Opinião

A direita (moderada) não aprendeu nada com 2015

A direita (moderada) não aprendeu nada com 2015

Miguel Prata Roque

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Dá pena que ainda não tenham percebido como funciona uma democracia parlamentar. Dá pena que ainda não lhes tenha ocorrido que, quanto mais dão mostras de estar dispostos a negociar com extremistas (como Vox e Chega), mais afastam as pessoas sensatas e moderadas que prezam o humanismo e o respeito pelas liberdades individuais

Ao contrário do que sucede em Portugal, a/o candidata/o a Presidente do Governo espanhol tem de obter a confiança expressa do Congresso, não lhe bastando a mera discussão do Programa do Governo. O artigo 99.º, n.º 3, da Constituição espanhola determina que, numa primeira votação, o Programa de Governo deve obter maioria absoluta das/os Deputadas/os. E que, caso ela não seja obtida, o Congresso voltará a apreciá-lo, passadas 48 horas, bastando então apenas uma maioria simples para que o Governo possa ser investido pelo Rei e iniciar as suas funções.

Caso nem sequer à segunda tentativa se reúna maioria simples, o n.º 4 do referido artigo 99.º determina que o Rei deve reiniciar o processo de consultas aos partidos e nomear nova/o candidata/o a Presidente do Governo, até que algum/a obtenha a necessária maioria parlamentar. Se, ainda assim, passados 2 meses da primeira votação do Programa de Governo, nenhum/a candidato/a for aprovado pelo Congresso, impõe-se uma dissolução pelo Rei e a convocatória de novas eleições, para ambas as câmaras: Congresso e Senado (art. 99.º, n.º 5).

A vida não está fácil, portanto, nem para o PP de Feijóo, que reuniu apenas 33% dos votos expressos e 136 deputadas/os, nem para o PSOE de Pedro Sánchez, que ficou lá perto, com 31,7% e 122 deputadas/os, num universo total de 350 mandatos.

Ainda assim, o sistema político-constitucional espanhol comporta algumas diferenças face ao sistema português. A Constituição espanhola determina que o Governo se mantém em funções até à investidura de novo Presidente do Governo, que só acontecerá após voto expresso de confiança do parlamento e não, como sucede em Portugal, logo após a nomeação e tomada de posse perante o Presidente da República, sem votação prévia pela Assembleia da República (art. 186.º da Constituição portuguesa). Tal benefícia o atual governo PSOE-SUMAR, visto que este continuará em funções até que o parlamento confirme novo governo.

Por outro lado, não é inteiramente correto fazer cálculos a 176 deputadas/os como o número que confere a maioria absoluta e a garantia de entrada em funções de um novo governo. Em boa verdade, tanto o PP como o PSOE (se aquele não lograr obter o apoio das Cortes) só precisam, numa 2ª votação, de obter mais votos a favor do que contra. Isto permite, por exemplo, a Feijóo somar os votos de PP aos do Vox e rezar para que Juntx e ERC – que dispõem, cada um, de 7 deputadas/os– se abstenham, o que permitiria um governo aprovado com 169 a favor, 14 abstenções e 167 votos contra. Mas também permite ao PSOE formar uma maioria muito mais flexível, que pode ir até aos 174 deputados/as contra os 169 de PP e de Vox, apenas com a abstenção de Juntx.

Por fim, a existência de uma segunda câmara (o Senado) dificulta ainda mais a governabilidade. Isto porque o Senado pode propor leis (art. 87.º, n.º 1), pode exercer o direito de veto sobre leis das Cortes ou impor alterações, por maioria absoluta (art. 90.º, n.º 2) e pode eleger 4 juízas/es para o Tribunal Constitucional, por maioria de 3/5 (art. 159.º, n.º 1). Ora, o PP obteve 120 mandatos no Senado, num total de 208, o que equivale à maioria absoluta dos seus membros. Nesse sentido, mesmo um governo formado pelo PSOE de Pedro Sánchez contará com inegável resistência do Senado.

Importa extrair lições das Eleições espanholas de ontem e, em especial, das semanas de campanha eleitoral que a antecederam. Por cá, o centro-direita e a extrema direita portuguesa esforçaram-se por navegar as ondas provocadas pelas Eleições Municipais de 28 de maio. O líder do PSD, Luís Montenegro, logo se apressou a felicitar o PP espanhol e a colar-se a essa vitória nas municipais, clamando que “é preciso substituir governos socialistas irresponsáveis por novas maiorias reformistas”. Por sua vez, André Ventura anunciava aos sete ventos que os bons resultados de PP e Vox iam iniciar uma viragem política de toda a Península Ibérica. Em vésperas de Eleições gritava, entusiasmado, que “Viragem à direita vai influenciar Portugal” e que “Derrota do socialismo em Espanha vai ter um efeito que se sentirá em Portugal”, enquanto os seus seguidores exultavam nas redes sociais (antes, claro, de conhecer os resultados). A própria Iniciativa Liberal se colava ao partido herdeiro do franquismo, desejando que “Sánchez, o António Costa de Espanha, saia do poder”.

Se há coisa que a noite eleitoral de ontem ensinou foi que se deve aguardar a contagem de votos e a expressão da vontade das/dos eleitoras/es com prudência.

À medida que a noite eleitoral foi avançando, o balde de água fria arrefeceu os ânimos à direita portuguesa. Mas menos à direita espanhola, que, incauta e imprevidente, não deixou de simular saltos e cânticos de vitória, demonstrando o seu desprezo pela política portuguesa e pelo precedente das Eleições Legislativas portuguesas de 2015. Nessa altura, também se pulou muito, cantou e gritou, na sede de campanha da coligação entre PSD e CDS. Até que, a 10 de novembro de 2015, o segundo governo-relâmpago de Passos Coelho (que apenas durou 10 dias) foi demitido pelo parlamento, através da união de toda a oposição no chumbo do seu Programa de Governo.

Sucede que Feijóo é distraído. E quis fingir não ligar ao precedente português. Por isso, fez a mesma figura que tantos apoiantes da direita (moderada) portuguesa fizeram entre a divulgação dos resultados eleitorais e a aprovação parlamentar do Programa do Governo da geringonça. Resmungou que o partido mais votado deve formar governo. Que cabia ao segundo mais votado garantir apoio a esse governo, mesmo que houvesse outra maioria parlamentar formada. Que reprovar o Programa de Governo de um partido minoritário no parlamento constituiria um golpe constitucional, mesmo que não se concorde com ele.

Lá como cá, os mesmos argumentos de uma minoria desorientada e incapaz de perceber como funcionam as democracias parlamentares.

Ainda traumatizada por essa constatação que o Parlamento é o centro da decisão política, que as/os eleitoras/es votam num programa político e que é do consenso entre os vários grupos parlamentares que nasce o governo, vários membros da direita (moderada) – desde o PSD ao CDS, passando pela IL – vieram desenterrar os mesmíssimos argumentos estafados, já antes esgrimidos em 2015. O resultado eleitoral espanhol fê-los despertar. Espoletou, no seu subconsciente, o trauma (mal) reprimido. Esperar-se-ia isso dos que anunciavam a “Reconquista Cristã da Península” e acabaram por ter que enfiar a viola no saco, escondendo-se na penumbra madrilena, atrás de um Abascal destroçado, humilhado e cabisbaixo.

Mas não se compreende que a direita (moderada) retome a mesma lenga-lenga de outubro/novembro de 2015. Que insista que PCP e BE – e, quem sabe, se Livre e PAN – são tão extremistas quanto o Chega. Que quem tem mais votos deve governar. Que o PS deu um golpe constitucional. Que o PS teria o dever de permitir um governo minoritário do PSD, sob pena de ser culpado pela aliança entre o partido de Sá Carneiro e o partido dos saudosistas de Salazar.

É triste que a direita (moderada) não tenha aprendido nada com 2015. Nem sequer é triste: dá pena. Dá pena que ainda não tenham percebido como funciona uma democracia parlamentar. Dá pena que ainda não lhes tenha ocorrido que, quanto mais dão mostras de estar dispostos a negociar com extremistas (como Vox e Chega), mais afastam as pessoas sensatas e moderadas que prezam o humanismo e o respeito pelas liberdades individuais. Dá pena que ainda não tenham compreendido que quem dá gás a esses partidos extremistas não são os partidos de esquerda que os combatem, mas aqueles que neles votam e aqueles que com eles pactuam, deixando a porta entreaberta para as suas medidas desumanizadoras e violentadoras.

Enquanto a direita (moderada) não seguir em frente e não parar de remoer o que acha que lhe aconteceu em 10 de novembro de 2015, não haverá futuro que por ela aguarde. As/os portuguesas/es não estão preocupadas/os em saber se PSD e CDS tinham (ou não) um direito natural de governar, mesmo tendo tido menos votos do que quem chegou a acordo para implementar políticas comuns. Bom era que a direita (moderada) pusesse os olhos em Espanha e percebesse que fugir a um debate, apenas para não ter que se sentar ao lado do líder do Vox, não constitui tática suficiente para cavar distância da histeria excêntrica (mas tão perigosa) dos novos extremismos. E que a tibieza e a hesitação na recusa em pactuar e governar com defensores do autoritarismo já não é mais aceite pelas/os eleitoras/es.

A reação da direita (moderada) às Eleições espanholas revela que a mesma não aprendeu nada com 2015.

Ao invés de ficar feliz com a regressão dos populismos autoritários, numa eleição em que a taxa de participação atingiu uns impressionantes 69,95%, a direita (moderada) continua a resmungar que cabe aos partidos de esquerda viabilizar os seus governos. Senão – chantageia, ela – será forçada a aliar-se à extrema direita.

De Espanha sopram bons ventos. Mas não bons casamentos com quem é inimigo de tudo o que a democracia portuguesa representa.

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