Rir pode ser um dos remédios: a experiência de “credibilizar o riso” e unir humor e medicina
Ilustração Sara Tarita
Além de contribuir para o bem-estar, o humor tem vários benefícios terapêuticos. Carlos Vidal, médico e humorista que estudou o tema, partilha o que une as duas áreas e como utiliza o humor na relação com os doentes, em particular a vivência com os mais velhos
Que o humor tem a capacidade de nos fazer sentir melhor, mesmo que seja por breves instantes, provavelmente já todos o experienciámos. O humano é o único ser vivo que ri, mas estudar o riso não é tarefa fácil. Afinal, que benefícios tem o humor e de que forma pode integrar a abordagem clínica?
Foi a esta pergunta que o médico e humorista Carlos Vidal se propôs responder na dissertação de mestrado, concluída em 2014 na Universidade da Beira Interior. Além de o humor ser uma área pela qual tinha interesse, sentia que havia um foco da medicina nas emoções negativas. “As emoções negativas estão muito bem estudadas e as emoções positivas acabam por estar muito subvalorizadas”, aponta em conversa com o Expresso.
“O estímulo que nos faz rir é diferente de pessoa para pessoa e a grande dificuldade em estudarmos o riso é essa. Todos nós nos rimos, mas não nos rimos todos da mesma coisa”, explica. Além disso, há a questão da duração: enquanto um estado de tristeza é “mais prolongado no tempo” – e, por isso, mais fácil de estudar –, o riso pode durar apenas segundos, o que torna a análise “desafiante”.
Mesmo assim, seguiu o objetivo de “credibilizar o riso” e “estudá-lo de uma forma científica”. Concluiu que o humor tem benefícios terapêuticos em pessoas saudáveis e também com patologia, nomeadamente eczema atópico, diabetes tipo 2 e infertilidade. São inúmeras as vantagens: redução do stress, diminuição da pressão arterial, relaxamento muscular e aumento do limiar da dor, além de queimar calorias, estimular o cérebro, contribuir para o controlo da diabetes e ajudar na fertilidade.
O interesse na área tem vindo a crescer desde os anos 60, altura em que William F. Fry, professor da Universidade de Stanford, se tornou o primeiro especialista em gelotologia – o estudo científico do riso. Carlos Vidal considera haver ainda muito por investigar neste campo. “É uma área que tem uma margem tremenda para evoluir porque, na perceção de que benefícios é que traz andarmos bem-dispostos, acho que as pessoas cada vez mais estão viradas para isso.”
Ao contrário do que diz o ditado popular, rir não será o melhor remédio, mas é um complemento importante para o bem-estar. “Às vezes estamos tão embrulhados naquilo a que chamamos vida, nas coisas que vão acontecendo no dia a dia, que o riso vai ficando esquecido e pensamos: ‘Se calhar não rio com vontade há muito tempo’. Se de facto traz alguns benefícios, é cultivarmos essa vontade de rir e esse bem-estar”, ilustra.
Na relação entre médico e doente, o humor pode ser uma ferramenta a fazer a diferença. Através da experiência nas duas áreas, o especialista em medicina geral e familiar estabelece um paralelismo. “A medicina identifica-se muito com o humor porque temos sempre de fazer uma leitura da pessoa que está à nossa frente. Se estou num espetáculo, tenho de perceber o público e, com o meu discurso, como é que vou chegar a ele. Isto acontece na prática clínica. Tenho de perceber com a pessoa de que forma é que consigo chegar a ela.”
É por isso que utiliza o humor no dia a dia enquanto profissional de saúde, como um recurso que funciona como “elemento aglutinador” e que “consegue quebrar barreiras”. “Na minha prática clínica o humor é essencial porque consigo quebrar o gelo e fazer com que a relação médico-doente se fortaleça. Acredito muito que o humor na prática clínica se converte em empatia. Consigo, através do humor, perceber até onde é que posso ir, como é que a pessoa está a sentir aquele problema e isso acaba por nos aproximar.”
Por outro lado, salienta que há também a possibilidade de uma “cisão”, isto é, “uma piada errada na altura errada pode criar um distanciamento com o doente ou com o público e nunca mais há forma de voltar ao que era”. Daí a necessidade de fazer uma “gestão da expectativa”. “No humor, há a expectativa das pessoas que vão e querem rir-se e tenho de lidar com essa expectativa, porque é sempre um público heterogéneo. Na medicina, há a expectativa das pessoas que vêm com um problema e querem-no ver resolvido.”
O rio Tejo passa a dividir as estatísticas regionais Foto: Getty Images
O que o levou à especialidade de medicina geral e familiar foi a “ideia apaixonada de tratar e cuidar”, com a possibilidade de acompanhar as diferentes fases ao longo da vida, desde a gravidez ao nascimento, passando pelos vários períodos de crescimento, a idade adulta e o envelhecimento.
Com os doentes mais velhos, vivencia uma “relação muito bonita”, onde o humor assume um papel “preponderante” para a “proximidade, carinho e atenção”, necessidades que “todos temos, mas que ficam exacerbadas com a idade”. No entanto, acontece muitas vezes “não se permitirem rir”. “Crescemos um bocado com esta ideia de que o riso, às vezes, não é uma coisa muito bem vista e parte de nós também mudar esse conceito e percebermos que não é por nos rirmos que os assuntos perdem seriedade ou credibilidade.”
A verdade é que há momentos em que não existe margem para tal. “Uma coisa que acontece muito com os idosos é quando perdem um ente querido, muitas vezes o marido ou a mulher, o que tem um impacto sentimental gigante, o humor na fase inicial não entra. Não há um espaço de manobra porque é tudo visto quase como uma agressão”, exemplifica.
No entanto, à medida que vai acompanhando a pessoa, também consegue estar sensibilizado para a respetiva evolução. “Aos poucos, quando começa a haver uma aceitação e percebemos que o humor começa a ser pontualmente bem-vindo, é sinal de que começamos a progredir nesta escala do luto.”
No fundo, trata-se de “desmistificar a ideia de que o riso é sempre bem-vindo, que não é”. A questão do isolamento e da solidão nesta faixa etária mais avançada é um fator que contribui para a “recetividade que as pessoas têm ao riso”. “Uma pessoa quando está triste tem de sentir que pode estar triste e que se pode permitir a estar triste. Há um espaço e um tempo que têm de ser respeitados”, justifica.
Neste contexto, Carlos Vidal considera que é também papel dos médicos colaborar para “dar sentido à vida das pessoas”. “Isso reflete-se na redução do isolamento, em manter a pessoa ativa, útil, e há várias formas, varia de pessoa para pessoa, de isso acontecer”, destaca. “Não é só curar porque tratar é uma coisa muito holística e muito completa.”
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes