Se listarmos os escritores britânicos desta era, quase com certeza que, nos primeiros lugares, colocaremos o nome de Julian Barnes. Tirando o Nobel, ganhou tudo o que de importante havia para ganhar – como o Booker, o Femina ou o Médici. Dele, este ano tivemos a reedição do seu primeiro romance, “O Papagaio de Flaubert”, com prefácio atualizado do autor, 40 anos depois. E, desde então, publicou uns vinte livros. Agora chega-nos às mãos um empreendimento bem diferente: um conjunto de ensaios curtos sob o título “Mudar de Ideias”, editado pela Quetzal (como os seus restantes livros). Trata-se de cinco pequenos textos escritos para palestras ou até programas de rádio, reflexões sobre a ideia de mudança, encarada a níveis vários.
Logo a abrir o livro, em ‘Memória’, Barnes alerta-nos para os processos subjacentes à modificação do pensamento, àquilo que está em causa quando simplesmente dizemos: “Eu mudei de ideias.” Opondo John Keynes - o economista para quem a opinião se altera à boleia dos factos - a Francis Picabia - o pintor e poeta que dizia: “As nossas cabeças são redondas para que as nossas ideias possam mudar de direção” -, Barnes investiga ambas as visões e conclui concordar mais com o último. “O amor, a paternidade, a morte dos que nos são próximos: estas questões reorientam as nossas vidas e frequentemente fazem-nos mudar de ideias. Apenas porque os factos mudaram? Não; porque certas áreas dos factos e dos sentimentos que até então nos eram desconhecidas se tornaram subitamente claras; porque a paisagem emocional se alterou”, diz-nos.
De seguida, ouvimo-lo falar sobre as mudanças na linguagem, logo a ele, que passou a vida a alimentar-se dela e a enriquecê-la, e que confessa acreditar “profundamente nas palavras, na capacidade que têm de representar o pensamento, definir a verdade e criar beleza”. Sem elas, na verdade, deixa de haver pensamento, e é por esta razão que o encolhimento das línguas - o facto de usarmos cada vez menos palavras - é tão perturbador. Mais à frente, justificará as suas reorientações políticas ao longo de 50 anos, olhará para os livros da sua vida sob a luz da releitura, refletirá sobre a idade e sobre o tempo, aqui acrescentando um parêntesis ao texto original publicado há uma década, no qual reconhece a dificuldade de admitir que a nossa personalidade é variável ao ponto de ter mudado de rumo algumas vezes. Com mínima certeza, observa Barnes, o que não mudou? A primazia do amor e da literatura como “o melhor sistema que temos para compreender o mundo”, a certeza “de que a morte leva ao esquecimento absoluto e eterno”, a noção de que a religião não passa de “uma fantasia reconfortante” e de que, dependendo do lado da cama para onde se levantar, pode ser um pessimista alegre ou um otimista melancólico.
Quando os grandes escritores largam a grande literatura tornam-se ainda maiores. Esta afirmação é quase sempre certeira, como aliás o prova um outro volume recém-lançado pela D. Quixote sob o título “As Cartas do Boom”. Abrir este livro é algo assim como, na infância, nos ser oferecido ‘aquele’ brinquedo ou jogo de que estávamos à espera e que não largaremos nos próximos dois meses. Contém a correspondência trocada entre Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, um “círculo de quatro” que hoje assumimos como o centro gravitacional de um núcleo de criação literária sem paralelo histórico na língua espanhola. O livro contém o que estes gigantes trocaram entre si em datas tão distantes como 1955 – ano do qual constam apenas as missivas entre Cortázar e Carlos Fuentes - e 2012, em que só uma foi escrita, de Fuentes para um García Márquez que celebrava os 85 anos. Com um apêndice que inclui, também ele, algumas peças únicas de artesanato literário, nomeadamente ensaios em que uns escrevem sobre a obra dos outros, e documentos de teor político, a maioria assinados pelos quatro, além de uma cronologia que permite aos leitores situar no tempo o desenrolar destas relações, as cartas em si são 207, arrumadas cronologicamente, mas também por temáticas. O resultado é uma obra que “é menos uma recompilação das cartas que uma grande narrativa na primeira pessoa que passa rapidamente do singular ao plural”.
Mas concentremo-nos no brinquedo, ao acaso. México, 25 de dezembro de 1965: García Márquez trata Fuentes por “mestre” e diz-lhe: “é importante que escrevas com frequência”, comunicando-lhe que o seu romance – “Cem Anos de Solidão” - avançava “a passo de tartaruga”, “pois tive de conceder meio dia às necessidades quotidianas e a alguns projetos de cinema para comer no próximo ano”. Em outubro de 1966, um ano antes da publicação da obra, o colombiano confessará a Vargas Llosa a incapacidade de fazer tais concessões: “A minha neurose vai mais longe. Quando não estou a escrever não consigo trabalhar em mais nada, ainda que a minha mulher e os meus filhos estejam a morrer à fome. Sento-me à máquina às nove da manhã e escrevo sem interrupção até às quatro da tarde. A essa hora, com a cabeça como um tambor, não tanto pelo cansaço mas pelo cigarro, almoço qualquer coisa e trato de dormir até às seis.”
Correndo o risco de vos cansar, não resisto a acrescentar outro fragmento, do mexicano Carlos Fuentes para Gabo, em 1969: “Digo-o sinceramente: penso muito em ti, tenho saudades, e mais neste país onde os amigos totais (da cabeça e do cuore) se contam pelos dedos das mãos. Muitas quedas, mestre; muita gente que em quatro anos engordou, ficou pateta, ficou sem piada (...). Mais do que crês, mais do que imaginas. Temos de defender o nosso circulozinho de gente que sabe trabalhar, querer e pensar: a dúzia de jívaros que se salvaram de que lhes reduzissem a cabeça. A vontade de trabalho e a pila fosforescente: não há garantias de juventude. Tenho dito.”
E só para não sair do âmbito geográfico, um livro de um outro grande escritor, o cubano Leonardo Padura, escrito em 2024 e agora publicado por cá pela Porto Editora. “Ir a Havana” é, segundo ele admite no prefácio, um livro que sempre quis escrever e que, na verdade, elaborava há mais de quarenta anos, no qual a cidade onde nasceu, se formou e viveu, e onde foi jornalista antes do escritor a tempo inteiro em que decidiu transformar-se – porque ambas as profissões não eram compatíveis -, se converte em personagem. Um “canto de amor” à Havana intemporal da infância, da juventude, da idade adulta, que se possui e à qual pertence como se pertence aos pais e aos filhos, “como uma bênção ou uma fatalidade irrevogáveis: como a água que nesta ilha nos rodeia por todos os lados”.
O volume divide-se em duas partes, uma de impressões citadinas de teor bastante livre que condensam 70 anos (Padura nasceu em 1955), outra de textos jornalísticos redigidos de 1980 até ao presente. Logo no primeiro, um feliz esclarecimento: “O jornalismo e a literatura foram duas formas expressivas de canalizar as minhas obsessões, que correram por carris tão próximos que mais de uma vez se tocaram, se contaminaram, e até se entrelaçaram. Fazer jornalismo e literatura têm sido, em muitos casos, duas vias concomitantes para escarafunchar na mesma realidade, conflito, história, para me apropriar delas, só que com a conveniente utilização dos recursos próprios de uma e outra escrita.” Padura deixou de ser repórter para escrever a maioria dos seus romances – e foi prolífico e amplamente premiado -, mas nunca deixou o jornalismo, nem se isentou de mexer na massa da realidade, tendo mantido colunas fixas em jornais como o “Folha de São Paulo” ou “El País”.
Naquela que é a Estante nº49 - quem ultrapassou esta barreira sabe como o número é, ao mesmo tempo, assustador e balsâmico -, fechamos com mais uma coleção de curtos ensaios, desta feita da autoria de Günther Anders, marido de Hannah Arendt. O livro, “Nós, Filhos de Eichmann”, começa com uma carta a Klaus, filho de Adolf – um dos filhos do nazi cujo julgamento em Jerusalém Arendt reportaria para a “The New Yorker” em 1961. “Nunca é fácil encontrar o tom e as palavras certas para os filhos que perderam os pais. Escrever-lhe a si, Klaus Eichmann, é-me porém especialmente difícil. Não por ser filho do seu pai, ou seja, ‘um Eichmann’; nem por eu, pelo contrário, ser um desses judeus que escaparam ao dispositivo do seu pai e ainda estão vivos apenas porque não lhes calhou terem sido assassinados. (...) Não, se me é tão difícil escrever-lhe, os motivos são outros. Desde logo, porque tremo perante o seu destino de ter de andar por aí a vida inteira como filho do seu pai. Mas, além disso, porque considero que a perda que o atormenta é pior do que a perda que atormenta outros filhos.”
Há reflexões que não têm, de facto, tempo ou lugar.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“Levarei o Fogo Comigo”, de Leïla Slimani (Alfaguara)
O fim muito esperado de uma trilogia composta por “O País dos Outros” e “Vejam como Dançamos”, entre Marrocos e França, que o “Le Monde” considera magistral.
“James”, de Percival Everett (Livros do Brasil)
Romance do autor norte-americano que acabou de receber o Pulitzer de ficção literária, naquilo que se apresenta como uma revisitação de “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain.
“O Amor nos Tempos do Cólera”, de Gabriel García Márquez (D. Quixote)
Está a ser reeditado e isso é sempre um acontecimento, ainda para mais incluindo o posfácio escrito por João de Melo em 1987, onde se diz que este é um “livro para viver”.
NÃO-FICÇÃO
“O Fim da Educação”, de António Carlos Cortez (Guerra & Paz)
Um libelo crítico do sistema educativo português da autoria do poeta e professor, no qual entre outras coisas se lê: “Aos estudantes em Portugal, do 1º ciclo ao Secundário, o que lhes é dado a viver nas escolas é da ordem da indigência.”
“Fernando Pessoa no Espelho de Celan”, de Claudia J. Fischer (Tinta-da-China)
Como Paul Celan traduziu ou recriou, em alemão, sete poemas de Pessoa? O livro dá-nos acesso a estas joias literárias ao mesmo tempo que nos disponibiliza a leitura de Pessoa feita por Celan em retroversão para o português. Tudo acompanhado pela análise e o olhar da autora, professora de Estudos Germanísticos na Universidade de Lisboa.
“Além da Pele”, de Silvia Federici (Orfeu Negro)
“Quase tudo, argumenta Federici, se ‘encerrou’ no capitalismo: não só a propriedade e a terra, mas também os nossos corpos, o nosso tempo, os nossos modelos de educação, a nossa saúde, as nossas relações, a nossa atenção, as nossas mentes”, escreve sobre este livro Jordan Kisner, na revista do “The New York Times”.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt