amigo manda-me um sms, pergunta-me pelo meu anjo, o anjo de pano.
Respondo que não o vejo há dias. Que o perdi de vista.
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