Longevidade

“Há ainda um fechar de olhos por parte da sociedade”: mais de mil idosos por ano pedem apoio devido a situações de violência

“Há ainda um fechar de olhos por parte da sociedade”: mais de mil idosos por ano pedem apoio devido a situações de violência
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A maioria dos casos de violência contra pessoas mais velhas acontece no seio familiar. O “fechar de olhos” da sociedade para o problema, mas também a “desvalorização” generalizada das questões que afetam esta população contribuem para um cenário que preocupa. A propósito das estatísticas recentemente divulgadas pela APAV, que apoiou 1671 idosos no ano passado, o Expresso conversou com uma especialista da associação, para conhecer o que está por trás dos números

Uma em cada seis pessoas com 60 ou mais anos já sofreu alguma forma de abuso, estima a Organização Mundial da Saúde. Em Portugal, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) atendeu no ano passado 1671 pessoas idosas vítimas de crime e outras formas de violência.

Trata-se de uma ligeira subida face a 2022, ano em que foram apoiadas 1528 pessoas. A evolução tem revelado um “aumento relativamente constante nos últimos dez anos, bastante mais significativo a partir de 2019, em que se verificaram todos os anos sempre mais de mil pessoas idosas a pedirem apoio” à associação, retrata Marta Carmo, responsável do projeto Portugal Mais Velho, ao Expresso.

O número é “bastante significativo”, traduzindo-se numa média, nos últimos anos, de “mais de quatro pessoas” apoiadas por dia. Em 2023, as estatísticas mostram que a maioria das vítimas eram mulheres (76,8%), com uma média de idades de 76 anos. Quanto à relação com os agressores, a vítima é pai ou mãe em 32,2% dos casos e cônjuge em 22,1%.

Entre os crimes cometidos estão ameaça, coação ou burla, mas a violência doméstica tem sido precisamente o “mais frequente” – não só no ano passado, mas também nos anos anteriores. Salientando que “cada caso será um caso”, a jurista enumera alguns fatores de risco para situações de violência perpetrada pelos próprios filhos: coabitação, relações conflituosas, o nível de escolaridade de ambas as pessoas, problemas de saúde mental ou, quando há prestação de cuidados, a sobrecarga e desgaste físico e emocional do cuidador.

Desde janeiro registaram-se já 276 denúncias por violência doméstica contra pessoas acima dos 65 anos, indicou esta semana à Lusa a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, no âmbito da inauguração de duas novas estruturas residenciais destinadas a mulheres idosas vítimas, em Setúbal e Viseu, com 80 vagas.

Marta Carmo, jurista e gestora de projetos da APAV
APAV

Desvalorização e preconceitos

“No que diz respeito à violência contra pessoas idosas, há ainda um fechar de olhos por parte da sociedade em geral”, aponta Marta Carmo. A tendência é para “considerar estas questões como questões familiares”, sabendo-se que “a maioria dos casos” de violência contra os mais velhos “ocorre no seio familiar ou é cometido por pessoas muito próximas da vítima”. Também os profissionais de áreas como a saúde ou segurança estão “bastante mais preparados” para identificar fatores de risco e situações de violência contra crianças e jovens do que contra idosos.

Mas o problema é ainda mais profundo: existe uma “desvalorização generalizada” das questões que afetam a população em idade mais avançada. “Normalmente, quando se fala de pessoas idosas falamos de reformas, pensões e sistema de saúde. Acabamos por descurar todas as outras vertentes da vida e, por isso, também todas as outras necessidades. A questão da violência é um desses aspetos que ainda é bastante desvalorizado”, afirma a especialista.

Um contexto que, inevitavelmente, conduz ao conceito de idadismo – a discriminação com base na idade. “Temos, como sociedade, uma série de preconceitos relativamente ao envelhecimento e às pessoas idosas. Associamos o envelhecimento a tudo o que é mau, feio, pouco produtivo. Temos esses preconceitos ao nível individual também.”

Ideias pré-concebidas que “levam a uma série de comportamentos que têm muito que ver com a desvalorização da opinião” dos mais velhos, incluindo à “retirada muito precoce da sua autonomia e capacidade decisória”. “Isso depois leva a atropelos no exercício de direitos e que, muitas vezes, constituem forma de violência, pensando por exemplo na violência económico-financeira”, ilustra Marta Carmo.

Aposta na prevenção e sensibilização

Outro aspeto relevante é o facto de, ao longo da vida, a preparação para o envelhecimento não ser habitualmente um tema alvo de reflexão. “Ouvimos de vez em quando falar de preparação para a reforma. Mas a preparação para o envelhecimento deveria ser feita desde muito cedo, não só nesta ótica economicista, mas também numa ótica mais interior, no sentido de qual é o meu propósito”, defende a representante da APAV.

E tendo em conta que o avanço da idade “pode provocar a diminuição ou a perda de algumas capacidades”, é possível “precaver essas situações” quando se é mais jovem, nomeadamente através de mecanismos como o “mandato com vista ao acompanhamento”, em que se escolhe quem fica responsável por tomar decisões sobre a vida ou os bens quando o próprio estiver impossibilitado.

Ações de sensibilização dirigidas aos mais velhos sobre estes temas serão o foco da terceira fase do projeto Portugal Mais Velho, iniciativa conjunta da APAV e da Fundação Calouste Gulbenkian. O objetivo é “dar ferramentas e estratégias de prevenção, mas também de conhecimento acerca da violência e dos serviços de apoio que podem utilizar ou indicar a outras pessoas que necessitem”.

O trabalho começou em 2019: com o intuito de “perceber o panorama nacional” sobre o envelhecimento e a violência, foram ouvidos mais de 100 profissionais e idosos sobre estas áreas e desenvolvida pesquisa sobre políticas públicas, legislação e boas práticas. As conclusões e recomendações estão reunidas no relatório Portugal Mais Velho, publicado em 2020. Seguiu-se uma segunda fase do projeto, que terminou recentemente, dedicada à formação de mais de 800 cuidadores profissionais, nomeadamente de estruturas residenciais para idosos ou serviços de apoio domiciliário.

Lançado em 2022, Longevidade é um projeto do Expresso – com o apoio da Novartis – com a ambição de olhar para as políticas públicas na longevidade, discutindo os nossos comportamentos individuais e sociais com um objetivo: podermos todos viver melhor e por mais tempo.

Este projeto é apoiado por patrocinadores, sendo todo o conteúdo criado, editado e produzido pelo Expresso (ver Código de Conduta), sem interferência externa.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

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