“Uma consulta é uma janela aberta para a vida das pessoas”: prescrever ginástica, dança ou convívio já faz parte das receitas
Westend61
A prevenção e a promoção da saúde estão na base da prescrição social, um movimento que chegou a Portugal em 2018 para dar respostas não médicas que melhoram a qualidade de vida e o bem-estar. Através da articulação entre cuidados de saúde e sector social, a comunidade trabalha em conjunto e centrada nas necessidades das pessoas. O Expresso retrata o projeto que já chegou a 900 utentes, a propósito do Dia Mundial da Saúde, que se assinala nesta sexta-feira
Quando os ponteiros do relógio se aproximam das 13h45, Maria Helena Alves apressa a filha: está na hora de ir para o centro de convívio da Voz do Operário. Desde novembro que as tardes desta octogenária são preenchidas com atividades tão variadas como dança, ginástica ou trabalhos manuais – uma “grande mudança” face ao que era o seu quotidiano.
Antes, “a vida dela era em casa”, limitando-se a passar “do sofá para a cama e da cama para o sofá”, recorda a filha, Isabel Rodrigues. Por ter perdido parte da visão, sentia receio de sair sozinha. Tudo mudou quando, depois de um internamento hospitalar, lhe foi sugerida a integração no centro. “A minha vida era pior. Agora é uma maravilha”, resume Maria Helena.
Tal foi possível no âmbito da prescrição social, um projeto que começou a ser implementado em Portugal em 2018, pelas mãos de Cristiano Figueiredo, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). “A prescrição social pretende dar resposta às necessidades sociais, emocionais e práticas das pessoas que recorrem aos cuidados de saúde. Essa resposta é dada através da articulação com uma série de serviços e recursos que existem na comunidade e que são capazes de melhorar a vida da pessoa, o seu bem-estar e saúde”, explica o médico de família.
Questões como o rendimento, as condições habitacionais ou o isolamento, apelidados de “determinantes sociais”, são fatores que “acabam por influenciar, e muito, a saúde”, tanto física como mental, refere Sónia Dias, diretora da ENSP e co-coordenadora do projeto. Algo que foi “ainda mais visível pós-pandemia, em que desigualdades sociais, carências económicas e alguma fragilidade e exclusão social realçaram o peso que estas áreas têm na saúde das populações”.
Cristiano Figueiredo conta que, muitas vezes, o utente surge na consulta com sintomas como “andar mais ansioso ou deprimido”. “Se o médico tiver tempo e conhecer a pessoa, pode perceber que por trás disso existe algum contexto social mais adverso. Uma consulta é uma janela aberta para a vida das pessoas.” São exemplos os casos de receio de despejo, dificuldade em pagar as contas ou a diminuição de contactos sociais e ausência de um propósito de vida após a reforma.
Estes são assuntos, acrescenta Sónia Dias, que ocupam “mais de 20% do tempo de consulta” e que não têm resposta nesse contexto. Mas as soluções existem e, quando o profissional de saúde entende que o utente poderá beneficiar, encaminha-o para a prescrição social – onde irá, juntamente com um assistente social, desenhar um plano de intervenção.
“Tentamos chegar ao encontro daquilo que as pessoas gostam mais de fazer, uma resposta que se adeque aos seus interesses e que queiram depois continuar”, explica Diogo Silva, um dos assistentes sociais do projeto. Fazer voluntariado, entrar numa universidade sénior, integrar um grupo de teatro ou praticar uma atividade desportiva são algumas das possibilidades.
“Ir ao médico e este, em vez de sugerir realizar um exame ou prescrever algum medicamento, sugere entrar em alguma atividade na comunidade, é uma abordagem simples, praticável e que pode fazer uma grande diferença no tipo de cuidados que prestamos e na forma como as doenças evoluem”, defende Cristiano Figueiredo.
No caso dos mais velhos, “mudar comportamentos nem sempre é muito fácil”, mas “quando a pessoa tem mente aberta e está recetiva a tentar algo novo, muda-se quase uma vida”. “As pessoas sentem-se melhor, o que é muito importante tendo em conta que os portugueses, apesar de viverem muitos anos, consideram o seu nível de bem-estar e saúde mau. Há também melhorias de sintomas físicos, sentem-se mais ativas, com menos dores. Sobretudo, sentem-se parte de uma comunidade.”
Foi o que aconteceu com Maria Helena, um “caso de sucesso”, segundo Diogo Silva, que acompanha a participação dos utentes depois de integrarem as atividades, incluindo através de feedback transmitido pelas entidades parceiras. “Foi do 8 para o 80 porque, inicialmente, não queria e acabou por gostar muito. Está mesmo interessada, sai de casa e sente-se feliz”, destaca o assistente social. É a própria quem o confirma: “Vou para falar, brincar, rir. A gente dança, baila. Acho que a mais alegre sou eu.”
Em Portugal, este é um “movimento ainda muito inicial”, mas que tem vindo a crescer, aponta Sónia Dias. Começou na USF da Baixa, em Lisboa, estendendo-se desde então a cinco unidades do ACES Lisboa Central: Mónicas, Penha de França, Ribeira Nova, Almirante e Sétima Colina. No total, “já foram referenciadas cerca de 900 pessoas”. A ENSP está também a trabalhar com algumas autarquias que demonstraram interesse em implementar o projeto.
A origem remonta a 2015, quando Cristiano Figueiredo esteve duas semanas no Reino Unido, ao abrigo de um programa Erasmus+, numa altura em que ainda estava a fazer a especialidade em medicina geral e familiar. Foi aí que viveu, pela primeira vez, a experiência de uma “abordagem muito comunitária” entre saúde e associações locais e que conheceu o médico responsável por um projeto-piloto de prescrição social em Hackney, Londres.
Regressou a Portugal e a ideia não lhe saiu da cabeça: começou a estudar o assunto e trouxe o conceito para o país – alvo de crescente interesse. “Não há semana em que não seja contactado por colegas de diferentes regiões a pedir algum tipo de apoio ou orientação para como começar o processo nas suas áreas”, relata. No Reino Unido, a prescrição social foi incorporada no serviço nacional de saúde em 2019, algo pioneiro a nível global.
“As pessoas sentem-se melhor, o que é muito importante tendo em conta que os portugueses, apesar de viverem muitos anos, consideram o seu nível de bem-estar e saúde mau.”
Para o especialista, “é o momento certo para este tipo de abordagem: intersectorial, participativa, em que equipas de saúde se juntam com associações, juntas de freguesia, IPSS, organizações não-governamentais, para identificar não só necessidades das pessoas, mas também para trabalhar os recursos para suprimir essas necessidades”.
No contexto português, é favorável o facto de, nos cuidados de saúde primários, os utentes serem quase sempre acompanhados pelo mesmo médico, “algo que não é assim em todos os países”. “Haver essa continuidade de cuidados estabelece uma relação de confiança em que o médico e o paciente ficam-se a conhecer um ao outro. O médico conhece a história de vida e o contexto daquela pessoa, não só social, cultural, até económico.”
Sónia Dias salienta que a prescrição social “pode ser uma resposta aos desafios que o sistema de saúde tem neste momento”, nomeadamente questões ligadas com o envelhecimento, aumento das doenças crónicas e estilos de vida não saudáveis. Cristiano Figueiredo aponta para a necessidade de uma “clara aposta”: lá fora, projetos com “financiamento e acompanhamento adequados” conseguiram “reduzir o uso de consultas, idas ao serviço de urgência e a utilização de medicamentos”. E, antes de mais, “melhorar a vida das pessoas com cuidados de saúde mais holísticos e uma visão mais abrangente do que é o bem-estar”.
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