Longevidade

Combater o idadismo: um desígnio global que já chegou ao nosso país

Combater o idadismo: um desígnio global que já chegou ao nosso país
Ilustração Sara Tarita

A discriminação em função da idade pode afetar qualquer pessoa, mas é mais frequente face aos mais velhos. A Organização Mundial da Saúde tem em curso uma campanha de combate ao idadismo. Em Portugal, há iniciativas da sociedade civil a trabalhar no mesmo sentido

A nível global, uma em cada duas pessoas tem atitudes discriminatórias em relação aos mais velhos e, na Europa, uma em cada três diz ter sido vítima de discriminação com base na idade. As conclusões são de um relatório sobre o idadismo – um conceito enraizado na sociedade, embora muitos não o conheçam –, publicado no ano passado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O idadismo inclui “estereótipos, preconceitos e discriminação direcionados às pessoas com base na sua idade” e pode ser “institucional, interpessoal, mas também contra si próprio”, explica ao Expresso a gerontóloga Lia Araújo. Apesar de ser “transversal a todas as idades”, sabe-se que “acontece sobretudo em relação às pessoas mais velhas”, acrescenta a investigadora do CINTESIS, onde integra o grupo AgeingC, focado no envelhecimento.

No âmbito da Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030), a OMS começou a desenvolver uma campanha global de combate ao idadismo e determinou três estratégias eficazes: as políticas públicas e a legislação, intervenções ao nível da educação e o contacto intergeracional. Em Portugal, servem como base de atuação às associações Stop Idadismo e Cabelos Brancos – iniciativas da sociedade civil na área da longevidade, que em comum têm o combate à discriminação em função da idade.

“Apesar de sermos um dos países mais envelhecidos do mundo – felizmente, porque significa que vivemos mais anos –, continua a haver um grande estigma em relação às pessoas mais velhas”, salienta José Carreira, fundador e presidente da Stop Idadismo. No entanto, “se perguntarmos na rua a qualquer pessoa o que é idadismo, as pessoas nunca ouviram falar”, acrescenta o também responsável das Obras Sociais de Viseu. “É uma forma de discriminação ainda bastante invisível.”

A diretora da Cabelos Brancos, Luísa Pinheiro, refere que a “maioria dos portugueses não sabe o que é o idadismo, os seus efeitos e quais as estratégias que se podem adotar para combater”, destacando ainda a falta de estudos sobre o tema em Portugal. O conceito de ageism surgiu em 1969 pelas mãos do psicólogo Robert Butler mas, já em 2011, a psicóloga social Sibila Marques escrevia que este é “um tópico muito pouco estudado no nosso país” (“Discriminação da Terceira Idade”, FFMS).

Esta realidade esteve na génese da criação das duas associações, além de ambos os fundadores já terem carreiras relacionadas com a área – José Carreira trabalha há vários anos no sector social, enquanto Luísa Pinheiro se tem dedicado às questões do envelhecimento enquanto socióloga.

Educar e formar

O movimento iberoamericano Stop Idadismo surgiu em Portugal em abril de 2021 e, em maio deste ano, transformou-se em associação. “Decidimos lançar este movimento para dar voz às pessoas mais velhas e chamar a atenção para esta forma de discriminação”, explica José Carreira. Tendo em conta a publicação do relatório da OMS e do estudo “Portugal Mais Velho”, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, o movimento nasce com o “grande objetivo” de chamar a atenção para uma situação que “prejudica gravemente a saúde física e mental, logo, o bem-estar social das pessoas que são vítimas e, no limite, traz também um alto preço económico para os Estados”.

Este ano, criaram um calendário para entregar a alunos do primeiro ciclo com uma ilustração de uma “família multicultural e multigeracional”, de forma a “alertar as crianças desde tenra idade para olharmos para os nossos familiares e vizinhos enquanto pessoas e não em função da sua idade”. A associação considera a educação uma área “fundamental” porque é nela que está “a base de tudo na nossa sociedade”, defendendo uma “linha de trabalho” sobre este tema ao longo de todos os ciclos escolares.

As atividades passam também pela participação em ações de sensibilização e workshops, por vezes a convite de municípios, além da dinamização e apoio de campanhas, por exemplo sobre os maus tratos a idosos ou quando a OMS planeava classificar a velhice como doença, algo que não chegou a acontecer, depois da pressão de vários grupos a nível internacional – naquela que seria, classifica José Carreira, uma “contradição” face ao trabalho da própria agência no combate ao idadismo.

Para o futuro, o objetivo é continuar a apostar na formação, não só nas escolas mas também dentro das organizações, com a criação de um selo anti-idadismo que distinga boas práticas. “Sabemos que, por exemplo, quando há reestruturações nas empresas, muitas vezes o que acontece é que são as pessoas mais velhas que são dispensadas. Sabemos também que na contratação, a partir de uma determinada idade, a pessoa está completamente fora de hipótese de ser contratada”, afirma José Carreira.

Envelhecer desde o nascimento

Depois de sentir que havia uma “grande lacuna” em Portugal, Luísa Pinheiro criou a Cabelos Brancos em 2015, juntamente com Ana Caçapo, “para que estas questões fossem trabalhadas a nível nacional”. Desde essa altura que organizam ações em escolas, não para falar sobre o “envelhecimento dos avós”, mas sobre o envelhecimento das próprias crianças. “Costumo dizer que nascemos para envelhecer e o envelhecimento biológico começa exatamente no dia em que nascemos.”

Para Luísa Pinheiro, estes temas “têm de se pensar desde muito cedo”, ou seja, não se trata apenas de algo que diz respeito às pessoas mais velhas, mas a todos, acrescentando que também os mais novos são “vítimas de idadismo”. É por isso que, além de atividades como workshops e tertúlias, procuram “promover a intergeracionalidade”. “As atividades intergeracionais são o que mais funciona para desmontar todos os estereótipos e ideias pré-concebidas que os mais novos têm sobre os mais velhos e os mais velhos sobre os mais novos”, defende.

Na visão da Cabelos Brancos, a questão do género também é importante: envelhecer enquanto mulher ou homem “tem um impacto muito diferente”, existindo uma “dupla discriminação” em “envelhecer na condição de mulher”. Há um ano organizaram, em conjunto com a Pantene, uma campanha que “alertava para o impacto do idadismo numa fase muito especial para a mulher, que é a menopausa”. Parte dos lucros de uma gama de produtos da marca reverteram para a associação desenvolver projetos focados nas mulheres.

Em setembro, a associação lançou a sua primeira coleção: t-shirts e sacos com “mensagens ativistas”, sob o mote “a vida sem prazos de validade”. “Pegamos noutras mensagens, como 'assume a tua idade'. As pessoas escondem a idade ou não gostam de a assumir e a verdade é que não revelar a idade é também uma forma de contribuir para esta cultura de antienvelhecimento, que está presente em toda a sociedade”, considera Luísa Pinheiro.

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Impactos sociais

O idadismo constitui “um dos obstáculos à participação social” de pessoas em idade mais avançada porque “muitas acreditam que já não têm idade para ir a determinados sítios ou para participar em determinadas atividades”, indica a gerontóloga Lia Araújo. Tal tem impacto não só nas próprias pessoas, mas também “consequências para toda a sociedade”.

O trabalho das associações “está a dar muita vitalidade e visibilidade a este tema”, mas é importante que este tipo de movimentos integre as pessoas de quem se fala. “Tem de ser uma causa de toda a sociedade, de todas as idades, mas tem de incluir obrigatoriamente as pessoas mais velhas. Se estamos a falar delas, não podemos falar por elas, algo que ainda acontece”, destaca a também professora da Escola Superior de Educação de Viseu.

É disso exemplo a covid-19 em que, apesar de o intuito ser positivo – proteger as pessoas –, muitas vezes “os mais velhos não tinham qualquer liberdade de escolha”. “Ninguém perguntou aos idosos se eles de facto queriam todo aquele isolamento e regras de distanciamento a que foram sujeitos”, recorda Lia Araújo. O relatório da OMS revela que a pandemia “amplificou” as atitudes discriminatórias baseadas na idade, com os mais velhos a serem encarados como “uniformemente frágeis e vulneráveis”.

Ainda há muito a fazer para a desconstrução de ideias e narrativas alicerçadas na idade. Para José Carreira, enquanto “não se olhar para o outro, independentemente da sua idade, como sendo um ser humano, uma pessoa de pleno direito”, existe a possibilidade de, no limite, se chegar “à marginalização, ao isolamento, à discriminação, até da própria pessoa, que se afasta da sociedade porque entende que já não tem nada para dar”. Aí, todos ficamos a perder.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

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