Sociedade

Paulo Magalhães: “É preciso uma nova economia capaz de produzir, restaurar e renovar os serviços naturais prestados pelo Sistema Terrestre”

"Podemos construir um sistema de contabilidade onde os impactos negativos que degradam o Sistema Terrestre podem ser contabilizados e os impactos positivos dos ecossistemas e da ação humana podem ser incluídos"
"Podemos construir um sistema de contabilidade onde os impactos negativos que degradam o Sistema Terrestre podem ser contabilizados e os impactos positivos dos ecossistemas e da ação humana podem ser incluídos"
Rui Duarte Silva

O fundador e presidente da Casa Comum da Humanidade, Paulo Magalhães, afirma ao Expresso que “a emergência climática é o resultado lógico da utilização não regulamentada no direito internacional do Sistema Terrestre”, e de um bem comum global “mal gerido, o clima estável, devido à falta de uma definição jurídica adequada”

Paulo Magalhães: “É preciso uma nova economia capaz de produzir, restaurar e renovar os serviços naturais prestados pelo Sistema Terrestre”

Virgílio Azevedo

Tradução e adaptação

Paulo Magalhães é também jurista, investigador do Centro de Investigação Jurídico-Económica (CIJE) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e membro do conselho geral da organização ambientalista ZERO.

Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press. A campanha conta com uma série de entrevistas – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional.

O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Nesta quarta-feira a entrevista é publicada numa parceria entre a CCH e a Universidade de Stanford (EUA), uma das mais prestigiadas do Mundo. Pode ver as anteriores entrevistas em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Karl Burkart, Janene Yazzie, Kim Sang-Hyup, Hindou Ibrahim, Prue Taylor, Richard Ponzio e Klaus Bosselmann.

A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um modelo de governança para os recursos naturais comuns e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.

A CCH tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros como a Global Pact Coalition/Club de Jurists (França), a organização One Earth da Rockefeller Philanthropy (EUA), a MAHB – Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere da Universidade de Stanford (EUA), o IIDMA - Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (Espanha) ou a Rede CPLP Ambiente (Portugal).

"Hoje cada Estado compromete-se a conter os danos no ambiente, criando um sistema de partilha de encargos que é um jogo de soma negativa em que o recurso global 'clima estável' diminui constantemente"
Rui Duarte Silva

Defende a criação de um quadro jurídico comum que definiria a forma como a Humanidade se relaciona com o Sistema Terrestre. Porquê?

A janela de oportunidade para evitar alterações climáticas perigosas está a fechar-se rapidamente. Isto exige que enfrentemos crenças jurídicas e económicas há muito defendidas que nos prendem num ciclo vicioso. A Terra funciona como um único sistema integrado a nível planetário, para além de uma mera coleção de ecossistemas ou processos globais isolados. Este "software natural" é global e indivisível e, embora intangível como um todo, existe no mundo real. Assim, o Sistema Terrestre é o nosso mais relevante sistema global comum, funcionando tanto dentro como fora da soberania dos Estados. As Ciências Económicas já definiram as condições estruturais necessárias para a gestão bem-sucedida dos bens comuns. Porque não podemos aplicar este conhecimento ao nosso bem comum global mais vital, o Sistema Terrestre? O seu bom funcionamento é o resultado dos processos biogeoquímicos produzidos pela vida, continua a apoiar a vida e fornece a base de toda a criação de riqueza das nossas sociedades. Por outro lado, a interligação global do Sistema Terrestre, o nosso próprio sistema de suporte de vida, é uma realidade inquestionável que temos de reconhecer, respeitar e preservar. Contudo, a atual ordem jurídica internacional está longe de estar equipada para lidar com ela de uma forma adequada. Abordar estes problemas a nível global de uma forma isolada, fragmentada e totalmente inadequada -- como temos feito até hoje -- implica que continuaremos a ignorar os feedbacks e os efeitos dominó que ocorrem dentro do Sistema Terrestre.

Então a emergência climática é uma consequência da abordagem errada aos problemas do Sistema Terrestre?

As emergências climáticas e da biosfera são os resultados lógicos da utilização não regulamentada do Sistema Terrestre, um bem comum mal gerido devido à falta de uma definição legal adequada. E um bem comum global sem fronteiras, como o clima estável, é subversivo a qualquer tipo de divisão rígida e exclusivamente física e territorial, mesmo de uma forma juridicamente abstrata. Responder a este desafio paradigmático, enquadrando e organizando as relações de interdependência que emergem da utilização partilhada de um Sistema Terrestre único e altamente interligado à escala global, é certamente o maior desafio que os teóricos e diplomatas do direito internacional têm diante de si para salvar o nosso futuro comum do abismo da catástrofe ambiental e climática a que nos dirigimos.

Como convencer nacionalidades, etnias e credos a pôr de lado os interesses próprios e a abraçar este quadro jurídico comum?

Quando, na década de 1980, as alterações climáticas entraram na agenda da ONU, a primeira questão levantada foi: "O que é o clima de um ponto de vista jurídico?" Após a proposta de Malta de 1988 de reconhecer o clima como “Património Comum da Humanidade", a resolução adotada pela ONU considerou o clima apenas como "preocupação comum da Humanidade". Esta opção tem as suas origens estruturais numa mentalidade em que algum tipo de sentimentos “tribais” ainda está a ser o fator determinante do comportamento humano. O estado favorável do Sistema Terrestre na era geológica do Holoceno, que dura há 11.700 anos - hoje identificável através da estrutura dos Limites do Planeta - é um bem global intangível, impossível de dividir e privatizar legalmente. Esta indivisibilidade jurídica tornou-se um dos desafios mais assustadores para uma sociedade globalizada, que considera o regime de divisão, direitos de propriedade privada e mecanismos de mercado como a única forma de resolver este problema.

Como pode existir uma boa gestão dos bens comuns?

Elinor Ostrom, Prémio Nobel da Economia de 2009, apontou alguns princípios básicos de conceção para uma gestão bem-sucedida dos bens comuns, e desmascarou o paradigma estabelecido de fatalidade: um bem comum gerido de forma adequada tem limites, regras, monitorização do uso, punição dos free-riders e normas sociais. Além disso, exige a existência de uma comunidade disposta a agir como guardiã dos seus próprios recursos comuns (CPR na sigla inglesa). Um Sistema Terrestre que funcione bem é, de facto, o CPR da Humanidade: o que está em jogo não é salvar o planeta, mas sim manter o Sistema Terrestre nesse estado específico - semelhante ao Holoceno - que é reconhecido como favorável para a Humanidade prosperar. A nossa "casa" depende de condições favoráveis e intangíveis que sustentam a vida e, portanto, um planeta com um Sistema Terrestre fora desse estado favorável não pode servir como nossa casa comum. A nossa Casa Comum é de facto um Sistema Terreste que funciona bem. E é necessário criar as condições estruturais para emergir uma ação coletiva, porque sem isso o processo natural é a emergência do nacionalismo, como estamos a ver. Trabalhar na construção destas condições deve ser o nosso grande objetivo. Se o conseguirmos, tudo será possível no futuro.

O grande desafio é aceitar a existência de um bem comum global sem fronteiras. Como é que isto se traduz do ponto de vista jurídico?

Segundo o direito internacional, o planeta é apenas um território de 510 milhões de km2, dividido entre Estados, onde os bens comuns globais são os restos territoriais que sobram. No entanto, o que distingue este planeta de todos os outros é a existência de um sistema extraordinariamente autorregulado e altamente interligado, capaz de suportar a vida. Porque até há pouco tempo a ciência não era capaz de o definir e não se restringe ao bem comum territorial tradicional, mas abrange áreas sujeitas à jurisdição nacional, este sistema é ignorado pelo direito internacional. Atualmente, o Sistema Terrestre é uma intangível terra de ninguém, operando num cenário de tudo por tudo, onde não há restrições à sua utilização, nem compensação para aqueles que mantêm a sua função. Hoje é possível definir qualitativamente os processos-chave que sustentam o funcionamento do Sistema Terrestre -- os Limites do Planeta -- e medir quantitativamente a estrutura biogeofísica favorável correspondente a um Sistema Terrestre que funciona bem. Este é o chamado Espaço Operacional Seguro para a Humanidade, e este espaço não é territorial, mas sim intangível, representa a qualidade de estado do sistema.

Portanto, hoje é possível identificar o estado favorável do Sistema Terrestre?

Sim, como um bem comum global intangível que deve estar sujeito a um regime jurídico, capaz de organizar a sua utilização sustentável e justa. Mas, mais importante, tendo esta descrição objetiva como ponto de partida, é possível considerar como entidades jurídicas separadas os ciclos biogeofísicos à escala global e os fluxos de energia do Sistema Terrestre, por um lado, e o planeta físico e o espaço de soberanias territoriais dos Estados, por outro lado. Assim, do ponto de vista jurídico, temos hoje a capacidade científica e técnica para quantificar um estado estável e funcional do Sistema Terrestre como um objeto intangível de direito internacional que, por ser global e indivisível, deve pertencer a toda a Humanidade. Até agora, a inexistência legal do Sistema Terrestre resultou num modelo económico global em que os processos biogeofísicos planetários são invisíveis e externos aos processos económicos, apesar de serem fatores vitais para o bem-estar da Humanidade e mesmo para uma economia funcional.

Como pode então mudar o modelo económico?

Ao incorporarmos conceitos da ciência moderna no direito internacional, é possível construir um sistema de contabilidade onde não só os impactos negativos que contribuíram para a depreciação deste património comum podem ser contabilizados, mas também os impactos positivos (tanto dos ecossistemas como da ação humana) que contribuem para a sua manutenção devem ser incluídos. A visibilidade económica dos impactos positivos sobre o Sistema Terrestre poderia ser a oportunidade para quebrar o ciclo vicioso de destruição, e para fomentar a evolução do quadro legal para a construção de uma economia regenerativa sustentável capaz de produzir, restaurar e renovar os serviços naturais essenciais prestados pelo Sistema Terrestre. E em torno deste novo património comum intangível sem fronteiras, novas formas de cooperação e multilateralismo inclusivo poderiam ser concebidas, fundamentadas e desenvolvidas.

Os assuntos mundiais já são tratados em conjunto pela ONU e outras instituições. Como as colocariam na conceção do vosso quadro jurídico para uma gestão adequada do Sistema Terrestre?

O planeta tem sido até agora tratado como um território geográfico dividido entre Estados e os restantes bens comuns territoriais globais. Esta visão unidimensional é demasiado simplificada. Porque deixa de fora a expressão central da Natureza: o Sistema Terrestre funcional como um sistema único e complexo de suporte de vida. Como tal, argumentamos que o estado do Holoceno favorável deste sistema -- ou seja, o conjunto de ciclos físicos, químicos e biológicos interativos à escala global e fluxos energéticos que permitem a vida no planeta -- é o último bem comum global da Humanidade que é um bem intangível e juridicamente indivisível, que a ciência da estrutura dos Limites do Planeta define claramente como o Espaço Operacional Seguro para a Humanidade, como já expliquei. A natureza global e não-territorial deste espaço intangível, juntamente com a natureza territorial da soberania e da propriedade privada, exige uma coexistência. Para o conseguirmos, propomos a ampliação do modelo jurídico que regula as interações humanas em condomínios residenciais para o nível global.

De que maneira pode ser concretizada esta proposta?

Um condomínio é um objeto com uma estrutura unitária e sistemas funcionais comuns, que pertence a vários coproprietários. Cada coproprietário tem direitos privados ou exclusivos de propriedade sobre determinadas frações (por exemplo, apartamentos) enquanto partilha a propriedade sobre elementos estruturais (por exemplo, fundações do edifício) e sistemas funcionais (por exemplo, água ou eletricidade). Este é o único modelo legal que utiliza diferentes tipos de divisões jurídicas (funcionais e espaciais), permitindo assim a coexistência de diferentes regimes legais dentro do mesmo espaço físico. Argumentamos que as divisões funcionais e espaciais encontradas num condomínio são quase perfeitamente semelhantes às dos espaços territoriais do planeta e da indivisibilidade funcional do Sistema Terrestre. Assim, para que as divisões funcionais e espaciais coexistam num Condomínio Planetário, propomos: o reconhecimento do estatuto legal do estado do Sistema Terrestre como Património Natural Intangível Comum da Humanidade; o uso da estrutura do condomínio para resolver a sobreposição entre este património e as jurisdições territoriais do Estado e assegurar a manutenção do património.

A missão de manter o sistema comum num estado de bom funcionamento deve ser então institucionalizada?

Sim. A única instituição relevante com filiação global e legitimidade para acolher tal missão é a ONU. Para atuar sobre todo o Sistema Terrestre e não apenas sobre as suas componentes individuais através de múltiplas agências da ONU, e tendo em plena consideração as dificuldades conhecidas na alteração da Carta das Nações Unidas, propomos, em vez disso, reativar o Conselho de Curadoria da ONU (TC na língua inglesa) com um mandato para servir a missão do Património Comum da Humanidade. No início dos anos 90, o TC foi suspenso por ter cumprido o seu mandato de administrar os chamados territórios de confiança, entretanto entregues a vários países.

O que resultaria em concreto desta iniciativa?

Um Sistema Terrestre saudável e estável é o precursor de todos os bens comuns territoriais globais, e uma necessidade de mitigar todos os desafios ambientais. Um renovado “Conselho de Curadoria para o Sistema Terrestre e os Bens Comuns Globais” seria o principal fórum para tratar da administração dos tratados ambientais existentes e da gestão dos ciclos biogeofísicos globais. E definiria prioridades, compensações, incentivos e quotas entre todos os utilizadores do património comum. Os principais resultados seriam:

-- Um objeto jurídico intangível autónomo de governação, diferencialmente complementar das soberanias -- o Património Comum Intangível da Humanidade;

-- Um quadro institucional com o mandato de governar a gestão da utilização do Sistema Terrestre;

-- O reconhecimento dos ciclos biogeofísicos intangíveis globais como parte do nosso património, permitindo que "externalidades" económicas globais positivas e negativas sejam contabilizadas, internalizadas e geridas;

-- Um novo Quadro Contabilístico do Sistema Terrestre baseado nas contribuições positivas e negativas de cada Estado para a restauração e manutenção desse sistema e de um clima estável, de modo a que funcione bem;

-- Um esquema de compensação económica baseado no equilíbrio entre as "externalidades" negativas e positivas, +e incentivos para promover uma economia que mantenha pró-ativamente o Sistema Terrestre.

Porque dá tanta importância à distinção entre a Preocupação Comum e o Património Comum da Humanidade?

A Preocupação Comum da Humanidade é uma fórmula política vaga que reconhece um clima estável como um objeto jurídico, mas recusa o reconhecimento de um bem comum sem fronteiras. Em vez disso, considera os bens comuns como meras sobras territoriais. Nesta abordagem, cada Estado compromete-se a autoconter os danos, criando um sistema de partilha de encargos. Estes mecanismos representam um jogo de soma negativa em que o recurso global “clima estável" diminui constantemente, devido à falta de um instrumento económico para pagar as emissões negativas, impedindo ainda mais a construção de uma economia capaz de restaurar esse clima estável. Uma vez que este bem público global não é legalmente reconhecido, todos os benefícios que contribuem para o manter desaparecem nesta lacuna jurídica global que torna estes benefícios invisíveis para a economia.

E a visão do Património Comum da Humanidade?

Nesta visão, só através do reconhecimento do bem comum é possível geri-lo como tal. Reconhecer um clima estável como Património Comum da Humanidade significa o reconhecer um objeto jurídico sem fronteiras, onde os impactos negativos são perdas de valor e o mais importante, os impactos positivos, são ganhos de valor no Património Comum. Isto significa que o trabalho intangível da Natureza pode corresponder à criação de riqueza e, por conseguinte, pode tornar-se visível no PIB dos países. Esta inovação jurídica pode levar ao reconhecimento económico do verdadeiro valor do trabalho imaterial da Natureza para os seres humanos. E tornar-se a base jurídica para aplicar os conhecimentos desenvolvidos pelas Ciências Económicas para gerir com sucesso os bens comuns. Esta teoria jurídica em torno dos bens comuns seria uma mudança de jogo, onde a produção de benefícios comuns no Sistema Terrestre corresponderia à criação de riqueza, alterando a regra atual, onde apenas através da destruição da Natureza a economia reconhece a criação de valor. É assim possível construir uma economia de manutenção e restauração de um Sistema Terrestre que funcione bem.

Entrevista feita por Geoffrey Holland, coordenador dos “Diálogos MAHB de Stanford” (Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere), Universidade de Stanford, EUA

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