Enfrentar o isolamento e a solidão: a amizade ganha (ainda) mais importância no envelhecer
Ilustração Sara Tarita
As relações de amizade são fundamentais para o bem-estar em todas as idades, mas adquirem uma nova dimensão numa fase mais avançada da vida. Ao mesmo tempo, dados sobre o isolamento e a solidão dos mais velhos têm-se revelado preocupantes. O Dia Internacional da Amizade, data proclamada pela Organização das Nações Unidas em 2011, celebra-se neste sábado
Estudos, trabalho, casa. São inúmeros os afazeres do dia a dia. Nem sempre sobra tempo para o convívio com os amigos, cujos laços ganham novos contornos à medida que a idade avança.
“Ao longo da vida, as prioridades vão mudando. No início da vida adulta há um enfoque muito grande nos estudos e no trabalho, depois na constituição da família. Isso faz com que seja uma fase em que temos pouco tempo para nos dedicarmos às relações sociais de amizade”, assinala a gerontóloga Lia Araújo. “É algo que está a ser agravado pelo corre-corre, pelas exigências que temos em termos profissionais e pessoais.”
Depois, quando “se chega a uma fase mais avançada de vida, em que os filhos já estão orientados e o trabalho cessou, os amigos passam a ser muito importantes, passamos a precisar mais deles e temos mais tempo para estar com eles”, continua a investigadora do CINTESIS – onde faz parte do grupo AgeingC, focado no envelhecimento. Apesar de poder ser “mais complicado”, ainda é possível fazer amigos nesta fase: “É possível em qualquer idade.”
Estas relações assumem um “peso muito importante na qualidade de vida”, assim como o isolamento, a solidão e a saúde mental, e os estudos centrados nas pessoas mais velhas têm apresentado “resultados muito assustadores”, classifica a também professora da Escola Superior de Educação de Viseu. “Pensamos muito em saúde física e não tanto nestes termos”, acrescenta.
“Os efeitos da solidão indesejada e do isolamento social na saúde são comparáveis aos da obesidade, da inatividade física ou do consumo de tabaco”, lê-se numa investigação em que Lia Araújo participou, publicada no ano passado, que analisou a qualidade de vida dos idosos em Portugal, Espanha e Suécia. O documento explica que, enquanto a solidão indesejada resulta da “discrepância entre os relacionamentos que a pessoa deseja ter e os que realmente tem”, o que não implica necessariamente a falta de uma rede social, o isolamento social consiste em “ter redes sociais frágeis, seja em termos de tamanho e proximidade, seja em termos de frequência de contacto”.
A análise relativa ao nosso país indica que “entre 14% e 36% das pessoas com 65 e mais anos refere sentir sentimentos de solidão”. De acordo com os resultados provisórios dos Censos de 2021, há mais de 2,4 milhões de residentes em Portugal com 65 ou mais anos, o que representa 23,4% da população. Nesta faixa etária, 446.900 pessoas viviam sozinhas em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e da Pordata. Um estudo divulgado esta semana pela Fundação Francisco Manuel dos Santos constata que, em mais de 60% dos municípios portugueses, um em cada cinco idosos vive sozinho.
Com a pandemia, isolamento foi um vocábulo que entrou no nosso quotidiano, mas já há muito que uma parte significativa da população em grupos etários mais avançados vive neste contexto. A covid-19 veio juntar-se, assim, a um problema já existente. “A pandemia trouxe um aumento do isolamento e da solidão para todos nós, independentemente da idade”, salienta Lia Araújo. Mas há uma diferença: “Os mais jovens têm mais facilidade em recuperar as relações que perderam ou o afastamento que tiveram. Os mais velhos poderão ter mais dificuldade em recuperar esse tempo e essas relações.”
Para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, o retrato do isolamento dos idosos em Portugal resume-se numa palavra: exclusão. Na opinião de António Tavares, “os idosos e o problema do envelhecimento em Portugal não estão a ser vistos como uma política pública, que deveria olhar para as questões da demografia do país e para a fase de transição das pessoas que saem da vida ativa, ficam na aposentadoria e nesse período de tempo vivem, graças ao aumento da esperança de vida, um período substancial – há quem viva 25, 30 anos mais”.
Na opinião do provedor, é “fundamental que se inscreva na agenda política a questão do envelhecimento”. Tal significa “ceder meios orçamentais para que se possa fazer mais e melhor”. Quanto à organização do Estado neste âmbito, António Tavares classifica o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social como “muito grande” e argumenta que “a questão social devia ter uma maior articulação com a questão da saúde”, de forma a existir um “trabalho em conjunto” e uma “política integrada”.
Além de uma “resposta em termos sociais e políticos”, a nível individual “está nas mãos de todos nós” estar mais atento às pessoas mais velhas que nos rodeiam, “de forma a identificar se estarão a sentir-se sozinhas e a poder fazer algo no caso de isso acontecer”, destaca Lia Araújo. É essencial a “identificação das pessoas que estão numa situação de solidão e de isolamento social” para depois “implementar programas que fomentem a sua integração na sociedade”. Estas intervenções apresentam melhores resultados quando são “multidisciplinares e multidimensionais, ou seja, são de vários profissionais e de vários setores”.
De forma a “alterar o paradigma de abordagem a estas questões”, António Tavares considera que, antes de mais, é necessário perceber que “a institucionalização não será a única resposta”. “As pessoas devem ficar em suas casas o máximo de tempo possível e devem ter o apoio domiciliário necessário para isso”, defende. Este apoio já não se trata apenas da alimentação, higiene e limpeza da casa, mas também de “levar tecnologia e a própria saúde até aos idosos”.
Aos lares, as pessoas estão a chegar com “idades muito avançadas, na casa dos 80, 85 anos”, num modelo a que o provedor aponta “algumas restrições de movimento”, com os utentes “numa posição muito estática entre a ida das famílias para as visitas e saídas pontuais para determinadas situações”. Lia Araújo exemplifica: “Posso estar rodeada de pessoas, por exemplo numa estrutura residencial onde vivem mais 100 pessoas da minha idade, mas não sentir relação afetiva com nenhuma delas. Isso é que leva ao sentimento de solidão.”
No combate ao isolamento dos mais velhos, são inúmeras as instituições que desempenham um papel fulcral. Neste apoio, como é o caso daquele que é prestado pelas Misericórdias, António Tavares salienta a existência de uma “vantagem muito grande” – a presença “em todo o território nacional”. “Há uma ideia de rede: desde o Minho ao Algarve até às regiões autónomas, estas instituições estão inseridas em todos os concelhos, em todas as freguesias. É esta rede que vai ajudando a colmatar as deficiências do próprio sistema.” Apesar das dificuldades, por muitas vezes faltarem meios, estão “preparadas para dar a resposta”.
“As instituições têm inovado imenso do ponto de vista social. Está-se hoje já a trabalhar em novas formas de apoio domiciliário, mais tecnológicas e mais interativas”, destaca o provedor. A redução do “fosso digital”, através de intervenções na “área da capacitação e literacia digital” dos mais velhos é, aliás, um “contributo importante para a redução da solidão”, aponta Lia Araújo. “Basta ver o que aconteceu na pandemia: as tecnologias foram importantíssimas. Não substituem o contacto humano, mas podem ser um complemento muito interessante.”
Durante esse período, militares da GNR deslocaram-se com tablets às residências de idosos sinalizados para que, através de videochamadas, conseguissem contactar com as famílias. Desde 2011 que a GNR dinamiza anualmente a Operação Censos Sénior, com o objetivo de “garantir um conjunto de ações de patrulhamento e de sensibilização à população mais idosa, que vive sozinha, isolada ou sozinha e isolada”.
De acordo com dados disponibilizados pela força de segurança ao Expresso – relativos aos últimos cinco anos –, depois de o número de idosos sinalizados nesta condição ter sido praticamente igual em 2017 e 2018 (45.516 e 45.563, respetivamente), desceu em 2019 para 41.868 e, nos dois anos seguintes, voltou a subir: 42.439 em 2020 e 44.484 no ano passado.
Na edição de 2021, os distritos de Vila Real (5191), Guarda (5012), Viseu (3543), Faro (3521), Beja (3411) e Bragança (3343) registaram os valores mais elevados. Em distritos como Guarda e Viseu, a GNR desenvolve o projeto de teleassistência eGuard, em parceria com câmaras municipais, que assegura um acompanhamento permanente de quem se encontra isolado ou com alguma dependência, incluindo a possibilidade de pedir ajuda através do dispositivo, em caso de necessidade.
A nível territorial, Lia Araújo acredita que “as pessoas sentem-se mais sozinhas nos meios urbanos”. “Nos meios mais interiores há muitas ligações por exemplo com os vizinhos, que são importantíssimas na parte social. Nas cidades não é tão fácil isso acontecer.” A investigadora indica ainda que a questão é “transversal para homens e mulheres”. “Às vezes pensamos que são as mulheres que se sentem mais sós, mas não necessariamente. Se calhar elas verbalizam mais esse sentimento”, justifica.
Este texto faz parte do projeto “Longevidade: um novo desafio”, lançado pelo Expresso em 2022, em parceria com a Fidelidade e Novartis
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