David Neeleman: "Os €55 milhões que recebi para sair da TAP não foram um bom negócio para mim, aliás nem queria sair"
David Neeleman diz que a TAP em 2015 valia menos que “zero”
José Caria
David Neeleman, antigo acionista da TAP, garante, em entrevista por escrito ao Expresso, publicada agora na integra, que nunca quis sair da companhia portuguesa, afirmando que foi forçado a fazê-lo pelo então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, sob ameaça de nacionalização. Assegura que os €55 milhões que recebeu quando saiu, em 2020, foram um mau negócio para si e esclarece que foi ele quem foi ter com a Airbus para propor a troca da frota, negócio que permitiu capitalizar a transportadora
David Neeleman, antigo acionista da TAP, esclarece em entrevista por escrito ao Expresso que foi ele quem propôs à Airbus a troca da frota das 12 aeronaves A350 pelos 53 aviões da família Neo, operação que lhe deu acesso a 226,75 milhões de dólares, verba que usou para capitalizar a transportadora e concluir a privatização de 2015. Operação que defende ser “transparente” e do conhecimento da Parpública e do Governo de Passos Coelho desde o início, e depois do de António Costa.. Assegura que não quis sair da TAP em 2020, e que saiu apenas porque foi forçado pelo então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, sob ameaça constante de nacionalização.
Na entrevista, a primeira que dá desde que saiu da empresa em outubro de 2020 e que é agora publicada na íntegra, explica como se tornou acionista da TAP, depois de uma chamada feita em 2014 pelo antigo presidente Fernando Pinto, e avança que não teria ido à privatização de 2015 sem a existência do acordo de troca da frota com a Airbus, instrumento essencial para mudar a estratégia e capitalizar a transportadora, que estava então “em falência iminente”.
"Não teríamos participado [na privatização]", salienta. Em resposta às conclusões do relatório da Inspeção-Geral das Finanças (IGF), publicado em meados de setembro, onde é acusado de ter capitalizado a TAP com garantias dadas pela própria companhia à Airbus, afirma que os 226,75 milhões de dólares dos chamados “Fundos Airbus” ficaram na transportadora quando ele saiu, e explica que não havia uma capitalização mínima imposta pelo caderno de encargos da privatização feita no governo de Pedro Passos Coelho, e que foi ele quem propôs aquele montante.
O empresário avança que recebia da TAP apenas 100 mil euros anualmente, como todos os administradores não executivos, e que nunca pagou um euro da companhia a ninguém, dizendo que quem mexia na parte financeira da transportadora portuguesa era David Pedrosa. “Confio que tenha feito tudo bem”, sublinha, Tece duras críticas ao Governo de António Costa, que acusa de não ter cumprido o acordo assinado em 2017, na altura da reversão da privatização, nomeadamente em relação à estreia em bolsa, o que o surpreendeu."Nunca tinha tido um governo como sócio, e confesso que não foi uma boa experiência", salienta. Rejeita a ideia de que os aviões comprados à Airbus tenham sido negociados acima do valor de mercado. Contesta algumas das conclusões da IGF e afirma que não cometeu qualquer ilegalidade, nem teme qualquer processo.
Como ficou a saber que o Governo português pretendia privatizar a TAP? Foi alguém ligado à TAP, nomeadamente Fernando Pinto que o contactou, o foi o governo português?
Penso que terá sido em 2014. Passou muito tempo, foi há 10 anos, mas lembro-me de ter recebido uma chamada de Fernando Pinto. Conhecia-o das reuniões da indústria. Falou-me da TAP, perguntando se eu não queria ser candidato, que seria muito bem-vindo, que a TAP precisava de alguém com a minha experiência e conhecimento no setor. Depois disso, tivemos algumas conversas com ele e também com o Governo, nomeadamente com o secretário de Estado, Dr. Sérgio Monteiro, que era o responsável pelo processo.
Mostrou imediatamente interesse em participar na privatização e avançar com uma possível compra?
Na altura, eu não conhecia Portugal e ainda estava muito focado na Azul [transportadora brasileira que fundou e de que hoje é acionista minoritário]. O que sabia da TAP era que tinha uma boa posição no Brasil, mas que estava com uma situação financeira difícil. Quando decidimos avançar com o processo, estivemos em contato com alguns possíveis parceiros portugueses e acabámos por chegar a acordo com o empresário Humberto Pedrosa, que tinha boa reputação em Portugal. Criámos, em conjunto, a Atlantic Gateway para concorrer à privatização. O primeiro passo foi um trabalho de due diligence à empresa. Constatámos que a situação era muito má, com capitais próprios muito negativos e uma enorme dívida. As avaliações da empresa, encomendadas pelo Governo para o processo, estimavam um valor que podia ir até cerca de 500 milhões de euros negativos.
Quem decidiu avançar com a privatização e encontrar uma forma de capitalizar a TAP, que estava descapitalizada na época, envolvendo a Airbus e trocando a encomenda do A350 por A320, A321 e A330?
Depois de estudarmos a fundo a situação, acabámos por concluir que, além de dinheiro fresco para a TAP, era fundamental a renovação da sua frota muito envelhecida, sem a qual seria impossível a empresa ter futuro e crescer. Por outro lado, dada a posição geográfica única de Lisboa, pensámos que seria estratégico que esse crescimento passasse por criar um novo mercado para a TAP, os EUA. Mercado que conheço muito bem, reduzindo assim a dependência do Brasil e as oscilações do real com a solidez do dólar.
A TAP tinha apenas duas rotas para os EUA e não diárias, Newark e Miami. Hoje, tem 9 rotas e algumas delas com vários voos por dia. Criámos um novo mercado para a TAP, mas sobretudo para Portugal. Pusemos Portugal na moda para os americanos, com tudo de bom que isso tem trazido de investimento para Portugal e não só no turismo. É um legado de que muito me orgulho ter deixado para o país. E era possível crescer mais no Brasil, criando uma maior conectividade interna e para isso faríamos um acordo com a Azul, que é a companhia brasileira com mais rotas internas no Brasil. Nessa altura, concluímos que os aviões ideais para toda essa nova estratégia eram os novos Neo que a Airbus estava a produzir.
David Neeleman diz que a TAP em 2015 valia menos que “zero”
David Neeleman e Humberto Pedrosa assinam a compra da TAP sob o olhar de Pires de Lima e Maria Luís Albuquerque, então ministros da Economia e Finanças, respetivamente.
José Carlos Carvalho
Achou que os novos modelos A320, A321 e A330 seriam estrategicamente mais interessantes para a TAP do que os A350?
Sim, claramente, os Neo eram aviões muito mais eficientes que os A350 e com a capacidade e autonomia necessárias para os destinos que pretendíamos alcançar com o nosso plano estratégico. Mas o modelo que foi e continua a ser um game changer é o A321 Neo Long Range, que batizei como Lisbon Range. Quando tivemos essa visão estratégica, esse avião ainda estava em projeto pela Airbus. Sermos os primeiros a lançá-lo dava-nos a vantagem competitiva de anteciparmo-nos aos nossos concorrentes dos dois lados do Atlântico. Este avião foi um sucesso e continua a ser muito desejado. A nossa visão estava certa e foi confirmada pelo tempo e pelo mercado. Aliás, será com este modelo em narrowbody que a Breeze passará a voar para os Açores [entrada prevista para 2025].
Foi David Neeleman que abordou a Airbus com este plano? Qual foi a reação do fabricante de aeronaves?
Nessa altura, sabíamos que a TAP tinha uma encomenda para os A350 e que eram apenas 12 aviões. Além de não serem o modelo mais adequado para a nossa estratégia, a quantidade era insuficiente para renovar a frota. A TAP precisava de muito mais aviões de nova geração, mas económicos e confortáveis. E aviões de vários tamanhos para atacar o mercado americano e para fazer o médio e longo curso. A TAP é uma companhia em que o short haul [rotas curtas] alimenta o long haul [voos de longo curso]. Esta estratégia não se conseguia com 12 aviões muitos grandes e elevados custos de capital e operacionais. A nossa estratégia revelou-se ganhadora.
“As negociações foram longas e complexas devido à situação financeira dramática da TAP”
O facto de a DGN [empresa de David Neeleman] ter uma relação de longa data com a Airbus ajudou?
Claro que sim. A minha relação com a Airbus é muito antiga, desde os anos 90, em que fundei a JetBlue nos EUA com aviões Airbus. Foi a primeira grande companhia low cost no Mundo a não utilizar a Boeing. Depois fundei a Azul no Brasil, também com muitos aviões Airbus. As negociações foram longas e complexas devido à situação financeira dramática da TAP e ao risco de incumprimento que apresentava para a Airbus. Eles estavam preocupados com o não pagamento da encomenda dos A350 pela TAP e era um bom negócio para eles a troca dos 12 A350 pelos 53 Neo. Havia companhias aéreas interessadas nos A350 para as rotas asiáticas. Era um win win para todos. Para a TAP, que ficava melhor servida com uma frota inteiramente renovada e para a Airbus, que ajudava a salvar o seu cliente porque confiava em mim, conhecia a minha estratégia, sabia que em pouco tempo seríamos donos de 100% da TAP e que iríamos colocar a TAP a crescer, cumprindo as suas responsabilidades futuras.
Quando é que o governo português e a Parpública se envolveram no processo que levou à mudança de encomenda da Airbus? Foi antes da proposta vinculativa da DGN? Quais foram os responsáveis portugueses mais envolvidos no plano?
Tudo isto foi há 10 anos, mas recordo-me que quando conseguimos fechar com eles [a Airbus], explicámos tudo ao Governo e à Parpública. Nada ficou por dizer. A Airbus escreveu uma carta [em setembro de 2015] explicando que só faria o negócio porque era comigo e não aceitaria fazê-lo com a TAP sem mim como acionista, nem sequer autorizaria que a TAP “vendesse” a encomenda dos A350 a outra companhia. A encomenda dos A350 não poderia ser monetizada pela TAP. Foi tudo transparente e o Governo aprovou, porque sabia que era no melhor interesse da TAP. Estranhei por que razão a IGF, no seu relatório, ignorou essa carta da Airbus.
Quando aceitaram que o Estado tivesse de novo o controlo da TAP, Humberto Pedrosa e David Neeleman estavam longe de adivinhar que cinco anos depois a companhia voltaria a ser pública
PEDRO NUNES/LUSA
Reitera que o governo de Pedro Passos Coelho e o governo de António Costa estavam sempre cientes do plano de troca de encomenda na Airbus e da entrada dos 226,75 milhões de dólares para capitalização da TAP?
Claro que sim. Não houve processo mais transparente. Quando vencemos a privatização, pagámos ao Estado 10 milhões de euros, que foi o preço acordado para a compra de 61% das ações da TAP. Isto, por uma empresa, recorde-se, que tinha valor muito negativo. Uns dias depois e como previsto, no primeiro Conselho de Administração da TAP, com a nossa participação e com todos os administradores, incluindo os da Parpública, convidámos a consultora Seabury para fazer uma apresentação a explicar detalhadamente o negócio e os contratos com a Airbus. Foi aprovado, com o voto unânime de todos os administradores.
Depois, quando o Governo de António Costa entendeu fazer a reversão parcial e negociámos os novos termos do acordo de acionistas, com Pedro Marques e Diogo Lacerda Machado, todos sabiam. O próprio Lacerda Machado confirmou isso, na sua audiência na comissão parlamentar. E ninguém quis reverter esse negócio porque, evidentemente, foi um ótimo negócio para a TAP.
“Ao contrário do que alguns políticos de esquerda disseram em Portugal, não comprámos a TAP com o pelo do cão porque o cão não tinha pelo”
A DGN teria participado na privatização da TAP sem este acordo com a Airbus?
Não teríamos participado. Como disse, a nova frota era um ponto fundamental para a execução da nossa estratégia para a TAP e sem a troca de encomendas tal não teria sido possível. Também recordo que a troca de encomendas permitiu que a Airbus libertasse mais de 200 milhões de dólares para capitalizar a TAP. Não havia um valor mínimo obrigatório de capitalização da TAP nas regras do concurso. Fomos nós que conseguimos negociar com a Airbus esse montante e o incluímos no nosso business plan/proposta para a TAP e que o Governo aceitou. Essa quantia entrou 100% na TAP para pagar despesas e salários que estavam em atraso.
Recordo que um dos primeiros pagamentos que fizemos foi à Galp, para pagar fuel sem o qual os aviões não podiam voar. A situação era crítica. Aceitei que esse valor ficasse na TAP por 30 anos porque na realidade, apesar de ter sido eu a conseguir negociá-lo, nunca esperei que fosse reembolsado. O meu objetivo era valorizar a TAP. Esses créditos ficaram na TAP e foram muito úteis à empresa. Quando saí, o Estado penso que terá capitalizado esses créditos. Já disse que esses fundos que consegui negociar com a Airbus, em conjunto com os montantes que eu e o meu sócio desembolsámos diretamente em prestações suplementares, e o empréstimo da Azul, salvaram a TAP em 2015 de uma falência iminente. Sem isso, a empresa já não existiria. Por isso, ao contrário do que alguns políticos de esquerda disseram em Portugal, não comprámos a TAP com o pelo do cão porque o cão não tinha pelo. Estava totalmente descapitalizada e nem a encomenda dos A350 tinha qualquer valor para a TAP.
A TAP pagou mais pelos novos aviões A320 e A330 do que os seus concorrentes, com tem sido admitido, inclusive pela gestão?
Quanto ao preço dos aviões, também já disse nas respostas que dei ao Parlamento que entregámos ao Governo nove avaliações independentes, de empresas com grande reputação. Todas confirmaram que o preço era de mercado. Aliás, como sabe, no nosso contrato de compra e venda assinado com o Governo de Passos Coelho, após dois anos, passaríamos a ter 100% da TAP. Faria algum sentido estarmos a aceitar pagar mais do que o valor de mercado, criando custos que passariam a ser 100% nossos? Além disso, quem compra os aviões não são as companhias aéreas, mas grandes empresas de leasing. Alguém com juízo pensa que essas empresas aceitariam comprar aviões a preços inflacionados, com o risco de incumprimento do pagamento das rendas dos leasings que a TAP apresentava na altura?
“A TAP, depois de passar a ter gestão pública, nunca me fez qualquer pergunta sobre o negócio [e o preço dos aviões]. Teria esclarecido qualquer dúvida”
A auditoria pedida à consultora Airborne pela TAP pública na gestão de Christine Ourmières-Widener, para a avaliação do preço dos novos Neo, por suspeita de terem um preço acima do mercado, foi lida por si como uma reação ao pagamento de 55 milhões de euros do Estado português para sair?
Não tenho informação sobre isso. Só sei que a TAP, depois de passar a ter gestão pública, nunca me fez qualquer pergunta sobre esse negócio. Teria esclarecido qualquer dúvida. As únicas questões que tive, em quase 10 anos, foram as perguntas da comissão de inquérito do parlamento, que respondi detalhadamente. Quanto aos 55 milhões que recebi para sair, posso dizer que não foi bom negócio para mim. Aliás, por mim não teria saído nem pedi para sair. Fui forçado pelo ministro Pedro Nuno Santos a negociar, pois ameaçava constantemente com a nacionalização. Preferi um mau acordo do que ir para tribunal discutir com um Estado, o que poderia levar anos.
O Governo português, por razões ideológicas, quis ter a TAP de volta ao Estado e em vez de ir pela solução que todos os Países da União Europeia optaram no Covid, de emprestarem às companhias de aviação e se estas não reembolsassem ao fim de alguns anos, então sim, capitalizar. Optou por capitalizar imediatamente. Foi um erro. Pelas nossas contas, um empréstimo de mil milhões teria sido suficiente. E já teríamos reembolsado ou estaríamos a reembolsar. É preciso lembrar que em fevereiro de 2020, mesmo antes do Covid, tínhamos conseguido amortizar mais cerca de 135 milhões de euros da banca portuguesa garantida pelo Estado (num total de cerca de 400 milhões que amortizámos) e conseguido novas fontes de financiamento, sem qualquer garantia do Estado. Os nossos níveis de dívida sobre EBITDAR tinham evoluído de 11 vezes na data da privatização para 5 vezes no início de 2020. Estávamos no caminho certo de turnaround (recuperação).
“Que não restem dúvidas, se tivéssemos sido apoiados, teríamos necessitado apenas de mil milhões de euros e já estaríamos devolvendo aos contribuintes, mantendo nossa rota de crescimento sem precisar reduzir o tamanho da TAP nem abandonar slots.”
Uma empresa em dificuldades não amortiza dívida. Além disso, dada a nossa ótima situação de caixa, com 450 milhões, formos das últimas companhias aéreas a precisar de apoio. Mas tínhamos sido atacados por uma epidemia que colocou todos os nossos aviões na placa, sem poder voar e tínhamos o nosso sócio Pedro Nuno Santos, no Parlamento, a gritar que a empresa estava falida, isto no contexto de conversas muito importantes que teriam de ser tidas com a Comissão Europeia. Nenhum acionista privado de uma companhia aérea foi obrigado a capitalizar a empresa por causa do covid. E outras empresas, como a alemã Condor, em pior situação financeira do que a TAP, não tiveram de recorrer ao plano de reestruturação. Mas nem sequer deixaram a nossa comissão executiva explicar [o nosso plano] à Comissão Europeia. Que não restem dúvidas, se tivéssemos sido apoiados, teríamos necessitado apenas de mil milhões de euros e já estaríamos devolvendo aos contribuintes, mantendo nossa rota de crescimento sem precisar reduzir o tamanho da TAP nem abandonar slots.
Com a opção do ministro Pedro Nuno Santos, a TAP teve o seu crescimento comprometido, foi obrigada a reduzir slots (o ativo mais valioso num aeroporto congestionado) e a diminuir de tamanho. Uma companhia maior significa mais empregos, mais riqueza para o país e maior capacidade de competir num mercado tão agressivo. Anos depois, leio na imprensa que a TAP está hoje sem dívida, após ter custado 3,2 mil milhões de euros aos contribuintes, com um saldo de caixa de mil milhões de euros e gerando lucro, sendo avaliada em cerca de mil milhões de euros. A TAP, antes da Covid, sem qualquer euro dos contribuintes, sem dívida garantida pelo Estado, ainda registando prejuízos mas com um projeto, uma estratégia de crescimento e uma equipe de gestão forte, foi avaliada em mais de 800 milhões de euros. Claramente, o tempo mostra que a decisão do ministro foi a que mais destruiu valor, mais custou aos contribuintes e mais comprometeu o futuro da TAP. A TAP deveria ter sido ser protegida de tanta irresponsabilidade.
Conhece a Airborne? Alguma vez trabalhou com esta consultora?
Sinceramente não conheço, nem nunca trabalhei com eles, o que só por si é estranho, até porque não há muitas opções no mercado. Dizem-me que é uma empresa relativamente recente, que se dedica à reestruturação de dívidas.
Entre o que investiu de capitais próprios na TAP e o que recebeu quando saiu, juntamente como o seu sócio português Humberto Pedrosa, qual é o saldo?
Como é público, além da capitalização com o apoio da Airbus, eu e o meu sócio investimos também com fundos próprios. Os montantes investidos são conhecidos. Depois, ao longo do tempo, na Gateway, houve alguns ajustes de participações dos sócios. Recordo, que quando passei a ser cidadão europeu, adquiri uma parte ao meu sócio Humberto Pedrosa. Mais tarde, quando a nossa sócia, a companhia chinesa HNA, entrou em falência, foi necessário adquirir rapidamente a sua posição na Gateway para que credores da HNA não a tomassem. Essa compra à HNA, foi feita só por mim, porque o meu sócio Humberto não pretendeu acompanhar. Naturalmente, que não vou entrar em detalhes financeiros, que só a nós dizem respeito, mas posso afirmar que o saldo final foi bem mais simpático para o meu sócio do que para mim, tendo em conta as nossas participações relativas. Eu não tive lucro com o meu investimento na TAP.
Uma das conclusões do relatório da IGF foi que as vossas remunerações (Humberto e David Pedrosa e a do David Neeleman) como administradores na TAP foram recebidas via Atlantic Gateway através de um contrato simulado de prestação de serviços para pagarem menos impostos. O que tem a dizer sobre isso?
Fiquei muito surpreendido com esse ponto. Todos os temas financeiros e pagamentos na TAP e na Gateway foram sempre tratados pelo David Pedrosa, que era o CFO (administrador financeiro) da TAP e tratava das contas da Gateway. Eu nunca fiz um único pagamento na TAP ou na Gateway. O David Pedrosa conhecia bem melhor do que eu, o que se podia ou não fazer em Portugal, mas acredito sinceramente que fez tudo bem feito e de boa-fé. Sempre confiei e confio nele. Foi um ótimo gestor. Nunca tivemos problemas. A remuneração da TAP, que eu recebia na Gateway, como não executivo eram cerca de 100 mil euros ao ano, como todos os outros não executivos. Posso dizer que nunca levantei um euro a mais da TAP e essa remuneração ficou toda na Gateway para despesas administrativas e de gestão da empresa. Durante o período em que fui do board (administração)da TAP, fui sempre residente fiscal nos EUA, onde sempre paguei todos os meus impostos. Mas se existir algum imposto que não tenha sido devidamente pago em Portugal, estarei disponível para o liquidar. Mas como digo, confio que tudo terá sido bem tratado.
“Posso afirmar que o saldo final foi bem mais simpático para o meu sócio [Humberto Pedrosa] do que para mim, tendo em conta as nossas participações relativas. Eu não tive lucro com o meu investimento na TAP.”
O que tem a dizer sobre a referência que é feita no relatório da IGF sobre o facto de a TAP ter pago vários milhões de euros em serviços da consultora Seabury, uma empresa que o ajudou a negociar a troca de aviões com a Airbus antes mesmo de o David ganhar a privatização da TAP?
A Seabury é uma empresa de referência no mercado de aviação. São muito competentes. No mercado não há muitos especialistas desta qualidade. Ajudaram-nos nessa negociação, é verdade. Obviamente, esse negócio só foi concluído após a privatização. Como já disse, na primeira reunião do conselho de administração, todos os administradores da TAP aprovaram por unanimidade o negócio da troca dos aviões. Foi um trabalho complexo e longo para benefício da TAP e não para a DGN. Após a privatização, a Seabury ainda fez alguns trabalhos muito relevantes no apoio à reestruturação da divida da TAP. Tudo foi feito em benefício da TAP, para permitir a sua salvação de uma falência que estava iminente e principalmente para ter um plano estratégico para o futuro. Aliás, após a nossa saída, constatei que os vários conselhos de administração que nos sucederam não modificaram o essencial da nossa estratégia. As rotas que conseguimos para o mercado americano, o acordo com a Azul, que permite maior conectividade no Brasil, o programa Stopover e muitas outras coisas. A nossa gestão transformou a TAP. Só foi pena a irresponsabilidade da capitalização à custa dos contribuintes e que obrigou à redução da TAP.
Tem receio de ser acusado de irregularidades neste processo, as conclusões do relatório da IGF foram enviadas para o Ministério Público que abriu uma investigação?
Não tenho receio absolutamente nenhum. Como disse, tudo foi bem feito e em circunstâncias muito difíceis. Foi um negócio complexo e a aviação envolve sempre muitos milhões. É um negócio de capital intensivo, mas tudo com total transparência e em benefício da TAP. Sou um empresário honesto e nunca tive problemas com a justiça em mais de 40 anos, no setor da aviação, em vários países. Na privatização fui apoiado pelos melhores especialistas e assessores internacionais e locais. Sei que o Governo de Passos Coelho também teve assessoria financeira e legal de primeira linha que aprovaram tudo. Nada tenho a temer, antes pelo contrário, estou muito honrado pela transformação que conseguimos fazer na TAP e para benefício de Portugal.
O que é que a DGN [empresa de David Neeleman] ainda tem a receber da TAP para encerrar o processo?
A DGN nada tem a receber da TAP nem do Estado Português. Como é sabido a Azul, da qual fui fundador mas em que hoje tenho interesses económicos minoritários, tem um crédito importante na TAP, que, como disse, foi fundamental para salvar a empresa em 2015. Este financiamento tem de ser reembolsado em 2026. Não se admite outra hipótese que não seja honrarem esse compromisso.
David Neeleman diz que o empréstimo obrigacionista da Azul à TAP tem de ser reembolsado em 2026 e não admite a hipótese que esse compromisso não seja honrado pelo Estado
Rui Duarte Silva
“Nunca tinha tido um Governo como sócio e confesso que não foi uma boa experiência”
Nove anos após a privatização, como olha para este processo? Arrepende-se de ter participado na privatização da TAP? Sente que está a ser instrumentalizado politicamente neste processo? Voltaria a olhar para a TAP?
Hoje estou muito focado na empresa mais recente que fundei nos EUA, a Breeze. Não faz sentido voltar a olhar para a TAP e falando honestamente também perdi a confiança no Estado Português como parceiro. Foi muito difícil com o Governo socialista. Tenho de ser sincero aqui. Não respeitaram os contratos que assinaram com investidores privados. Nunca tinha tido um Governo como sócio e confesso que não foi uma boa experiência. O racional de decisão não é o mesmo, a interferência e pressão política são constantes e tiram foco à gestão, no que é preciso realmente fazer.
Os Estados devem fiscalizar, regular, mas não serem acionistas. Aliás, fiquei muito surpreendido com a reversão [da privatização em 2017], mas após o acordo que conseguimos negociar com o Governo de António Costa pensei que as coisas poderiam funcionar. Até correram razoavelmente no início. Mas depois, com o ministro Pedro Nuno Santos a pressão política tornou-se constante. A gota de água foi quando o Governo de António Costa não respeitou o acordo que tínhamos sobre o IPO [oferta pública inicial]. Tínhamos combinado obter avaliações independentes de entidades aceites por todos e se as avaliações atingissem certo valor, iríamos para IPO [estreia em bolsa]. E depois o Governo não cumpriu. Foi uma grande machadada no plano que tínhamos delineado para a TAP.
A reversão parcial da privatização que resultou da renegociação do ministro Pedro Marques e Lacerda Machado, no Governo de António Costa, não foi positiva para o Estado? Com mais distanciamento o que diria?
Foi muito negativa. Não acrescentou nada e só complicou. Penso que os contratos iniciais da privatização davam ao Estado e ao Governo todos os poderes de fiscalização do acordo de compromissos estratégicos que tínhamos celebrado com o Governo de Passos Coelho e se os rácios financeiros da TAP piorassem, o Estado poderia recuperar a TAP e nós saiamos. Era o melhor modelo para o Estado e para a TAP, que poderia guiar-se por critérios racionais de gestão e sem interferência política na gestão.
Qual foi o racional para o Estado lhe pagar 55 milhões de euros, uma empresa em falência técnica em pleno Covid? Há quem diga que foi um prémio para si, para aceitar a saída.
Como já disse, não pedi nem queria sair. Tem de perguntar ao ministro Pedro Nuno Santos. Pela minha parte, entendi que era um valor mínimo para evitar um litígio. Talvez o racional do Governo tenha sido o mesmo. Mas não foi um bom negócio para mim. O bom negócio teria sido termos conseguido o IPO [entrada em bolsa] ou, mais tarde, vender 20% a uma grande companhia aérea europeia. Eram um cenário fechado e com o acordo do Governo. Não fosse o Covid, teríamos concluído o processo e aí sim teria sido um bom negócio. Tínhamos conseguido transformar e valorizar a TAP, que em 2015 tinha avaliação muito negativa e em 2020, antes do Covid, era avaliada em 800 milhões de euros. Isto sem qualquer capitalização do Estado. Isto tudo sem pedir um euro aos contribuintes. Pelo contrário, como disse, a nossa gestão conseguiu reduzir o peso da dívida da TAP, que era de 11 vezes EBITDAR para 5 vezes EBITDAR, amortizando a dívida que era garantida pelo Estado.
“Não entendo que a IGF tenha ignorado ou não conheça a carta da Airbus ou não nos tenha feito qualquer pergunta antes de ter concluído o seu relatório”
Que apreciação faz do relatório da Inspeção-Geral das Finanças (IGF)?
As questões do relatório não são novas e algumas são analisadas de forma errada. Por exemplo, não entendo que a IGF tenha ignorado ou não conheça a carta da Airbus ou não nos tenha feito qualquer pergunta antes de ter concluído o seu relatório. Também estranho que se o scope [objetivo] da IGF era realizar uma auditoria às contas da TAP ao longo de vários anos, não tenha feito a comparação essencial: olhar para os rácios financeiros da empresa antes da privatização, e compará-los com o início de 2020, antes do Covid. Esse é o verdadeiro balanço da nossa gestão e de que muito me orgulho. Deixámos uma companhia completamente transformada, uma frota renovada e com um novo mercado, como o dos USA. Mais 60% de passageiros, mais 18% de colaboradores, mais 41% de aviões, mais 16% de destinos, mais 25% de numero de voos e mais 36% de volume de negócio, 4 vezes EBITDAR e mais 28% de contribuição para impostos. Não são dados meus, são dados objetivos aprovados pelo Conselho de Administração da TAP em 2019. É isso que fazem os bons empresários. Valorizar as empresas. Estávamos no bom caminho e orgulho-me do legado que deixámos.
Estava a par do diferendo que existe entre a Azul [companhia aérea brasileira onde Neeleman é acionista minoritário] e a TAP a propósito do pagamento do empréstimo obrigacionista que vence em 2026 e a ameaça de rompimento da parceira no Brasil? Participou ou foi a favor da decisão da Azul de pedir à TAP SGPS pagamento antecipado do empréstimo obrigacionista de 90 milhões de euros?
Não vou comentar porque a Azul é cotada e o board já emitiu um comunicado sobre isso e o CEO (presidente executivo) também fez declarações públicas sobre o tema.
Porque decidiu a Azul pedir a antecipação do pagamento da dívida obrigacionista (90 milhões de euros, mais juros)? Havia algum sinal de que a dívida corria o risco de não ser paga ou de a TAP SGPS estar a preparar-se para fazer um corte (haircut)?
Dou a mesma resposta da pergunta anterior.
O empréstimo obrigacionista da Azul à TAP tem ou não uma garantia do Estado? Porque pediu a Azul uma confirmação da garantia de Estado?
Também aqui a mesma resposta.
Quem definiu as condições de pagamento do empréstimo à Azul, nomeadamente a taxa de juro de 7,5%? Houve alguma discordância do Governo português em relação a essa matéria?
Nunca houve qualquer discordância. Aliás, o Governo de António Costa entendeu que fazia tanto sentido, que no âmbito da negociação da reversão, em 2016, decidiu que a Parpública deveria tomar parte desse empréstimo obrigacionista, ficando com 30 milhões, dos 120 milhões inicialmente previstos para a Azul. Exatamente com a mesma taxa de juro.
A manutenção do acordo comercial da TAP com a Azul fazia parte do acordo de saída da DGN da TAP? Se sim, até quando é que este acordo era para ser mantido?
A DGN não negociou esse tema no momento da minha saída.