Diário da Peste,
2 de abril
Alguém diz que o pico será no dia tal.
Aplica-se as leis da física e da velocidade dos materiais à biologia.
Movimento uniformemente acelerado da maldade.
Mas a maldade não é como a bondade.
A bondade é previsível.
A maldade não é previsível.
Isso de certeza.
Fala-se do pico de contaminação como se fosse o pico de uma montanha.
Os números com o tempo transformam-se em linhas e as linhas transformam-se em montanhas.
Montanhas altas, montanhas baixas.
Fala-se de achatar a montanha má, a montanha da peste.
Uma montanha viva, a formar-se diante dos olhos.
Cada dia a contribuir para a forma final da montanha.
Imagino alguém a escalar a montanha da peste.
Uma montanha falsa, não fica no espaço como as outras.
Fica no tempo.
Montanha varrida: pela morte, medicina ou isolamento.
Achatar a montanha.
Bater em cheio na cabeça da montanha má até esta ficar pequena e quase inofensiva ou até inerte.
Diz Roberto, um menino.
Transformar a montanha num tapete.
Colocá-lo ao sol, longe dos humanos.
“Vamos fazer a revolução na cadeia - diz um grupo de presos depois de saber que um guarda prisional estava infectado.”
“Estou bem dentro dos limites da minha angústia”, disse, “com serenidade” um amigo de um amigo brasileiro.
Um amigo angolano recomenda para casa, paciência e óleo de liamba.
Um antigo Presidente de República diz: “nós, os velhos, vamos ser os primeiros a dar o exemplo.”
Diz: “se, necessário, ofereceremos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos.”
Os velhos ensinam os mais novos a andar.
“Já há mais de um milhão de infectados em todo o mundo”.
Sempre houve competições estúpidas.
Corridas com os olhos vendados.
Em 5 de setembro de 1952, em Loughton, Essex, Inglaterra, por exemplo.
Graham Henry Salmon correu cem metros em 11,4 segundos com uma venda nos olhos.
Tentar correr o mais rápido possível, mas com uma venda nos olhos.
Aqui estamos. Velocidade e cegueira.
Fazer pelo menos um buraco na venda.
Ver de um olho, ver uma parte, perceber uma parte.
Mortos em Espanha, Estados Unidos, Itália: o susto torna-se assustador; o assustador, hábito.
Em casa, um apetite tremendo.
Somos estômago e dois olhos.
Uma velha senhora recebe sopa e comida em casa entregue por um senhor generoso com uma máscara na cara e colete amarelo.
Parece um acidente. Está tudo de colete amarelo.
Um acidente geral, mas não está localizado em nenhum ponto da cidade.
Uma colisão gigante mas sem colisão, sem chapa, sem matéria.
O tráfego parou, evaporou-se.
Os carros estão recolhidos - como animais que fugiram por medo de um ciclone para os seus casulos.
A gasolina desce de preço, que simpáticos que são.
Os Estados Unidos testaram há menos de uma semana um míssil hipersónico, mais rápido que a velocidade do som.
O som já está lento demais para o século XXI.
A velocidade do som está lenta nos dias da peste.
É difícil o som chegar a quem te pode salvar.
Experimenta gritar se precisares de socorro.
No Brasil, em Belo Horizonte, BH, a polícia militar que por vezes assusta, não apenas os criminosos, avisa por altifalante que as pessoas devem recolher-se em casa.
“Atenção, cidadão, aqui é a polícia militar. Desloque-se para sua casa.”
Penso, de repente, em abutres.
Uma obra de João Onofre filma um abutre numa sala.
O abutre está desorientado porque quer comer e não tem comida.
É tudo duro, nada é mole nem alimento.
Recebo um sms.
“Tenha um Plano Saúde P----- e utilize de imediato Vídeo-consultas sem sair de casa. Pode também fazer o exame Covid-19. Saiba + no link.”
O abutre está de novo orientado e quer comer.
O “ar tem tubos por todo o lado”
“e chegam aqui os murmúrios do dinheiro”, Miguel Cardoso.
Inglaterra: falam em multas para quem sair para comprar tinta para cabelo.
Abro um site.
Diz logo: relax with Mozart.
Não estava tenso.
É preciso fechar o abutre numa sala.
Só lhe dar coisas duras para ele morder.
Fechar a porta por fora e sair, finalmente.
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