Javier Marías: ”É preciso lutar contra a coerção do medo”
Javier Marías
J. P. GANDUL/EPA
Republicação da entrevista a Javier Marías originalmente publicada na Revista E de 12 de janeiro de 2019. Tem mais de 40 livros publicados e é o maior escritor espanhol da atualidade, e nada disso aconteceu depressa. Começou cedo e foi jovem autor até se aperceber que um outro, de idêntica memória, o havia usurpado. Aos 67 anos, faz o que faz para passar o tempo. Para entender este mundo “cada vez mais estranho”
Madrid acordou em pleno furor religioso. Era Dia de La Almudena, padroeira da cidade, e houve missa na Plaza Mayor. Javier Marías ouviu-a pelos altifalantes logo cedo, e a sua rua encheu-se de orações, danças e turistas. Vive num terceiro andar na Plaza de la Villa, praceta com quatro séculos a minutos da Catedral, no meio da agitação. E, no entanto, a sala onde nos recebe é um labirinto sépia, forrado a livros, a secretária ao fundo e a máquina de escrever elétrica a surgir como única cedência tecnológica, Bach a desprender-se de um CD, soldadinhos de chumbo nas prateleiras, e fumo, fumo dos cigarros já fumados, porque ele fuma muito e não gosta de dizer quanto — “levar a contagem das coisas não tem a ver comigo” — e por isso a nuvem já faz parte do cenário. Madrid ao fundo, Bach lá dentro, e a frase “se quiser beber alguma coisa, interrompa-me” a iniciar uma conversa que durará mais de duas horas e será pontuada pelo abrir e fechar das janelas, e que no fim poderia ter voltado a começar.
Sentado na beira do sofá azul, em frente a uma mesinha baixa repleta de curiosidades — aqui volumes de “Berta Isla”, já na 8ª edição em Espanha e publicado há semanas em Portugal pela Alfaguara, ali a cigarreira inglesa que o acompanha desde os 15 anos e que, por graça, aparece no livro —, Javier Marías vai mostrar que não é um escritor em reclusão, antes um homem deste mundo. Um tradutor que gosta de olhar para uma frase durante muito tempo e descobrir-lhe o sentido escondido, e um observador agudo de um tempo estranho, em que realidade e fantasia como nunca se confundem. Aos 67 anos, o mais importante escritor espanhol da atualidade, autor de mais de 40 livros entre romances, crónicas, contos, ensaios e traduções (Stevenson, Yeats, W.H. Auden, Ashbery, Nabokov, do inglês que domina graças ao exílio do pai nos Estados Unidos e aos anos como professor em Boston e Oxford), diz que escreve para passar os dias. Para “pensar melhor”, ainda que isso mude pouca coisa. É errático, amável e tenaz. Nunca mandou um tweet na vida, dispensa redes sociais e o computador, trabalha sempre à tarde e não todos os dias, e bebe Coca-Cola enquanto deambula por assuntos como a desconfiança na palavra e o facto de só termos palavras para os analisar.
“Berta Isla” põe em causa a confiança na linguagem. Diz-nos o que já tinha assinalado noutros livros: que o nosso mundo é feito de palavras e que nelas não se confia. Porquê?
Não se trata apenas da desconfiança nas palavras, mas da convicção de que não temos a certeza de praticamente nada. Dependemos daquilo que nos é contado. Há 10 anos, no discurso da minha entrada na Real Academia Española, defendi que contar é, em última instância, falsear. Disso fala o início do “David Copperfield”, de Charles Dickens, que diz: “Para começar pelo princípio, eu nasci (ou foi isso o que me disseram e eu acredito)”. Este é um parêntesis do qual não somos conscientes. Falamos sempre de nós pressupondo que sabemos onde nascemos e quando. Porém, tomamos a decisão de acreditar, e essa decisão é o início da nossa história.
Baseamos a nossa relação com o mundo na crença, na fé?
Nas palavras, que usamos também para falar dos outros. Dizemos “a minha mãe era, o meu pai era”. E basta começar a descrever os nossos pais, sobre quem achamos saber muito, para perceber que conhecemos pouco sobre quem foram antes de serem pais. São cerca de 25 anos da vida de uma pessoa. Desconhecemos que infância tiveram, que ambições alimentaram, como se encontraram. Damos por adquirido que casaram porque se amavam, mas pode ter sido apenas uma compensação, uma saída perante a rejeição de um terceiro. Não sabemos quase nada. Por isso, um dos ardis para não cometer enganos é falar sobre o que fizemos: estudei tal coisa, fui a tal escola, frequentei a universidade, escrevi estes livros.
E não chega.
Não, porque falamos de nós omitindo o que não fizemos — os fracassos, o que não tive a coragem de fazer ou correu mal, a pessoa com quem não casei, o filho que não tive, o livro que não consegui escrever ou publicar. Tudo isso, que faz parte do que somos, é como se não contasse. Mas conta.
No livro diz: “Vamo-nos conformando com versões deterioradas do que quisemos alcançar.” Reajustamos essas versões?
Isso também, senão não aguentaríamos. Sobretudo, dependemos das versões que nos contam e das que contamos a nós mesmos. Ao mesmo tempo, contar pode ser terrível. Falei disso noutros livros, nomeadamente em “O Teu Rosto Amanhã”. Por vezes, o ato de contar traz dilemas gravíssimos, como saber uma coisa que teríamos preferido ignorar.
Conte-se ou não, existe a noção de que a nossa passagem pelo mundo não altera o curso das coisas.
O para quê da vida. Aparece muito no início do romance, quando o professor Wheeler fala sobre quem molda o mundo. Talvez alguns dos tremendos ditadores que surgiram o tenham moldado, um Hitler ou um Estaline, mas fora disso nenhum de nós toca sequer na superfície, nem tem qualquer influência em nada do que se passa. Este é o argumento principal da personagem: talvez haja uma dimensão onde é possível moldar, pelo menos um pouco, o mundo em que vivemos. Talvez as pessoas que estão na sombra, que são completamente desconhecidas e clandestinas, que “estão mas não existem”, como um espião, consigam mudar alguma coisa. Muito mais até do que as figuras publicamente expostas, como os chefes de Governo, os políticos ou as celebridades, que estão sempre sob escrutínio cerrado — da imprensa, dos meios de comunicação ou de qualquer indivíduo que tenha uma câmara.
Então é retórica dizer que se pode mudar o mundo?
O livro termina com uma frase que pode soar desoladora: somos pessoas que simplesmente estão e esperam. Isso é o que faz grande parte da Humanidade. Claro que todos procuramos tarefas, missões.
Causas?
Claro, as malditas causas. O homem procura coisas que fazer, justificações. Mas qualquer pessoa minimamente normal, que não seja megalómana, sabe que a influência que cada um pode ter é minúscula. O que não significa que as missões humildes não sejam importantes. O ato de cuidar de quem depende de mim, como os filhos, justifica que me levante da cama todos os dias de manhã. Uma coisa que me deixa perplexo é o facto de haver demasiada gente à procura de causas longínquas. Gente que fala das crianças da Índia e que não é capaz de ver as que estão ao seu lado ou no seu próprio país. É mais bonito, mais abstrato dizer que se está preocupado com a Humanidade em geral. Este tipo de causas sempre me pareceram estranhas, porque não desencadeiam ação alguma.
Mais uma vez, são formas de falar.
A Humanidade particular, aquela que está mais à mão, é a mais preocupante. Pensar o que é que realmente fazemos neste mundo. Como vamos aproveitar o nosso tempo nele.
E como responde o escritor a esta pergunta?
Tento ser modesto. Uma coisa é a razão por que comecei a escrever, e outra é porque escrevo agora, décadas depois. E, hoje, escrevo porque tenho de passar o tempo de alguma maneira. Porque não sei fazer outra coisa.
Não escreve por ter algo para dizer?
Sim, mas não ao mundo em geral. Talvez eu escreva porque é a escrever que penso melhor. Se estiver aqui em casa a olhar para o teto penso pior do que se estiver à frente de uma máquina a tentar contar uma história. Isso estimula, digamos, ideias ou reflexões — não quero ser pomposo — que de outra forma não surgiriam. Então, prefiro ter esta atividade, na qual a minha cabeça fica mais ativa, do que não a ter. Prefiro passar pelo mundo a tentar compreendê-lo. Mas não acho que isso possa ajudar alguém. Faço-o apenas para pensar melhor e passar melhor o tempo. E porque, já o disse um dia, na ficção descansa-se.
Descansa-se de quê? Da realidade?
Quando escrevo, há uma parte do dia em que deixo de estar aqui. Vou-me embora para outro mundo. E como é um mundo que estou a criar, página a página e com muito trabalho, passo o dia num lugar — agora vou usar uma expressão em desuso — de evasão.
Uma evasão que o liga ao mundo? Afirmou que a literatura é uma das poucas maneiras de saber como o mundo funciona.
De saber, de perceber, de ver. A literatura não explica o mistério: mostra-o, deixa-o evidente. É mais uma forma de reconhecimento do que de conhecimento. Gosto muito daqueles romances em que uma reflexão ou uma cena me fazem dizer: ‘Isto é assim.’ Nesse momento, estou a reconhecer algo que talvez soubesse, e que não sabia que sabia até o ver espelhado no livro. Proust foi pródigo nisto.
E Shakespeare? Os seus livros têm esta âncora.
Shakespeare tem estado sempre presente, de uma maneira ou de outra. Em geral, é na juventude que lemos os grandes autores, ou pelo menos assim era no meu tempo. Eu fui jovem nos anos 70, e havia a noção de que, para escrever, tinha de se ter conhecimento dos clássicos — quanto mais não fosse para não cair no risco de os repetir ou de pensar que se está a criar algo novo. Hoje encontro jovens com ideias geniais que não sabem, por exemplo, que Kafka já as teve há um século. Pensam que descobriram o Mediterrâneo. Mas conhecer os clássicos não significa voltar constantemente a eles. Em primeiro lugar, porque são dissuasórios. Ler ou reler Proust ou Conrad traz a pergunta sobre o que estou aqui a fazer.
Temos estado a falar disso.
É que, no todo da literatura, as páginas que escrevemos não fazem falta nenhuma. No entanto, Shakespeare tem em mim um efeito contrário: longe de me deprimir ou dissuadir, estimula-me. Resulta-me fértil, fecundo. Há tantas coisas que assinala sem aprofundar...
Como um farol?
É como se nos mostrasse caminhos secundários que ele não seguiu, mas que estão lá, e que convidam a escrever mais. Há frases que aparentemente não encerram qualquer dificuldade. Porém, se as olharmos com atenção, a clareza desaparece.
No livro, aborda o dilema da conspiração recorrendo a uma cena de “Henrique V”. Essa cena traz duplicidade e reconhecimento.
A primeira vez que citei Shakespeare foi no título de um dos meus romances, “Coração Tão Branco” (1992). Isto tem uma história por trás. Quando estava a escrevê-lo, saía todas as noites, jamais ficava em casa. Mas um dia fiquei, e passaram na televisão o “Macbeth”de Orson Welles. De repente, uma frase que tinha lido tantas vezes começou a intrigar-me. É o momento em que Lady Macbeth suja as mãos com o sangue de Duncan e diz a Macbeth, que o esfaqueou: “My hands are of your color, but I shame to wear a heart so white” [as minhas mãos são da tua cor, mas envergonho-me de ter um coração tão branco]. Não é claro o que é que ‘white’ aqui significa. Será ‘branco’ ou ‘inocente’? Outro exemplo é o início do famoso monólogo de Otelo, antes de matar Desdémona, em que ele diz: “It is the cause, it is the cause, my soul”. Não diz “this is the cause” ou “she is the cause”. O ‘it’ cria uma ambiguidade e um fosso.
O tal mistério.
É uma questão de parar, de olhar para a frase. De perguntar porque a compreendemos sem a entender.
Essa não é a pergunta do tradutor, que um dia descreveu como “aquele que renunciou à sua voz”? Como é que ter traduzido dialoga com a escrita?
Sempre disse que a tradução influenciou a minha forma de escrever. E, mesmo tendo sido escritor antes do que tradutor, uma das coisas que herdei da tradução é a sensação de conforto ao ter o primeiro rascunho de uma página. Esse rascunho é uma espécie de texto original. Uma base de trabalho, com a particularidade de poder ser mudada um milhar de vezes. Ter qualquer coisa escrita, por mais rudimentar que seja, é tranquilizador. A vantagem do tradutor é que o texto original nunca falha, e nós apenas temos de ser-lhe fiéis — o que pode dar um trabalho descomunal. Mas tem-se uma bitola, sabe-se até onde tem de se chegar.
É disciplinado?
Faço vários rascunhos de cada página. Mas não desapareço do mundo nem costumo isolar-me. Não posso. O que faço sim há vários anos é apontar na agenda as datas relevantes de cada livro. O começo, as interrupções, o número de páginas escritas a cada momento... Agora estou a escrever um texto que pode vir a ser um romance — não sei — e posso dizer que, num mês de 31 dias, só trabalhei 18.
Porque leva esse registo?
Curiosidade. Para reconstruir o tempo que me levou escrever um livro. Quer saber quantos dias passaram desde comecei “Berta Isla” até o acabar? Digo-lhe já: 770 dias. E desses só 331 foram de trabalho no livro. Não gosto de ficar obcecado. No momento em que fecho a máquina e saio para jantar com um amigo, ou estou com a minha mulher a ver um filme, prefiro que o livro fique num estado de pausa. Nesses momentos, gosto de ser alguém normal.
O que pensa desta era em que se discute, como no livro, o que é verdade e falsidade?
Vivemos numa época muito estranha. Nesse discurso que fiz perante a Real Academia Espanhola, indagava sobre os motivos por que lemos e escrevemos ficções. E dizia que tudo aquilo que é contado pelos historiadores, os cronistas e as testemunhas pode ser desmentido ou modificado. Podemos amanhã encontrar um pacote de cartas de Napoleão que lhe atribuam motivações muito diferentes das que se pensa que teve. Os cronistas escreveram sobre o que viram, para que ficasse documentado. Disseram: “Eu estive aqui, fui soldado nesta expedição”, mas a sua visão é parcial, incompleta. No meio disto, talvez seja preciso que algo possa ser contado de uma vez e para sempre. E talvez a ficção seja a forma de termos uma realidade não sujeita a desmentidos ou alterações. Dom Quixote morreu quando Cervantes quis que ele morresse, e ninguém pode dizer o contrário.
Na literatura é o escritor quem manda.
Essa é uma das razões pelas quais escrevemos e lemos romances. Porque embora sejam invenções, precisamos desse carácter definitivo. E ainda mais hoje em dia, em que há muita gente que parece ter deixado de importar-se sobre o que é ou não verdadeiro. Que pensa: eu gosto desta versão da realidade e vou acreditar nela.
Há responsáveis políticos que fazem justamente isso.
Se eles o fazem é porque há uma massa que, de forma inexplicável e medieval, abraçou a fantasia. Um negacionista do Holocausto não quer saber se há filmes, testemunhas, fotografias ou investigação que documentam o que aconteceu. Ele atém-se à tese da invenção do genocídio pelos Aliados. Não há racionalidade nesta escolha além da que decorre de pensar que cada um pode montar o puzzle da realidade ao seu gosto. Agora está na moda dizer que Colombo foi um genocida.
Andamos a reescrever a História?
Sempre houve tentativas, mas até há poucos anos mantinha-se um pé na realidade. Agora parece que já não precisamos de provas ou demonstrações. Ouvimos uma versão, gostamos e repetimos. Uma boa parte da Humanidade está instalada na fantasia — não na ficção, porque a ficção é reconhecível. Há uma velha convenção que todos compreendemos e aceitamos: a de que o autor deste livro é Javier Marías. Há uma nota biográfica, talvez uma fotografia, uma dedicatória. E a partir de um certo momento a ficção começa e ninguém tem dúvidas. É como levantar o pano no teatro. Esta convenção, aceite há séculos, deixou de ser respeitada. Regrediu-se para um certo medievalismo, que ocorre no meio de um avanço tecnológico sem precedentes.
E que talvez seja por este permitido.
Agora criticam-se os conteúdos dos romances! Há uns anos, estava eu a conversar com uma amiga editora sobre o meu livro anterior, “Assim Começa o Mal”, e às tantas ela disse-me: “A ver se da próxima vez crias mulheres menos submissas.” É verdade que havia um marido que maltratava verbalmente a mulher, mas o que diremos então de Faulkner, que na primeira cena do “Santuário” colocou um indivíduo a violar uma mulher com uma maçaroca de milho? Deixamos de ler Faulkner?
Incomoda-o a exigência de uma ficção limitada pelo que na vida é inaceitável?
Incomoda-me o moralismo que percorre este tipo de argumentos. Se um filme tem um vilão coreano, isso equivale a falar mal de todos os coreanos? Tudo é símbolo de tudo? Não. As pessoas começam a não diferenciar os campos. Nunca como hoje se julgaram as obras de ficção pelo seu conteúdo mais do que pelo seu valor literário. Há dias li uma notícia que me deixou perplexo: na onda do MeToo, umas autoras de romance policial defendiam que, neste género literário, as mulheres não fossem retratadas como submissas, femmes fatales ou assassinas. O que isto indica é uma falta de discernimento do que há séculos estava perfeitamente claro: a distinção entre o território real e o ficcional.
Extrapolando essa indistinção para outro contexto, como lê a ascensão da extrema direita e dos populismos?
É muito preocupante e perigosa. E tem a ver com o ressentimento latente na maior parte das pessoas. Algumas mais, outras menos, todas estão insatisfeitas ou invejam algo, sentem que o seu trabalho não foi suficientemente reconhecido ou veem que os outros vivem melhor. Isso nem sempre domina a personalidade, mas em certos momentos pode dominar. E quando há políticos que avalizam ou atiçam o ressentimento, ele salta facilmente. Ora, se este se tornar predominante nas relações humanas, o perigo é imenso, em qualquer época e lugar. No outro dia, li um artigo de uma brasileira que contava como, desde a vitória de Jair Bolsonaro, as pessoas se comportam como se tivessem carta branca. O que dá medo não é só este indivíduo que foi eleito, são os 56% dos votos que o elegeram. Os homossexuais e os negros estão a ser abertamente ameaçados. Isto leva a pensar que as pessoas, no momento em que veem legitimadas as suas paixões mais baixas, sentem-se no direito de atacar, insultar e ameaçar. De não esconder essas baixas paixões.
“Baixas paixões” é uma expressão dura.
É muito antiga. E podemos voltar a Shakespeare: basta que um Iago te segrede ao ouvido (ou com um megafone) as razões para alimentares o ressentimento, para que este apareça. É um sentimento muito fácil de criar — e é o que, em grande medida, ocorreu na Guerra Civil Espanhola. Os meus pais viveram-na aos 20 e poucos anos, e ouvi-os contar muitas histórias deste tipo. Além das questões políticas e ideológicas, foi como abrir a caixa dos trovões e dar licença às pessoas para cobrarem as suas vinganças.
Que rastos desse tempo observa na Espanha de hoje? Há semanas, na sua crónica quinzenal no “El País”, disse que o seu país “é tradicionalmente propenso ao autoritarismo”.
A história comprova-o, não há qualquer dúvida. Até se chegar à democracia, há 43 anos, costumava dizer-se que a liberdade em Espanha durava triénios. Sempre tivemos reis absolutistas e depois um ditador que se manteve 39 anos no poder. Por esta razão fui sempre um grande defensor da União Europeia. E chama-me a atenção que muitos jovens olhem para a minha geração com uma certa inveja, por termos vivido uma fase épica e lutado contra Franco. Ora, não desejo isso a ninguém.
É uma visão fantasiosa — usando um termo seu — do passado.
Imaginam que a guerra é um acontecimento romântico, assim como a ditadura. Falta-lhes o lado épico da vida. E veja que a minha geração nem sequer sofreu muito. Foi a dos meus pais a que padeceu a guerra civil e a II Guerra Mundial, que teve também aqui repercussões. Querem uma épica? Defendam a União Europeia de todos os ataques de que é alvo, vindos de fora e de dentro. Para mim, a UE é o equivalente à Inglaterra de Churchill — que resistiu, sozinha, até os Estados Unidos entrarem na guerra. Claro que a UE é imperfeita, burocrática e desigual, mas é uma invenção extraordinária num continente como o nosso. A Europa esteve em guerra, com umas matanças incríveis, até há 80 anos. E desde então, tirando o dos Balcãs, não tem havido conflitos. Só por isto, como é que algum europeu — húngaros, polacos, italianos — pode atacar a UE?
Volta por vezes à história do seu pai, o filósofo Julián Marías, preso durante o franquismo — que está no subterrâneo deste livro. Como é que isso o marcou?
A história aparece de forma nítida sobretudo em “O Teu Rosto Amanhã”. Na altura, pedi-lhe permissão para utilizar essa parte da sua biografia. Porque era difícil de entender que quem o delatou tenha sido um amigo íntimo, pouco tempo depois de terminada a guerra — e sob acusações falsas. Alguém que fora amigo desde o secundário e que fez com ele toda a universidade. Não sei com que idade eu soube desta história, mas foi cedo. E sempre lhe perguntei se teve algum aviso, algum sinal, como é que pôde não ver quem ele era? Como é que não viu o seu rosto amanhã? Todos já sofremos alguma traição, todos vivemos desilusões, todos tivemos surpresas deste tipo. Mas não num contexto desta gravidade. O meu pai teve sorte, esteve uns meses preso e foi libertado, mas o normal é que o tivessem fuzilado. Uma das características das ditaduras, e também da de Franco, é a necessidade de provarmos a nossa inocência — o que desde logo não é possível. E nisto estamos de novo a regredir.
Quer explicar?
Voltamos a certos primitivismos, como pedir a alguém que demonstre a sua inocência. A inocência não se pode demonstrar. A culpa sim. É um mecanismo típico da ditadura, em que basta alguém com certa credibilidade formular uma acusação para não ser posta em causa. O meu pai nunca conseguiu explicar a si próprio a razão por que foi traído, ou pelo menos isso afirmou. E esta história marcou-me, mas não me tornou desconfiado. As deceções não me impediram de continuar a confiar. Há um lema de Stevenson que diz mais ou menos assim: “Greatheart foi enganado. ‘Muito bem’, disse Greatheart.” Nessa linha tenho um lema próprio: por vezes, um cavalheiro tem de deixar-se enganar. Sabemos que estamos a ser enganados, mas deixamos.
Como Greatheart dizemos: muito bem.
Não te transformas num ingénuo, apenas concordas. E continuas. Porque, no fim de contas, é o normal. Num romance antigo meu, “Pensa em Mim”, lembro-me de ter questionado porque é que sofremos tanto quando somos enganados. Sendo parte essencial da vida, deveríamos estar habituados.
Mesmo assim, toca novamente no tema da traição e do papel da consciência individual nas situações em que um mal maior justifica um mal menor. Berta pergunta: “Como justificas isto perante ti próprio?”
É um dilema muito humano. Neste caso, dada a atividade do marido, Tomás Nevinson, que é um infiltrado, um espião — alguém que se dá a conhecer como o contrário do que é —, a pergunta prende-se não tanto com a traição ocasional, como com a traição enquanto plano de vida, premeditada e propositada. Berta é porta-voz de muitos de nós, que se questionam como é isso de entrar na vida de alguém com o objetivo de o levar à perdição ou à morte. Vivemos numa sociedade tão contraditória que até pede a transparência dos seus serviços secretos. Queremos saber o que fazem, porque o fazem com o nosso dinheiro e em nome do Estado. Mas os serviços secretos têm de o ser, que raio de exigência é essa? Como se impedem os atentados? Tomás Nevinson argumenta que sempre foi assim que se travaram as guerras.
Diz mais: diz que há guerras sempre, ainda que não as vejamos.
Segundo ele, a nossa paz assenta nessa guerra permanente e subterrânea que está constantemente a ser travada. Chega a afirmar que o facto de os correios, os autocarros ou qualquer outra coisa que damos por adquirida funcionarem todos os dias é no fundo algo de extraordinário, que acontece porque há quem faça o seu trabalho na sombra. Isso talvez seja um pouco exagerado.
Um submundo que — citando-o — “evita desgraças”?
Sim, ou algumas delas. Mas ele é só uma personagem e eu não subscrevo todas as suas opiniões. O engraçado é que, quando o livro saiu em Inglaterra, disseram num programa de rádio que eu, Javier Marías, provavelmente tinha sido espião. Como imagina, não serei eu a desmenti-lo.
Referiu que começou a escrever muito cedo. E, no livro, diz que “somos usurpados pelos adultos ou os velhos em que nos transformamos sem querer”. Como é que este escritor de 67 anos invadiu aquele que aos 19 começou a publicar?
A frase completa diz que o mundo é usurpado pelas gerações seguintes e nós pelos velhos em que nos transformamos. E subscrevo-a. No meu caso, ter começado a publicar muito cedo deu lugar a um paradoxo: senti-me adulto sendo muito jovem e fui jovem durante muito tempo, mais até do que aquele que me correspondia. Durante décadas fui o ‘autor mais jovem’ e a ‘jovem promessa’, mesmo depois dos 40 anos. Em geral, estamos instalados no mundo como crianças ou jovens ao longo de muito tempo, e isso traz a sensação de que é essa a nossa identidade. Até ao momento em que percebemos que qualquer tipo de juventude já passou. Sentimos a usurpação de alguém que veio depois, que continuamos a ser nós próprios, mas não exatamente. O ceticismo substitui a veemência, o discurso dá lugar à observação, a paixão abranda, ficamos mais calados, poupamos mais as palavras.
E quem é Javier Marías depois de tal metamorfose?
Sou um usurpador de mim mesmo. Configurei-me como criança e como jovem, essa foi a minha existência primordial e, portanto, a verdadeira. Não sei se alguma vez lhe aconteceu reunir-se com os antigos colegas de escola. Eu tive esta experiência há uns anos. E é curioso, mas todas as pessoas que o fazem sentiram o que eu senti: que esse tempo era o verdadeiro. O verdadeiro mundo era aquele, o da infância. A verdadeira vida. Queremos continuar a ser quem fomos e, quando isso já não é possível, assistimos à nossa substituição por aquele outro, que por acaso tem a nossa memória, mas que já não é a mesma pessoa.
“And in short, I was afraid.” Estas palavras de T. S. Eliot também percorrem o livro. Tudo se resume a isso?
[pausa] Sim. Temo que tenha razão. Em resumo, tive medo, todos o tivemos, e temo-lo quase diariamente. Alguns sentem-no quando se deitam, outros quando acordam de manhã. Mas é preciso lutar contra a coerção do medo, contrapor-lhe a pergunta: “para quê serve?” E vemos que não serve para muito.
Mais uma vez, responder como Greatheart o faria: “muito bem”.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes