Opinião

Diário da Peste. A sala Tchaikovsky em Moscovo 

Diário da Peste,
26 de março

A sala Tchaikovsky em Moscovo está vazia há vários dias.
O Papa Francisco deu negativo no teste de Coronavírus.
Imagino em algumas igrejas as gravações da missa voltarem ao latim.
É preciso voltar atrás.
Na Europa as pessoas vão deixando a sua Língua à porta, no lado de fora.
Abdicam da sua Língua anterior e começam a falar outra.
O latim é uma hipótese.
Também podemos gritar.
Mulher de noventa e seis anos recuperou e tenho a certeza que prometeu que não vai morrer.
Na sala Tchaikovsky em Moscovo vão certamente ter de deslocar o piano do palco.
Na casa ao lado, Manu Chao: Me gustan los aviones, me gustas tú.
Me gusta viajar, me gustas tú.
Pode a cabeça estar assustada, os pés não.
Bolsonaro diz que as igrejas como os supermercados devem continuar abertas.
Militares desinfectam lar de idosos.
Há homens velhos em toda a Europa transportados em camionetas militares.
É preciso abrir a janela de vez em quando porque o ar quando pára fica pesado e sólido demais.
Parece que algumas festas inúteis foram canceladas.
Manu Chao: Me gusta marijuana, me gustas tú.
Rodo sobre os calcanhares para fingir muito movimento.
Nos jornais, diminuíram as páginas dos anúncios de encontros sexuais.
Todas as fotos de corpos excitados são antigas.
Temos dois meses para actualizar o importante.
Devia estar lá o aviso.
Dizem que a encomenda de produtos de beleza online aumentou muito.
Há notícias que aparecem na minha cabeça.
Moscovo encerra restaurantes, lojas e parques.
157 mortos no Irão.
Espanha ultrapassa os quatro mil mortos.
Ensino à minha cadela Roma a estar parada só a olhar.
Ela parece dizer-me: és parvo.
Elias Canetti: "tudo o que aprendo transformo em medo".
Aprender a esperar como se esperar fosse fazer uma coisa.
Abro on-line os jornais que explicam como desinfectar as botas que saem à rua.
Espanha 498, França 365, Irão 157, Itália 712.
"Homem executa rival com dois tiros em esplanada de bar".
As balas não estão obsoletas.
"A bolsa de Nova Iorque sobe".
Na revolução francesa muitos começaram a disparar contra os relógios.
Levanto-me da cadeira, tomo banho.
Um tiro na nuca de um relógio.
Um tiro no rosto de um relógio.
Jeri, a golden, tem olhos melancólicos.
Roma, a pastora belga, tem olhos estupefactos.
Está sempre espantada.
Sol lá fora.
"Não se esqueça de acertar os relógios. A hora muda já este domingo."
Os homens na rua têm agora olhos estupefactos.
Estamos todos espantados.
Imagino funcionários de um governo a começarem a disparar sobre os relógios públicos.
Uma bala em cheio para travar o tempo.
Como se o tempo fosse o animal a caçar.
"Maracanã vai converter-se em hospital para acolher doentes."
EUA 116, Alemanha 33, Portugal 17, Inglaterra 115.
Uma amiga ao telefone diz-me: preciso de disparar em alguém.
Falo-lhe da história dos relógios.
A geração dos humanos com os olhos estupefactos.
Uma nova geração dos humanos.
Os humanos espantados.
O século XXI partido em dois por um vírus.
Dois séculos tem este século.

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