Expresso Livros

Respirar os ares da juventude, disse Stevenson. E continuar

Javier Marías, na sua casa em Madrid
J. P. GANDUL/EPA

Em setembro de 2022, quando Javier Marías nos surpreendeu com a sua morte, aos 70 anos, o “The New York Times” notou no obituário que, se o escritor espanhol cultivava uma imagem pública “mal-humorada”, no contacto direto “era generoso e inteligente, convidando os entrevistadores a longas conversas no seu estúdio pouco iluminado, apertando com os dedos um cigarro sempre presente”. Tive exatamente essa experiência - e acredito que muitos possam dizer o mesmo - ao entrevistá-lo em janeiro de 2019, na sua casa situada na Plaza de la Villa, em pleno centro de Madrid, a minutos a pé da Catedral. Marías ouvia Bach nessa manhã e o espaço não me pareceu pouco iluminado, embora estivesse atulhado de livros e de miniaturas, e de fumo, muito fumo dos cigarros que mantinha acesos quase por inércia como se o ajudassem a pensar. Às tantas levantou-se e, oferecendo-me alguma coisa para beber, foi buscar uma lata de Coca-Cola que o acompanhou, junto com os cigarros, durante o resto da conversa. Falámos duas horas sobre vários temas, entre os quais o “Berta Isla”, acabado de sair por cá e o seu 15º romance – o seguinte, o último (“Tomás Nevinson”), seria sequela deste.

Vem isto a propósito do ensaio “Luto sem Bússola”, agora lançado pela Relógio D’Agua. Quem o escreve é Carme López Mercader, a viúva de Javier Marías, com quem fundara a editora Reino de Redonda. Economista de formação, nunca antes tinha publicado um livro, pois o escritor da casa era ‘ele’. Ao perdê-lo, ela sentou-se a escrever como se sempre o tivesse feito, dando origem a este que é o derradeiro livro da editora de ambos, embora Carme diga que nem de um livro se trata e que não faz parte daquela coleção. Na verdade, o que contém é uma poderosa reflexão sobre o luto, a ‘terra incognita’ repleta de monstros como o eram os territórios desconhecidos dos antigos mapas, o deserto “sem pontos de referência que ninguém pode percorrer por nós”, a dor “em estado puro” que não é minimamente literária, mas “primária e animalesca”. Carme não fala de enlutados, usa o termo ‘doídos’, os que se doem e são obrigados a caminhar pelo mundo, empurrados pelo mote “há que continuar”, que todos nós já dissemos a alguém com as melhores e planas intenções, mas que, do outro lado, do lado de um curso próprio de pensamento subterrâneo, diz-nos ela, parece um desígnio agressivo e impossível de cumprir.

O curto volume entronca numa série de outros saídos nos últimos tempos, por sinal de escritoras mulheres em português, sobre o mesmo tema – o luto -, como “As Pequenas Chances”, de Natália Timerman, “O Livro da Doença”, de Djaimilia Pereira de Almeida ou “O Meu Pai Voava”, de Tânia Ganho (finalista do Prémio do Livro do Ano da Bertrand para melhor não-ficção), entre outros. “Javier e eu estávamos muito conscientes do extraordinário que era que nos tivéssemos conhecido, que existíssemos no mesmo tempo histórico e cronológico, com lugares de residência mais ou menos próximos, que as nossas trajetórias nos tivessem levado a coincidir no momento vital adequado para ambos”, lemos sobre os 30 anos que passaram juntos, preparando o retrato de um homem protetor, “às vezes em excesso”, recatado, que nunca se lembrava dos sonhos, que conhecia “todos os realizadores de todos os filmes e a maior parte dos seus atores”, que possuía milhares de CD de toda a classe de música (considerada por ele a arte suprema), que guardava as muitas versões datilografadas dos seus livros em vários baús, corrigidas à mão, que colecionava – a sua sala estava cheia deles – soldadinhos de chumbo.

Além de grande escritor, Javier Marías dominava na perfeição a língua inglesa e foi um tradutor de mão cheia, tendo traduzido para o castelhano autores como Yeats, W.H. Auden, Ashbery e Nabokov. E Robert Louis Stevenson, que Jorge Luís Borges disse simbolizar “uma das formas da felicidade”. Deste escritor nascido em Edimburgo em 1850 sai agora, pela Tinta-da-China, “Os Naufragistas”, em co-autoria com o seu enteado Lloyd Osbourne, numa edição que conta com prefácio do também romancista espanhol Javier Cercas, que após a morte de Marías, de quem era amigo, passou a ocupar a cadeira deste na Real Academia Espanhola. Nessa introdução, Cercas considera o romance “magnífico, de final vertiginoso rematado com uma inesperada pirueta autoficcional e, sobretudo, com doses abundantes do encanto, da honradez ética e da completa transparência que são a marca do melhor Stevenson”.

E porquê? Porque se trata de uma aventura que a meio se transmuta em livro de mistério, quase policial. Dois amigos, um bom negócio que depois se afigura coxo e duvidoso, a tentação de o prosseguir, o embarcar numa aventura no mar, a descoberta de que afinal tudo era o seu oposto, a necessidade de perseguir a verdade, sendo que esta é escorregadia e bastante relativa. “Onde está o bem, onde está o mal?”, pergunta Javier Cercas, respondendo que neste, “como em qualquer bom romance, a derradeira palavra não pertence ao autor, mas ao leitor, que é quem termina os livros”.

Interessante é o próprio autor assumir, no final, a sua parte no compromisso: “Antes de nos recolhermos, tínhamos já construído o esqueleto da história. A questão do tratamento era, como habitualmente, mais obscura. Há muito que nos sentíamos em simultâneo atraídos e repelidos por esse formato moderno das histórias policiais ou de mistério, que consiste em começar uma narrativa em qualquer ponto menos no princípio, e em terminá-la seja onde for menos no fim. (...) Concordamos assim em demorar-nos um pouco mais em aspetos como o tom da época, o seu movimento, a mistura de raças e classes na caça ao dólar, a luta feroz e de certa forma romântica pela existência.” “E, se nada mais lhe interessar na história” - atira-nos Stevenson -, “espero que lhe traga pelo menos alguma alegria respirar uma vez mais, por um instante, os ares da juventude.”

Basta um rápido olhar por dois volumes de Ailton Krenak, acabados de sair pela Antígona, para recordar o quanto precisamos desse mergulho. “Futuro Ancestral”, de 2022, e “Ideias para o Fim do Mundo”, de 2019 - com três conferências proferidas em Lisboa – convidam a refletir sobre o que andamos a fazer por aqui, não em Portugal, não na Europa, não num local determinado, mas ‘aqui’, no planeta que habitamos. Ativista e primeiro indígena a fazer parte da Academia Brasileira das Letras, Krenak reconduz-nos ao mais básico de tudo, à necessidade de nos virarmos para trás e para o antes a fim de encontrar uma continuação. “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugere que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”, lemos. Como lemos que “o nosso tempo é especialista em criar ausências”, o que gera “uma intolerância muito grande em relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”.

Da cabeça à caneta, bem hajam aqueles que põem em palavras o barulho do mundo, e as suas (poucas) certezas.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Naquele Dia”, de Laura Alcoba (D. Quixote)

Exercício à Truman Capote desta autora argentina emigrada em França, que escreve sobre a história verdadeira de um crime hediondo ocorrido nos anos 1980, que passou anos a tentar compreender, entrevistando quem o perpetrou (uma mãe) e os sobreviventes (uma filha).

“A Neve Estava Suja”, de Georges Simenon (Cavalo de Ferro)

Foi considerado por George Steiner “o mais extraordinário criador de ficção do nosso tempo”. E os seus romans durs, ou seja, tudo aquilo que o grande autor belga escreveu fora do universo Maigret, são agora reeditados. Ao lado deste, publicado em 1948, surge “As Janelas Defronte”, o ‘romance russo’, de 1933.

“Quatro Quartetos”, de T.S. Eliot (Companhia das Ilhas)

Com tradução de Vergílio Alberto Vieira, uma edição bilingue da coleção Nanook deste conjunto de quatro longos poemas do norte-americano feito cidadão britânico que recebeu o Nobel da Literatura em 1947.

“Os Olhos de Mona”, de Thomas Schlesser (Presença)

Um bestseller, pois, mas dos bons. Basicamente, uma viagem ficcionada pelo mundo da arte explicada a uma criança. Podia ser um livro de história pura e dura, mas, tal como aconteceu com o “Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, não teria a mesma graça.

NÃO-FICÇÃO

“Náufragos”, de Sophie Elmhirst (Zigurate)

Não é ficção, antes uma longa e maravilhosa reportagem vencedora do Prémio Nero, por uma jornalista que publica regularmente no “Guardian Long Read” e na revista da “The Economist”.

“Humano, Demasiado Humano”, de Neil D. Lawrence (Gradiva)

Assinado por um professor e investigador sénior de IA da Universidade de Cambridge, um livro cujo subtítulo não o resume: “O que nos torna únicos na era da Inteligência Artificial”. Além de excelentemente escrito, é uma reflexão poderosa sobre o caráter insubstituível do que realmente nos torna humanos.

“Do Prazer de Odiar e Outros Ensaios”, de William Hazlitt (Edições 70)

Coleção de ensaios do brilhante crítico e ensaísta inglês (1778-1830), para quem “o homem é o único animal que ri e chora, porque é o único que se impressiona com a diferença que há entre o que é e o que devia ser”.

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