3 dezembro 2022 22:29

Paul Celan nasceu na Roménia, numa família judia que morreu no Holocausto
getty images
Esta integral dos poemas de Paul Celan, traduzida por Maria Teresa Dias Furtado, oferece à língua portuguesa mais uma oportunidade de interpretação
3 dezembro 2022 22:29
Em vez de obstáculos, paradoxos. Em vez de dizermos que os poemas de Paul Celan são proibitivamente obscuros, podemos observar que até o mais obscuro destes poemas tem um motivo ou tema detectáveis, que a deriva mais textualista é não só identificável, com esforço, mas até reconduzível à experiência do poeta (a obscuridade definida como “individuação radical”). Isto não significa menorizar as óbvias dificuldades. Há um grau de exigência em Celan que lembra Joyce, mas sem que haja um ‘primeiro Celan’, como há um ‘primeiro Joyce’. É um Joyce que só tivesse escrito “Ulisses” e “Finnegans Wake”, todo ele inventividade extraordinária e opacidade clamorosa. Ao mesmo tempo, importa notar que não estamos perante uma poesia meramente cerebral, muito menos aleatória, ainda que seja sofisticada e insólita. Raro é o poema, incluindo aqueles poemas que não ‘compreendemos’, que não tem um núcleo emocional, como rara é a alucinação verbal que não pareça agonizantemente pensada e trabalhada.
A comunicabilidade trágica é dominante no jovem Celan (então com 32 anos) de “Papoila e Memória” (1952), livro que recupera alguns poemas do renegado “A Areia das Urnas” (1948). Poesia de sobrevivente (o pai e a mãe, judeus, morreram nos campos de concentração), poesia da hipermnésia do sobrevivente, é além disso uma poesia da culpabilidade do sobrevivente. A linguagem alterna entre o bíblico, o lamentoso, o expressionista, o pós-surrealista, e a imagética mostra-se ominosa (caça, carrascos, olhos perfurados por espadas), com anáforas e fórmulas memoráveis. É deste livro o seu poema mais antologiado, “Fuga da Morte”, poema dos campos de extermínio, onde há uma Margarete de cabelos de ouro, uma Sulamita (como no Cântico dos Cânticos) de cabelos de cinza, a morte que é “um mestre da Alemanha”, e versos emblemáticos como os de leite negro da madrugada que se bebe ao entardecer, ao meio-dia e à noite.