Pedalar contra a “monotonia dos dias”: os passeios que promovem o “direito ao vento nos cabelos”
Levar a passear pessoas mais velhas, gratuitamente, como forma de enfrentar o isolamento e a solidão. Esta é a missão da Pedalar Sem Idade, uma iniciativa que fomenta o contacto entre diferentes gerações – marcado pela partilha de histórias e experiências vividas. Voluntários guiam bicicletas adaptadas para proporcionar uma hora de bem-estar
Corria o ano de 2012, o dinamarquês Ole Kassow passava diariamente, durante o trajeto de bicicleta em direção ao local de trabalho, à porta de um lar de idosos. Certo dia, decidiu oferecer-se para passear uma utente num trishaw – um veículo com três rodas e um sofá que pode transportar duas pessoas. A satisfação foi tal que passou a repetir os passeios e nasceu, em Copenhaga, o Cycling Without Age – um movimento em que voluntários passeiam pessoas mais velhas, pelo “direito ao vento nos cabelos”.
Desde então, a iniciativa espalhou-se por mais de 50 países, incluindo Portugal. A Pedalar Sem Idade surgiu em 2018 e está presente em quatro locais: Lisboa, Cascais, Castro Verde e Guimarães. Em breve, chegará a Almada e Castelo Branco. O projeto está também no Porto, com uma gestão independente.
Os passeios são gratuitos, duram entre 45 e 60 minutos e o intuito é o combate ao isolamento. “O objetivo é tirá-los da monotonia dos dias e quebrar com o estigma de que já não vale a pena. Claro que vale a pena. As pessoas merecem ser valorizadas e ser ouvidas”, diz ao Expresso a diretora executiva da Pedalar Sem Idade Portugal, Margarida Quinhones.
“Pauleta” fotografado à porta de sua casa, em Águeda. Aos 83 anos é um dos habitantes mais autónomos de uma minicidade para idosos
As rotas estão pré-definidas, mas é possível fazer adaptações. Por exemplo, em caso de mobilidade reduzida, poderá existir a hipótese de ir buscar o passageiro a casa. Esta é uma forma de proporcionar “momentos de voltar a sentir a rua, viver a cidade, passar nos sítios onde moravam ou trabalhavam”.
Qualquer pessoa pode marcar um passeio e há até instituições que têm, semanalmente, um dia e hora já definidos. “Seja com instituições, lares, centros de dia, serviços de apoio domiciliário, ou com a população em geral, temos cada vez mais pessoas a marcar: cuidadores informais, familiares, vizinhos”, conta a responsável, educadora de infância de formação.
No total, mais de 3000 pessoas já usufruíram dos passeios – só no ano passado foram 1989. Mas, mais do que números, o que importa é a “regularidade”. “Chegarmos ao fim do mês e sabermos, mais do que passear 200 pessoas, que passeámos três vezes 20 pessoas. Isto para nós é muito mais importante. Porque não é uma atividade e nunca mais nos veem.”
Se o efeito “imediato” é a “visível alegria”, em que “mesmo os mais céticos acabam por gostar e depois querem mais”, verifica-se ainda uma “redução dos índices de solidão”.“Os passeios também são complementados com uma paragem para tomar um café, com uma ida ao cinema, já aconteceu ir ao teatro. A relação pode ir além da hora do passeio”, enquadra Margarida Quinhones.
Aos cerca de 250 voluntários são pedidas duas horas por mês, o correspondente a um ou dois passeios. Quando tem disponibilidade, Raquel Coelho faz os passeios em Lisboa, depois de ter descoberto o projeto através de uma amiga e de perceber que “há muita gente isolada”. “Tenho uma vizinha no rés do chão do prédio que não sai de casa desde que começou a pandemia”, relata a voluntária de 44 anos.
O que gosta mais na experiência é proporcionar à pessoa “ver uma vista diferente e conversar com alguém diferente”, sobretudo “para quem está mais em casa”. “Têm sempre histórias para contar. É sempre bom ouvir as experiências, que variam muito”, retrata. Mas há também a expressão de quem os encontra na rua: “Irmos a passar e vermos as pessoas que vão a caminhar, e mesmo dentro dos carros, a olhar e a esboçar um sorriso, isso é muito giro de ver.”
Os voluntários recebem formação para pedalar o trishaw, mas também sobre como abordar as conversas com os passageiros. “É centrar naquela pessoa a quem estamos a oferecer o nosso tempo, para proporcionar um momento de valorização e aumento de autoestima. As memórias são sempre muitas e é extraordinário percebermos que as pessoas têm histórias de vida riquíssimas”, explica Margarida Quinhones. “A troca intergeracional é uma grande mais-valia do projeto.”
Foi o que aconteceu na primeira vez em que Raquel Coelho fez voluntariado na Pedalar Sem Idade: uma senhora com cerca de 60 anos marcou um passeio com a mãe, com mais de 80 – a que as filhas se juntaram. “Acabou por ser um passeio em família. Estava no trishaw com a mãe e a avó e depois à volta iam duas filhas a andarem também de bicicleta”, recorda.
“O objetivo é tirá-los da monotonia dos dias e quebrar com o estigma de que já não vale a pena. Claro que vale a pena. As pessoas merecem ser valorizadas e ser ouvidas”
Além do voluntariado, é possível contribuir para o projeto através de donativos. As 36 instituições parceiras, incluindo municípios, têm tido um “papel fundamental” no financiamento, isto porque “um dos princípios do movimento é a gratuitidade, ou seja, os passageiros não podem pagar os passeios porque são feitos por pilotos voluntários, que formamos, mas os passeios têm custos”, afirma Margarida Quinhones.
No caso de Cascais, por exemplo, o custo “está garantido pelo município”. Devido ao “sucesso enorme”, será necessário adquirir um segundo trishaw, uma vez que o existente “anda de segunda a domingo, de manhã e à tarde”. Além deste em Cascais, há mais nove veículos: quatro em Lisboa, três em Castro Verde e dois em Guimarães.
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