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“EUA estão a investir nas alterações climáticas e a Europa está a apostar mais na penalização e regulação”

“EUA estão a investir nas alterações climáticas e a Europa está a apostar mais na penalização e regulação”

Afonso Arnaldo é o responsável da Deloitte pela sustentabilidade e revelou ao Expresso SER as áreas onde a consultora tem apostado, desde os apoios sociais aos combustíveis sustentáveis para a aviação. Elogia a Lei de Redução da Inflação de Joe Biden e deixa algumas críticas à abordagem europeia às alterações climáticas. Fez parte da Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde e faz o balanço, quase dez anos depois

Fez grande parte da carreira na área dos impostos e agora é o responsável máximo da Deloitte por tudo o que tenha a ver com o ESG (sigla inglesa para ambiente, responsabilidade social e governança). Fez parte da Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde em 2014 que levou à criação em Portugal da taxa de carbono e da taxa sobre os sacos de plástico.

Defende que muitas coisas estão a mudar no mundo empresarial e que alguns comportamentos como “ir a Paris de avião para fazer uma reunião e voltar no dia seguinte vão acabar por desaparecer”. Revela que a Deloitte, a nível global, está envolvida num projeto para tentar transformar o SAF (Sustainable Aviation Fuel) num combustível mais acessível e afirma que a consultora assumiu o compromisso global de apoiar 100 milhões de pessoas até 2030, sobretudo na aérea da educação.

A Deloitte publicou um estudo, no ano passado, chamado Global Turning Point que calcula em 180 biliões de dólares o custo para a economia mundial até 2070 caso não se consiga atingir os 1,5º do Acordo de Paris. Afonso Arnaldo refere que neste combate às alterações climáticas a Europa está a ser “muito impositiva, muito regulamentada, é típico. Os Estados Unidos da América estão a atuar muito mais no sentido de investimento”.

O Afonso Arnaldo é Sustainability and Climate practice leader na Deloitte. Que cargo é este?
Nesse cargo tento fazer a agregação daquilo que são as competências de todas as áreas que a Deloitte incorpora, ou seja, é uma empresa multidisciplinar como é sabido e não há melhor tema do que este da sustentabilidade e do ESG para fazer funcionar a multidisciplinariedade. A minha função é ligar os elos de todas as áreas que a Deloitte tem: a área de consultoria, de risk advisory, financial advisory, tax e auditoria.

Está há muitos anos na área fiscal da Deloitte. Porquê agora a sustentabilidade?
Primeiro por um gosto pessoal, claramente. Eu trabalhei sempre em impostos indiretos e dentro dos impostos indiretos também vamos encontrar muitos desafios interessantes, precisamente na área da sustentabilidade, muito ligados ao clima.

Os impostos têm servido para ajudar a acelerar a transição energética (estou a lembrar-me da taxa de carbono) ou só servem para encher os cofres do Estado?
Tenho de lhe responder que tem servido para essa luta. Eu estive na Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde em 2014, era presidente o professor Jorge Vasconcelos. Foi um desafio muito interessante e foi um dos pontos que, se calhar, me hoje conduziram até esta função.

Já não me lembro, o que saiu dessa Comissão?
Saiu a criação da taxa de carbono e a taxa dos 10 cêntimos que ainda hoje se paga nos sacos de plástico e que, entretanto, foi alargada. Os sacos de plástico visavam zero de receita, a ideia era mesmo acabar com os sacos plásticos. O curioso é que houve uma rápida adaptação de quem fornecia sacos de plástico, principalmente dos supermercados, que começaram a ter sacos com maior gramagem que são ainda aqueles que hoje se pode comprar e são muito mais resistentes e podem ser reutilizados.

Sobre a taxa de carbono, a Comissão teve a preocupação de encomendar um estudo, que foi feito fora da Comissão, com uma equipa de professores e universitários, que procurava que a taxa de carbono que viesse a ser fixada fosse fiscalmente neutra, ou seja, não seria neutra naturalmente para quem a tivesse que pagar, mas para a fiscalidade como um todo e para a receita fiscal como um todo; não se visava obter mais receita. O estudo sugeria descer outras taxas, como o IRS e o IRC, e a opção acabou por ser o IRS. E com uma indicação da Comissão para que sempre que a receita da taxa de carbono subisse, deveria haver uma compensação de redução noutros impostos.

Essa compensação aconteceu?
Aconteceu eventualmente no início. Se me perguntar se acontece hoje, diria que não. De qualquer forma a taxa de carbono tem estado suspensa, portanto nem sequer é uma coisa que se coloque. Na altura, o que se pretendia era que isto não tivesse um efeito negativo na economia, nem um aumento de receita. Uma coisa naturalmente é trabalhar a teoria, outra é a prática e ver passado uns anos se isto se verificou ou não.

Creio que não se verificou.
Eu não tenho dados para lhe responder, mas não tenho visto uma correspondência clara em que se diga “agora estou a baixar aqui este imposto sobre o rendimento porque a taxa de carbono está a aumentar”, isso não se tem visto.

O estudo encomendado pela Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde sugeria descer outras taxas, como o IRS e o IRC, e a opção acabou por ser o IRS.”

O que é que a Deloitte tem feito de mais importante nesta área de sustentabilidade? Internamente e para os vossos clientes.
Internamente somos uma empresa de serviços e eu diria que as maiores preocupações em termos climáticos e de redução da pegada são os edifícios, a energia que consumimos, os materiais que utilizamos como o mobiliário que já tem uma lógica de economia circular. Uma outra coisa que nos preocupa são os transportes aéreos, porque a Deloitte Portugal opera em conjunto com a Deloitte Angola e com a Deloitte de Moçambique e temos pessoas a viajar entre estas três geografias. É difícil dizer que assumo uma pegada zero em algum momento que não seja por compensação, embora seja essa a intenção.

Vão pedir aos colaboradores para viajar menos?
Uma das soluções é reduzir viagens. A pandemia deu uma ajuda enorme, porque parámos todos de viajar. O que se assiste agora é um retomar, já viajamos mais do que viajámos durante a pandemia como é óbvio, mas ainda estamos em níveis mais baixos. Eu creio que conseguimos incutir, não só na Deloitte mas na sociedade em geral, a desnecessidade de viajar desde aqui a Paris para fazer uma reunião e voltar no dia seguinte. Eu creio que esse esse tipo de viagem de negócios acabará por desaparecer. Na Deloitte no centro da Europa já há políticas neste momento que impedem as pessoas de viajar de avião a distâncias inferiores a 400 quilómetros. Em Portugal, também incentivamos a que as pessoas viajem entre Lisboa e Porto de comboio.

Ainda no tema das deslocações, estamos também muito apostados nos EUA a desenvolver o SAF (Sustainable Aviation Fuel) que é o combustível do futuro para os aviões e que será muito menos poluente do que o jet fuel atual. Fazemos parte de um grupo com várias companhias aéreas americanas para estudar soluções de financiamento deste tipo de combustível, que é talvez 30 vezes mais caro do que o jet fuel. Eu diria que é impraticável para ser introduzido na generalidade da aviação comercial neste momento. Mas a ideia é que possa baixar de preço e ser uma alternativa viável a breve prazo.

Isto é o que a Deloitte tem feito internamente.
Sim, além dos edifícios, das deslocações, temos também a vertente da frota. Até 2030 temos o compromisso da nossa frota ser totalmente eletrificada. A partir de 2025 já ninguém pode comprar um carro que não seja eletrificado, os outros vão acabando os contratos, mas em 2030 cessa tudo. Isto na área climática.

Depois no ESG temos várias políticas na área social, quer externas quer internas. Temos programas como o “PACT Fund” que já está na 9º edição e em que financiamos projetos de associações do terceiro setor, projetos sociais em três vertentes essencialmente: do ensino e da capacitação de pessoas, da empregabilidade e do empreendedorismo. Não nos limitamos necessariamente a passar um cheque, pedimos aqui às nossas pessoas para serem mentores dos projetos e essas pessoas acompanham estes projetos junto das associações. Já distribuímos mais de um milhão de euros.

Pode nos dar um exemplo?
Financiámos agora a Spot Games que é uma ferramenta para as crianças ucranianas aprenderem português. É um software, um jogo em que as crianças aprendem a língua. Nesta área do “S” de ESG temos também o WorldClass que é um programa onde a Deloitte a nível global assume o compromisso de apoiar 100 milhões de pessoas até 2030. É muito centrado na educação. Repare, na Deloitte em Portugal mais de 95% das pessoas empregadas têm, pelo menos, um curso superior.

Depois temos o programa Impact Every Day que é de intervenção social, mas fora da lógica do ensino: desde apoios durante a pandemia, apoios por causa da guerra, as nossas participações no Banco Alimentar, todo esse tipo de intervenção. Depois temos ainda o ALL IN, que tem a parte mais social, e engloba o tema da paridade homens/mulheres, o tema LGBT+, a inclusão de pessoas com diversidade neurológica e a inclusão de pessoas com deficiência física.

Isso é tudo interno. E a nível externo prestam serviços aos vossos clientes ligados a estas áreas ESG?
Nas nossas várias áreas de competências que temos, todas elas têm uma oferta dirigida ao ESG, inclusivamente a área de impostos. Temos toda a aérea da fiscalidade verde. No “G” de governance temos a necessidade de transparência fiscal que também está em cima da mesa e que será cada vez mais exigente. Estou a dizer-lhe as vertentes que são menos óbvias em termos de trabalho ESG. A área de consulting é uma totalmente óbvia. Apoiamos os clientes, desde a fazer um plano ESG até às coisas mais específicas. Na área de financial advisory, que dá muito apoio às M&A (fusões e aquisições), cada vez mais as due delligence relacionadas com o ESG vão estar na ordem do dia.

“O scope 1 é a minha chaminé, o 2 é sobretudo eletricidade que consumo, e o 3 são as emissões indiretas, é tudo o que está a montante e a jusante na cadeia.”

Para as grandes empresas que têm dinheiro para pagar a uma Deloitte é mais fácil fazer esta transição energética. Para as pequenas empresas é que é mais difícil, certo?
Em termos de transição energética acho que irão um pouco por arrasto. Para que a pegada seja efetivamente reduzida em qualquer empresa, elas têm de cumprir vários scopes. O scope 1 é a minha chaminé, o 2 é sobretudo eletricidade que consumo, e o 3 são as emissões indiretas, é tudo o que está a montante e a jusante na cadeia.

Ou seja, as PME que fazem parte dessa cadeia vão ser obrigadas a mudar de vida.
Sim e creio que essa é a estratégia governamental: eu obrigo as grandes, mas isto vai ter um impacto nas outras. Em termos do dinheiro, diria que vai ter que haver algum apoio, não necessariamente público. Se a Deloitte quiser continuar a comprar àquele fornecedor, se calhar vai ter de dar-lhe uma ajuda.

Mas há aqui coisas ainda por explicar. Nas empresas pequenas que não vão ser obrigadas a ter este este tipo de relato de sustentabilidade, como é que eu vou saber qual é a pegada delas? Tudo isso é um trabalho que vai ter que ser feito, uns a puxar pelos outros. Pode ser um bocadinho romântico aquilo que eu estou a dizer, mas não vejo outra forma de isto vir a funcionar, porque se eu, uma grande empresa, quiser ser compliance, vou ter de saber se quem está a montante também é compliance.

Olhando para conclusões do estudo CxO Sustainability 2023 publicado pela Deloitte, o que é que mais o surpreendeu?
Há uma crescente preocupação com o tema e há um reconhecimento que, de facto, as empresas e as pessoas estão a sentir as alterações climáticas no seu dia a dia. Agora falta a ação, porque quando vamos ver outros estudos, como o do IPCC das Nações Unidas, vemos que estamos longe da rota dos 1,5º ou mesmo dos 2º. Estamos todos a reconhecer que há um problema, estamos todos a sentir o problema e estamos a seguir soluções de alguma forma distinta. A Europa muito impositiva, muito regulamentada, é típico. Os Estados Unidos muito mais no sentido de investimento.

Neste estudo, vários gestores dizem que continuam a ter dificuldades em ver as vantagens financeiras a longo prazo dos investimentos feitos na área da sustentabilidade.
É verdade, ou seja, o accounting da coisa ainda não está bem feito. A Deloitte lançou um estudo no ano passado chamado Global Turning Point, e conclui que se nós não atuarmos agora, evitando ultrapassar os tais 1,5º, e com as consequências que isto vai gerar, vamos ter uma perda de quase 180 biliões de dólares na economia mundial até 2070. Mas se nós atuarmos, os ganhos serão positivos.

Em termos de obstáculos na implementação de políticas mais sustentáveis, 19% dos gestores referem que é demasiado caro. É muito caro ser-se sustentável?
É mais caro do que não ser neste momento, mas aquilo que penso é que em muito breve trecho a posição vai-se inverter por causa da regulamentação que temos em cima da mesa e da pressão social que começa a surgir.

E temos ainda o tema do greenwashing, porque não basta dizer que o meu iogurte é verde. Tem de haver critérios e padrões para eu fazer essa medição e a linguagem de medição também ainda não está uniformizada. Tudo isto tem de ser uniformizado para que todas as indústrias falem a mesma língua, para que possamos todos fazer as mesmas medições e possamos comparar coisas. Estava a falar do iogurte, porque é que este iogurte é mais verde do que o outro e é mais sustentável comer este e não aquele? Esta comparabilidade é essencial para que o consumidor possa fazer escolhas.

Já existem empresas de rating a fazer rating ESG.
Sim, são variadíssimas, são muito mais do que as empresas de rating financeiro. Aquilo que eventualmente vai acabar por acontecer é que as próprias empresas de rating financeiro vão começar a absorver as outras e rapidamente o mercado não estará tão diluído como está hoje em termos de empresas de rating. Em termos de uniformização facilita termos uma linguagem mais comum.

O Afonso falava há pouco em greenwashing. Nota que há muito no mercado?
Não posso dizer que que noto até porque neste momento estamos todos ainda no caminho para perceber o que é greenwashing, embora haja coisas mais evidentes. O caso do Deutsche Bank é conhecido. Tinha fundos apregoados como sendo verdes e que afinal não eram. E todo o c-level do Deutsche Bank foi despedido e foram retiradas consequências.

As diretivas que aí vem, como a do “dever de diligência”, vão mudar muito a vida das empresas?
São obrigações criadas para empurrar as empresas no sentido de tomarem atitudes mais sustentáveis no seu dia a dia, no design dos seus produtos. Ainda há pouco assistia a uma apresentação onde se dizia que grande parte dos problemas de sustentabilidade está desde logo no design dos produtos. Se um telemóvel avaria sou obrigado a deitar o telemóvel para o lixo ou o consigo desmontar em peças e colocar apenas uma peça nova?

As empresas estão a investir o suficiente nas pessoas e na formação para atingir estas metas de sustentabilidade?
Eu diria que hoje em dia uma grande empresa em Portugal, estou a falar do caso português, essa preocupação está já incorporada nos conselhos de administração. Nos conselhos executivos já existe alguém quem tenha o chapéu e a responsabilidade de levar a cargo novas políticas, de repensar a empresa.

E de onde é que é maior a pressão para a sustentabilidade? Dos fornecedores, clientes, ou dos próprios trabalhadores?
A ideia que eu tenho é que nós todos nos vamos empurrar uns aos outros. Não acredito que vamos ficar com duas realidades, tipo dois mundos, um com uma economia mais sustentável e outro com uma economia menos sustentável. Embora esta maior divisão nos últimos tempos, nomeadamente os dois blocos que se estão a formar, possa ser algo perigoso nesse sentido.

A nível geopolítico?
Sim, a nível geopolítico. Temos a Europa e os EUA. Nos EUA, mesmo numa era politicamente anterior à do atual presidente, as empresas não desaceleraram na sua preocupação com estes temas de sustentabilidade.

Acha que a Europa respondeu à altura ao IRA [Inflation Reduction Act] de Joe Biden?
Eu entendo que é uma perspetiva bastante mais acertada a americana, que é uma perspetiva do investimento versus imposição. Neste caminho é essencial o investimento em novas tecnologias, em tecnologias ditas verdes. São as “green techs” que nos vão ajudar a tornarmo-nos mais eficientes. Nós, é verdade que temos o Green Deal, mas não sei se é suficiente.

Mas também é mais difícil na Europa. Por exemplo, é muito mais fácil nos EUA uma harmonização de apoios a nível fiscal do que dentro da Europa em que há muitos sistemas. Acaba por ser aqui uma perspetiva mais positiva a dos EUA. Na Europa juntou-se muito a penalização, a regulação. Creio que a Europa quer o sistema perfeito já, mas nós estamos ainda longe do sistema perfeito. Nos Estados Unidos é menos pela imposição e mais pelo incentivo, e nesse sentido parece mais interessante.

Como consumidores, já todos incorporámos que não devemos comprar produtos que não sejam sustentáveis?
Sim e não. Eu penso que as pessoas têm na cabeça o tema, já não é uma coisa esotérica, temos vindo a evoluir. Agora, se já estamos lá? Ainda não estamos lá de todo. Eu vejo pela juventude, porque tenho filhos, a facilidade com que eu hoje em dia, com o telemóvel, compro uma coisa que vem da China sobre a qual não tenho informação. Só o facto de vir de transporte é um desafio. A facilidade com que eu vejo pessoas que compram uma peça de roupa e mandam vir dois tamanhos porque sabem que pode devolver um dos tamanhos. Entendo que são as empresas que têm de ser os agentes de mudança. Isto tem de ser feito por todos, empresas, governos e consumidores.

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