Opinião

Diário da Peste. NASA cancela pesquisas na lua

Diário da Peste
23 de Março de 2020

NASA cancela pesquisas na lua.
Matteo come uma garfada de pasta junto à janela que dá para a rua Vittorio De Sica.
Sica foi o cineasta de “Ladrões de bicicletas”.
Na Lombardia uma mulher grita pelo nome de Paolo.
Um doente num hospital de Lombardia vê o rosto da mulher e do irmão num ipad bem levantado no ar pelas luvas brancas do médico.
O hotel Marriott é transformado num hospital de campanha.
Quartos de luxo são agora quartos para dez pessoas.
O espaço todo usado, distribuído entre máquinas, doentes e médicos.
Uma nova agricultura urgente semeia doentes e ventiladores.
O presidente da Associação dos reformados diz para as gerações jovens não se esquecerem deles neste momento.
Para não se esquecerem dos pais e dos avós.
Uma menina ao meu lado chora.
Um ministro fala sobre medidas - peso e fita métrica para o que não vê.
Andreotti, sessenta anos, de máscara na cara, passeia um cão muito pequeno com uma correia longa.
186 mortos em França.
A minha cadela pastora belga chama-se Roma.
Roma está intacta e viva; e balança a cauda.
Ela levanta-se, parece um urso preto.
Dou um abraço a Roma.
Roma não chora, mas não está contente.
Digo-lhe: Roma não chora.
Termómetro, temperatura 37,2.
Um jogo de bolsa individual.
Sobe, desce. A temperatura.
Dizem que as valas dos mortos no Irão podem ser vistas do espaço.
A muralha da china, as valas comuns.
Depende das alturas.
A que altura tens coragem para subir e ver.
37,3 de temperatura.
Temperatura de cada país, temperatura biológica e não exterior.
O humano 2 está com febre altíssima.
O humano 3 joga na consola o jogo mais antigo: bater bolas contra a parede.
Os jogos desportivos suspensos.
Há um placard macabro que anuncia um único número que já não tem adversário.
Um único número por país.
Irão: 127.
Roma tem sede, ponho água na malga.
A mão treme, a pata não.
O fim do mundo sempre foi anunciado em forma de estatística.
Karl Pearson em 1901 “fundou o jornal Biometrika”.
O século começa quando é necessário tirar a medida das coisas.
Medir as verticais, as horizontais, o tamanho dos pés, do nariz, do coração.
Os grandes números encostam-se ao início dos séculos.
Martha diz que a avó está bem, mas que mal desliga o telefone começa a chorar.
Em 2020 começa outro século.
Martha diz que consegue ouvir a avó chorar mesmo depois dela desligar o telefone.
Isso não é possível, digo.
Isso é possível, diz.
Notícias com dois dias:
“Economia italiana com forte queda no primeiro semestre”
“África com mais de 900 casos em 38 países e territórios”
“Quatro farmácias fechadas devido a infeção de profissionais”
Diretor geral da OMS avisa jovens: "Não são invencíveis" e podem" passar semanas num hospital ou até morrer".
Giotto tem vinte anos e pára quando ouve isto.
Imagino no altifalante a frase repetida vezes sem conta: não és invencível.
“Estados Unidos cancelam emissões de vistos de entrada”
Nas cidades italianas, altifalantes onde se escuta: não és invencível.
Céline conta que, no meio dos bombardeamentos a Berlim, uma mulher louca gritava, ao ouvido das pessoas que passavam, o som da bomba, bruuummmm.
O som de uma coisa que mata sem fazer barulho.
“Standard & Poor’s desce ‘rating’ da TAP”
“Autoridades de Jacarta declaram estado de emergência.”
O som de um vírus.
“Transportes públicos de São Paulo podem ser vedados a maiores de 60 anos em hora de ponta”.
462 mortos em Espanha.
Roma bebe água na tigela, parece estar sedenta ou então está a transformar-se num camelo: bebe para os futuros dias difíceis.
Os fins do século e os grandes números.
As catástrofes têm a ver com estatística e não com a pessoa que está ao teu lado a ver a estatística.
“Sinto falta de tv”, diz uma personagem de Forster Wallace.
“Aprendeste a ir embora” diz outra personagem de Wallace.
601 mortos em Itália.
Dizem que até as mais pequenas partículas, como os vírus, os átomos etc. fazem som, emitem som quando batem nas coisas.
O som do vírus.
Imaginar especialistas na rua a detectar o som do vírus.
Uma forma de o matar, primeiro: saber a sua música.
601, 601, 601 os mortos nas últimas 24 horas em Itália.
Olho pela janela, tudo vazio: em cima, em baixo, ao longe.
Um verso de Neruda.
“Andando por um caminho/ encontrei o ar”.
Uma mulher italiana diz que a europa abandonou a Itália.
Desligo a televisão.

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