Opinião

Com quantos deputados se ganha uma eleição? (em Espanha ou em qualquer lado)

Com quantos deputados se ganha uma eleição? (em Espanha ou em qualquer lado)

Miguel Prata Roque

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Em democracia, quem ganha é quem consegue agregar, apaziguar, coligar e gerar consensos em torno de políticas públicas concretas a aplicar. Talvez isso explique porque é que o PP de Rajoy e de Feijóo não conseguiu formar governo, apesar de clamar, a plenos pulmões, que ganhou as eleições

No passado dia 3 de outubro, conforme impõe a Constituição espanhola (art. 99.º, n.º 4), o Rei de Espanha encarregou Pedro Sánchez de formar governo, apesar de o PSOE apenas ter obtido 31,70 % e 122 deputadas/os, contra os 33,05% e 136 deputadas/os do PP. Em 29 de setembro, Feijóo havia sido chumbado, pela segunda vez, por 177 contra 172 votos (e um nulo), pelo que não obteve a confiança necessária que a Constituição espanhola exige para que um governo inicie funções.

Para quem andou a vociferar que o PP espanhol ganhou as eleições de 23 de julho, pode ter constituído uma (pueril) surpresa. Já para quem compreende o funcionamento da democracia parlamentar, facilmente se percebe que, quanto mais fracionado se encontra um parlamento, mais importante se torna gerar consensos e compromissos que garantam um horizonte de estabilidade. Posto de forma muito simples: faria sentido que apenas 31,70% dos espanhois pudesse impor a sua vontade aos restantes 68,30%?

Uma democracia adulta pressupõe que as decisões políticas e as leis devam ser o mais consensuais possíveis. Uma lei não pode ser confundida ou ter a pretensão de ser a solução mais correta ou, pior, a única viável. Ela traduz apenas a ideia de que é preferível uma lei que corresponda à vontade de muitos do que à de poucos.

A partir da sua nomeação, Pedro Sánchez tem 200 dias contados da primeira investidura de Feijóo, até 27 de novembro de 2023, para formar governo (art. 99.º, n.º 5 da Constituição espanhola). A geometria variável do seu possível apoio parlamentar tem gerado grande controvérsia: deverá negociar com independentistas catalães (ERC e Junts), com 7 deputados cada, e bascos (EH Bildu e EAJ-PNV), com 6 e 5 deputados? Ainda para mais quando alguns dos seus dirigentes foram condenados, uns por uso indevido de verbas públicas para realização de referendo sobre independência, outros por incluirem antigos membros de uma organização armada terrorista?

Para que se forme governo, é preciso reunir 176 votos favoráveis. Isso implica manter a coesão dos 178 deputados que elegeram Francina Armengol como Presidente do Congresso de Deputados. E, ainda mais difícil, implica obter o apoio do Junts, de Puigdemont, que estabelece como condições a amnistia dos políticos catalães condenados e a realização de um referendo à independência da Catalunha.

Julgo que devia guardar-se prudente contenção quando se prega a raiva e se instiga a perseguição dos independentistas catalães (e bascos). Que fizeram eles? Através do seu parlamento democraticamente eleito convocaram, em 06 de setembro de 2017 um referendo para deliberar sobre a independência da Catalunha, tendo obtido os votos favoráveis de 72 deputados, 11 abstenções e nenhum voto contra, ainda que os restantes 52 deputados do Partido Socialista Catalão, do PP e do Ciudadanos tenham abandonado a sala em protesto. Aliás, já em 16 de janeiro de 2014, esse mesmo parlamento catalão tinha aprovado um pedido à Câmara dos Deputados espanhola que lhe conferisse poderes para convocação de um referendo autonómico, com 87 votos favoráveis, 45 contra e 3 abstenções. Nessa altura, os catalães forumularam as seguintes duas perguntas: “Quer que a Catalunha se torne num Estado?” e, em caso afirmativo, “Quer que esse Estado seja independente?”. Após acórdão unânime do Tribunal Constitucional, que recusou ambas as perguntas, com fundamento na violação da Constituição espanhola, o Governo catalão tornou a consulta não vinculativa e o referendo acabou por se realizar, em 9 de novembro de 2014, com uma votação favorável ao “Sim” (em ambas as perguntas) de 81%, com uma taxa de participação de apenas 42% dos eleitores.

É inegável que a Constituição espanhola se opõe veementemente à sedição de parcelas do seu território, ao afimar a “indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhois” (art. 2.º). É impossível esquecer que só podem ser convocados referendos sobre “decisões políticas de especial transcendência” (art. 92.º, n.º 1), pelo Rei, sob proposta do Presidente do Governo, mediante prévia autorização pelo Congresso de Deputados (art. 92.º, n.º 2). Mais do que isso, não só se reserva ao Estado espanhol a competência exclusiva para autorizar a convocação de referendo (art. 149.º, n.º 1, par. 32.º), como a Constituição espanhola é mais do que veemente, ao afirmar que “em nenhum caso se admitirá uma federação de comunidades autónomas” (art. 145.º, n.º 1)

Dúvidas não há que é inconstitucional realizar um referendo na Catalunha (e nas outras comunidades autónomas) que permita a sua independência.

Resta saber se – num Estado democrático pluralista e mais preocupado com a reconciliação nacional e com o exercício das liberdades individuais – não haveria medidas mais razoáveis (e, também, mais eficazes) do que perseguir aqueles que discordam do modelo nacionalista. É que o direito à autodeterminação dos povos é, forçosamente, disruptivo. Ele pressupõe sempre uma rotura com a Constituição anterior. Não pode, aliás, deixar de causar estranheza que, em plena União Europeia, se trate de forma tão leviana esse direito à autodeterminação que constitui fundação do Direito Internacional (art. 1.º, n.º 2, da Carta das Nações Unidas), ao mesmo tempo que protege a liberdade de pensamento (art. 10.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE), de expressão (art. 11.º da CDFUE) e de reunião e associação (art. 12.º da CDFUE).

Outros Estados – e outros Tribunais Constitucionais – foram mais criativos e agiram de modo mais conciliador. O caso do referendo pela independência do Quebec é disso paradigmático.

Apesar de ter constatado que a proposta do Governo do Quebec, em 1994, para realizar um referendo com vista à declaração unilateral da sua independência, em outubro de 1995, violava a Constituição canadiana, o “Supreme Court” não deixou de ser mais sensato e sensível à circunstância de uma percentagem elevada de cidadãos canadianos a viver no Quebec aspirar à independência. Através de acórdão proferido em 20 de agosto de 1998, aquele Tribunal Constitucional fez o que o espanhol não soube fazer: concluiu que, face a essa insatisfação, o Estado canadiano deveria abrir negociações com os representantes dos cidadãos do Quebec, de modo a procurar acomodar as suas preocupações, caso houvesse uma maioria democrática de quebequenses a pronunciar-se no sentido da secessão (§ 151 do acórdão).

Ao invés, o que fez o Estado espanhol, em 2017? Deitou gasolina para fogueira. O Governo de Mariano Rajoy acionou o art. 155.º da Constituição espanhola, assumiu poderes excecionais que retirou ao governo catalão, ordenou às forças policiais que impedissem a realização do referendo, incluindo através da dispersão de eleitores e de desmantelamento de mesas de voto, com recurso à força. Houve confrontos e a violência policial causou mais de 800 feridos.

Poderá Sánchez garantir a realização de um referendo? Claro que não. Mas uma solução imaginativa poderia passar pela convocação de uma consulta popular não vinculativa, ao abrigo do princípio da participação administrativa. Recordo que, em 2017, quem se opunha à independência não foi às urnas, tendo a taxa de participação sido baixíssima (apenas 42%).

Resta a questão da amnistia a Puigdemont e a Toní Comín, que foram julgados à revelia, por se terem exilado, e a mais 9 ex-titulares de cargos públicos catalães. Ao contrário do que se pensa, nenhum/a deles/as foi condenado por sedição, já que tal crime foi extinto pelo novo Código Penal de 2022. Encontram-se condenados apenas pelo crime de peculato, resultante do uso de meios públicos (uso edifícios públicos; impressão de boletim de votos; mobilização de cidadãos e funcionários públicos) para realização de um referendo inconstitucional, e pelo crime de desobediência.

Ora, as leis de amnistia pressupõem um juízo político sobre a desnecessidade da aplicação de uma pena – à luz de critérios de proporcionalidade e de interesse público – e, não raras vezes, destinam-se até a proceder a uma reconciliação nacional; em especial, quando sucedem mudanças de regimes políticos e se convoca a necessidade de reintegrar agentes de anteriores regimes autoritários. Face à gravidade concreta dos atos praticados – que envolveram a execução de deliberações democráticas tomadas por órgãos da Generalitat catalã (ainda que inconstitucionais) –, o caminho da reconciliação nacional pode passar pelo reconhecimento de que aqueles políticos catalães agiram de acordo com um critério de retidão ética, por terem seguido um imperativo de consciência, que atenua os ilícitos cometidos.

Devo notar que ciência juspenalista discute de que modo o Direito deve enfrentar os chamados “criminosos de consciência”; isto é, aqueles que infringem uma proibição vigente em cumprimento de uma objeção tão forte ao sistema vigente cujo cumprimento implicaria uma violência insuportável sobre a sua convicção. Até o Direito português o reconhece, quando admite a exclusão da ilicitude por exercício de um direito (art. 31.º, al. b) do Código Penal), ou, pelo menos, quando permite uma atenuação significativa da pena ou até a sua dispensa, quando se entenda que o grau de censurabilidade de quem comete o crime é diminuta (art. 35.º, n.º 2, do Código Penal). Ora, discordar de uma Constituição vigente e defender a autodeterminação de um povo, por via pacífica, parece reunir essa baixa censurabilidade.

Em suma, há soluções. E caminho para andar.

Cabe aos governantes promover a concórdia e a reconciliação.

Não o ressentimento e a vingança.

Em democracia, quem ganha é quem consegue agregar, apaziguar, coligar e gerar consensos em torno de políticas públicas concretas a aplicar. Talvez isso explique porque é que o PP de Rajoy e de Feijóo não conseguiu formar governo, apesar de clamar, a plenos pulmões, que ganhou as eleições.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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