Ninguém faz isto de ânimo leve. A afirmação é perentória e feita quer por Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense do Instituto de Medicina Legal, quer pelo psiquiatra José Gameiro. E o “isso” de que falam é abandonar um filho, ainda mais abandoná-lo num contentor de lixo.
“Só alguém muito desesperado faz algo assim, isto é desespero”, considera José Gameiro. “Uma situação limite é uma mãe que tem um filho e o abandona no hospital ou vai deixar numa instituição de apoio social. Deixá-lo no caixote de lixo é muito para lá de uma situação limite”, defende Rute Agulhas ao Expresso. “Pode haver aqui uma série de perturbações associadas, além de termos em conta que estamos a falar de uma mulher de 22 anos, sem abrigo e aparentemente sem qualquer rede de apoio. Onde estão a família e os amigos desta jovem?”, questiona.
Sara teve o bebé sozinha e, pouco depois, deixou-o num caixote do lixo junto à discoteca Lux, em Santa Apolónia, Lisboa. Para a psicóloga há uma série de hipóteses sobre o que pode ter acontecido à mulher e mãe do bebé a quem o pessoal médico chamou “Salvador”. Nunca tendo falado com Sara, Rute Agulhas sublinha que em causa pode estar uma situação de depressão severa, “em que tudo é visto de forma negativa, a esperança na vida desapareceu e matar o filho é salvá-lo do mundo cruel”. “De certa forma, é algo altruísta. Um quadro muito comum nestes casos é o homicídio da criança seguido do suicídio da mãe”, nota. Por outro lado, pode ter-se dado o caso de Sara ter tido um surto psicótico e “momentaneamente não tinha noção, perdeu a consciência do que estava a fazer”.
Também a possibilidade de aquele bebé ser fruto de uma violação não é posta de parte pela psicóloga. “Se assim for, a criança dá-lhe angústia, personifica a violação.” Segundo o jornal “Correio da Manhã”, Sara prostituia-se e, diz Rute Agulhas, se o menino tiver nascido nessas circunstâncias, a sua existência é também, para a própria mãe, uma situação “muito complicada de lidar”.
“Há várias hipóteses do que pode ter acontecido. O que realmente importa neste momento é avaliar e tentar compreender o que aconteceu, e fazê-lo não significa minimizar o que aconteceu. Não há dúvidas de que o que aconteceu é horrível - não há outra palavra para descrecer -, é um ato muito grave que não podemos tolerar mas que podemos tentar compreender”, defende a psicóloga.
José Gameiro defende que a detenção num estableicimento prisional está longe de ser a melhor opção para Sara. Para o psiquiatra, a mulher deveria estar num lugar mais “recolhido”, onde lhe pudesse ser prestado apoio. “Ir para a prisão não me parece que seja de todo a melhor solução, é um ambiente hostil e onde estará, provavelmente, a partilhar cela com várias outras reclusas envolvidas em crimes de tráfico de droga, por exemplo”.
O juiz definiu que Sara ficaria em prisão preventiva, uma medida de coação a ser cumprida no estabelecimento prisional de Tires. A mãe abandonou o bebé na terça-feira e, já na quarta-feira, as autoridades divulgaram o caso. Poucas horas depois, foi detida. Em causa está o crime de tentativa de homicídio qualificado.
A suspeita em causa, diz José Gameiro, parece um pouco desproporcional. “A nossa sociedade é muito punitiva. No outro dia, lia uma entrevista da diretora do Instituto de Apoio à Criança [Dulce Rocha], em que defendia que o crime em causa deveria ser de abandono. Li aquilo e fez-me todo o sentido”, refere. Opinião diferente tem Rute Agulhas que diz “ter muita dificuldade” em enquadrar este caso “no crime de abandono”.
“Se a mãe fez isto na sequência de um surto psicótico, quando volta à realidade tem muita dificuldade em aceitar o que aconteceu ou compreender o que fez. Há uma revolta enorme. Por outro lado, se houvesse mesmo a motivação de matar, vai ter de lidar com o facto de aquela criança estar viva e de representar algo”, diz Rute Agulhas. Para José Gameiro, a mulher lida agora com as consequência do que fez, “com a culpa e os remorsos”. “Se não tem qualquer tipo de sentimento pela criança ou problemas de consciência estamos, então, a falar de um caso bem mais grave e complicado do que se espera”, aponta, recusando “fazer diagnósticos”.
A facilidade de julgar os outros
“Somos aparentemente uma sociedade muito punitiva”, diz o psiquiatra. “O problema está na facilidade com que se faz o julgamento”, acrescenta Rute Agulhas, que continua: “no entanto, por outro lado, isto também significa que o comportamento em causa é dissonante e que somos humanos, que temos empatia por aquilo que aconteceu e, por isso, a reação intempestiva de algumas pessoas.” nos dias que se seguiram à divulgação da notícia, várias críticas à mãe podiam ser lidas nas caixas de comentários nas redes sociais e até entre cronistas e influenciadores de opinião.
Para a psicologia, agora, o mais urgente é avaliar a mãe e tentar perceber como algo assim aconteceu. “Este caso é um exemplo de invisibilidade total. Esta mulher era completamente invisível para a sociedade e aquele bebé também seria. Devemos olhar para isto de forma macro, fazer uma reflexão social. A mãe é também um vítima das circunstâncias: como é que tudo isto acontece sem que ninguém perceba que aquela mulher estava grávida, de que precisava de apoio. É uma situação de exclusão de limite. Tem 22 anos e não há muito tempo foi adolescente, pouco antes foi criança. Onde estava ela nessa altura? Qual foi o seu percurso de vida? Como nunca foi um caso destes sinalizado?”
Agora, à partida, vai ser pedido ao Instituto de Medicina Legal que seja feita uma avaliação psiquiátrica a Sara, para despistar algum diagnóstico, perceber se reúne ou não os critérios de imputabilidade dos atos. A avaliação deverá ser depois completada também com uma avaliação psicológica.
Alguma vez a mãe poderá voltar a ver ou contactar com “Salvador”?. “Creio que não”, conclui Rute Agulhas, até porque tudo aponta que o processo e a consequente adoção do bebé corra com rapidez e, após isso acontecer, “não se pressupõe a ligação da criança à família biológica”.