Bom dia.
A Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias reúne esta tarde para tentar deslindar o imbróglio em que o Parlamento se meteu ao decidir que os novos partidos não têm direito de intervir nos debates quinzenais enquanto não for alterado o Regimento da Assembleia da República. A decisão de silenciar (pelo menos transitoriamente) os deputados únicos do Livre, IL e Chega foi imposta na conferência de líderes, na sexta-feira, pela maioria formada pela antiga geringonça - PS, BE, PCP e PEV. PSD, CDS e PAN queriam dar aos partidos com apenas um representante o mesmo direito de intervir que foi concedido ao PAN na legislatura passada.
Agora, em contra-relógio para o debate quinzenal de amanhã, a esquerda parece tomar consciência do “grande erro” que cometeu ao pretender calar André Ventura, João Cotrim Figueiredo e Joacine Katar Moreira. Depois da decisão ter sido duramente criticada pelo presidente da Assembleia da República, e de o Presidente da República ter lembrado a excepção que já existia para o PAN, o PS e o BE dão sinais de recuo, conforme noticiou o Expresso Diário de ontem.
Pelas regras atuais, nos debates quinzenais participam apenas os “grupos parlamentares” - e um deputado único não forma um “grupo”... A justificação formal para toda a esquerda ter recusado dar ao Chega, à IL e ao Livre o mesmo tratamento excepcional que o PAN teve é o facto de haver uma proposta de alteração ao Regimento apresentada agora pelo deputado da Iniciativa Liberal. Se, em 2015, tudo se decidiu ad hoc, com uma excepção não prevista, porque André Silva era caso único, agora as excepções seriam três - daí o argumento de mudar primeiro as regras para todos, e só depois deixar falar.
Depois da polémica, pelo menos o PS e o BE admitem agora aquilo que podia ter sido a desde o início a solução natural - antecipar já a possibilidade de os deputados únicos falarem, enquanto decorrem os trabalhos de alteração do Regimento. Espera-se que a comissão que tem no nome Direitos, Liberdades e Garantias garanta que todos os partidos com lugar em São Bento têm o direito e a liberdade de questionar o primeiro-ministro.
Este será um dos temas da reunião desta semana na Comissão Política, o podcast da editoria de Política do Expresso que poderá ouvir esta terça-feira.
OUTRAS NOTÍCIAS
Notícia de última hora, mesmo antes do envio deste Expresso Curto: a polícia francesa interveio na fronteira com Espanha, para retirar os manifestantes que cortavam a AP-7, a principal ligação rodoviária entre a Catalunha e a França. O corte da autoestrada iniciou-se ontem, promovido por ativistas a favor da independência da Catalunha. Há relatos de uso de força e gás pimenta por parte das autoridades, e resistência por parte dos mais de dois mil catalães concentrados no local há cerca de 24 horas.
Na ressaca das eleições em Espanha, o PSOE pede “generosidade” e “responsabilidade”, mas tudo indica que só poderá negociar maiorias com a esquerda. PP e Vox, os dois partidos que mais subiram e são segunda e terceira forças políticas, já viraram as costas a Pedro Sanchéz. Ou seja, o reeleito primeiro-ministro terá de começar por falar com o Unidas Podemos, de Pablo Iglesias, o mesmo interlocutor com quem foi impossível um acordo nos últimos meses. Sanchéz tem a inútil vantagem de ter ganho peso relativo face ao Podemos, e a desvantagem de esse acordo não chegar para lhe garantir maioria absoluta.
Aliás, esse objetivo tornou-se ainda mais difícil depois das eleições. Se acha que em Portugal isto é complicado, com geringonça ou sem ela, veja aqui o que é mesmo complicado: para o PSOE conseguir uma maioria absoluta, ou fica dependente de forças independentistas ou precisa de coligações impraticáveis. “Espanha é um drama a deslizar para tragédia”, constata o Ferreira Fernandes no DN.
A não ser… a não ser que PSOE e PP sejam capazes de fazer uma grande coligação, tipo bloco central, que ambos recusam. “A Espanha é a única democracia europeia que nunca experimentou governos de coligação ao nível nacional. Há uma longa cultura de coligações mas apenas a nível regional. Sánchez e Casado ficam com o menino nos braços”, escreve o Jorge Almeida Fernandes no Público.
Pablo Casado, líder do PP, tem um argumento de peso para rejeitar o grande pacto com Sanchéz: isso deixaria a liderança da oposição para o Vox, o partido de extrema-direita que foi o grande vencedor de domingo passado. Com um discurso eurocético, xenófobo e autoritário, herdeiro do franquismo e ferozmente anti-autonómico, o Vox catapultou-se graças à questão catalã e cresceu à boleia do esvaziamento do Cidadãos (cujo líder, Albert Rivera, se demitiu ontem). Leia aqui a história deste partido que há um ano ainda não tinha qualquer deputado eleito, fosse a nível nacional ou regional.
Quem manda na Bolívia?, pergunta o Público, depois da renúncia de Evo Morales, acusando as forças de segurança e os militares de pressionarem para o seu afastamento (foi um golpe de Estado? Boa pergunta - eis quatro respostas). Sem presidente, a caminho do exílio no México, sem governo e sem presidente do Senado, os deputados tentam preencher o vazio de poder antes que o caos ganhe. O caos, esse, faz caminho.
O mundo está perigoso. Tanto, que o ministro da Defesa comparou ontem a situação político-social que se vive em diversos países com o período entre a I Guerra Mundial e o início da ditadura militar que antecedeu o regime do Estado Novo em Portugal.
Três advogados entregaram no Supremo Tribunal de Justiça um pedido de habeas corpus para libertar Sara, a mãe que na semana passada terá abandonado o seu bebé recém-nascido no lixo. Entre os signatários, que consideram que a mãe sem-abrigo de 22 anos foi alvo de uma “prisão ilegal”, conta-se Varela de Matos, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados.
O Expresso ouviu uma psicóloga e um psiquiatra sobre este caso, e ambos concordam: abandonar um filho recém-nascido no lixo não é “uma situação limite”, é “muito para lá disso”.
O secretário de Estado da Energia, João Galamba, desistiu de uma visita em Boticas depois de ter sido recebido pela população em protesto contra a exploração de lítio. Aos jornalistas, Galamba assegurou que “se o estudo de impacto ambiental for negativo, não há mina de lítio”. À noite, na RTP, o governante jurou que estava obrigado a cumprir um contrato assinado pelo Executivo de Passos Coelho.
Começam hoje as negociações entre o Governo e os partidos que se sentam à esquerda do PSD para a preparação do Orçamento do Estado. Os encontros são em São Bento, e será António Costa a chefiar a delegação governamental - no momento em que escrevo esta newsletter, não é certo se Mário Centeno participará nas conversas. Como bastam abstenções para o OE passar, e nada indica que a esquerda prepare, nesta altura, qualquer voto contra, o ponto de partida para os socialistas é descontraído. As reivindicações de BE, PCP, PAN, PEV e Livre centram-se no IRS, através de novos escalões, subida dos rendimentos e mais investimento público - tudo já prometido pelo PS em campanha,
O Algarve está em seca extrema. Há sete meses que quase não chove na região.
Há nove arguidos, entre os quais uma pessoa coletiva, na sequência do inquérito ao deslizamento de terras numa pedreira de Borba, ocorrido há um ano. Como o inquérito está em segredo de justiça, não se conhece a identidade desses arguidos. A acusação deverá ficar concluída até ao início do próximo ano.
Foram libertados, por excesso de prisão preventiva, 37 dos 40 arguidos do megaprocesso contra os Hells Angels. O que começou por ser um processo exemplar de cooperação judiciária acabou por revelar as falhas mais básicas do sistema: as derrapagens começaram com atrasos numa tradução, contra o DN.
Morreu Teresa Tarouca. Foi uma das grandes do fado.
Por falar em grandes, e em fado, é lançado esta semana o disco de Camané com Mário Laginha. Inclui esta versão de “Com que Voz”, que Alain Oulman escreveu para Amália.
Havana faz 500 anos no próximo sábado. O El País conta, com palavras e ilustrações, a história daquela que foi a capital mais fabulosa do Novo Mundo.
AS MANCHETES DE HOJE
i: “Revolta no quarteirão da baixa lisboeta vendido a fundo americano”
Diário de Notícias: “Empresa que contratava médicos e enfermeiros para as prisões não pagou e desapareceu”
Público: “Imigração sobe 18% com Reino Unido a destacar-se no top 5”
Jornal de Notícias: “Chumbos no Básico caíram para metade”
Correio da Manhã: “Lalanda lava 70 milhões em sete anos”
O QUE ANDO A LER
Deixo duas sugestões, uma que li, outra que estou a ler.
Para quem gosta da política norte-americana, o processo de destituição de Donald Trump tornou ainda mais irresistível uma novela que já era viciante. Escrevo novela com propriedade, num caso em que nunca falta o episódio nosso de cada dia, com sucessivas revelações, reviravoltas dramáticas e cenas que parecem de filme. É o caso deste episódio, contado nas audições à porta fechada que levaram à abertura formal do processo de destituição - Fiona Hill, antiga conselheira de Trump para a Rússia e Europa, contou na primeira pessoa e com detalhe, o dramatismo com que teve de travar as movimentações da máquina diplomática paralela que o presidente montou para pressionar a Ucrânia a abrir uma investigação aos negócios da empresa onde trabalhava o filho de Joe Biden, de forma a embaraçar o seu potencial rival.
O New York Times transcreve partes do depoimento de Hill e analisa-as como costuma fazer com a cena fulcral de um filme, fazendo a “Anatomia de uma Cena”. E parece mesmo um episódio alternativo do “West Wing”.
Cenário: Casa Branca. Personagens principais: Gordon Sondland, diplomata de ocasião que, mandatado por Trump, subverte as regras num quid pro quo com a Ucrânia; John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca que pressente o perigo e tenta travar a operação; Fiona Hill, a conselheira que tem de correr pelos corredores da Casa Branca para impedir um compromisso que seria o pagamento pelo favor que Trump estava a pedir aos ucranianos. Participam ainda outras figuras da administração dos EUA e vários ucranianos. Vale a pena ler o guião desta “cena cinematográfica”, como lhe chama o NYT, para se perceber como os EUA estão a ser governados no fio da navalha.
Comecei há dias a ler “As Crianças Invisíveis”, da Patrícia Reis (ed. D. Quixote). Já lhe tinha pegado, mas é um livro tão cru e tão duro que o fui adiando... As notícias da semana passada sobre o recém-nascido encontrado num contentor de lixo foram o clique para entrar neste retrato do mundo das crianças institucionalizadas à espera de quem as adote. Corrijo: este retrato da alma das crianças institucionalizadas - não se trata de uma reportagem neo-realista, mas de um mergulho em apneia em vidas tortuosas, histórias demasiado sofridas para a idade de quem as vive, e por isso tão difíceis de reconhecer numa sociedade decente. São crianças invisíveis, como diz o título, porque não as queremos ver - porque ninguém quer encará-las, com as marcas que trazem da violência, do desamor, do abandono, da desumanidade, da frieza da máquina burocrática, da indiferença de famílias que as adotam e depois as devolvem (“Uma família leva uma criança para casa e faz um teste e, depois, pode dizer que se enganou, o amor não cresceu de repente, esplendoroso e gigante, capaz de ultrapassar todos os dissabores por ser amor, logo incondicional”).
A Patrícia, de quem sou amigo, dirige há 19 anos a Egoísta, uma das revistas mais premiadas da Europa. Escreve esta ficção com o treino dos bons jornalistas, o talento dos verdadeiros escritores e uma empatia que não se aprende nem se treina.
O livro adota o ponto de vista das crianças, a partir de casos que a autora conheceu e investigou. As crianças não têm género - são identificadas por iniciais -, o que significa que cada um as imaginará como quiser, meninos ou meninas, mas raramente felizes. A felicidade, se acontece, é na instituição onde vivem (a Casa) e nunca nas casas para onde vão, adotadas por pais instantâneos que nunca estão à altura das expectativas que proclamam, com a justificação de que as crianças nunca estão à altura das fantasias que os adultos construíram.
Fico por aqui.
Tenha uma excelente terça-feira.
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