Sociedade

Kim Sang-Hyup: “Com o New Deal Verde criámos mais de 700 mil novos empregos na Coreia do Sul”

Os Estados-nação nasceram para proteger o interesse próprio do seu território e não para defender os bens comuns globais como o clima"
Os Estados-nação nasceram para proteger o interesse próprio do seu território e não para defender os bens comuns globais como o clima"
d.r.

Kim Sang-Hyup, fundador da Coligação para o Nosso Futuro Comum, considera em entrevista ao Expresso que o Acordo de Paris “é bom mas não é suficiente”, porque devia integrar todas as componentes importantes da agenda ambiental, “como um novo Pacto Global para o Ambiente, que terá de ir para além das fronteiras dos Estados”

Kim Sang-Hyup: “Com o New Deal Verde criámos mais de 700 mil novos empregos na Coreia do Sul”

Virgílio Azevedo

Tradução e adaptação

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Professor da Escola de Graduação em Crescimento Verde da Faculdade de Gestão da Universidade KAIST, na Coreia do Sul, Kim Sang-Hyup é presidente do Instituto de Investigação Jeju. Foi secretário da Visão de Futuro da Casa Azul (sede governamental) no governo da Coreia em 2008 e contribuiu para a definição da histórica visão do crescimento verde de baixo carbono no país, tendo sido nomeado secretário sénior para o Crescimento Verde em 2011. Foi também membro do Conselho da Agenda Global do Fórum Económico Mundial.

Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press.

A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.

O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Pode ver as seis primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães, Karl Burkart e Janene Yazzie. E pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Kim Sang-Hyup AQUI.

A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.

A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (IIDMA, Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.

Como surgiu esta ideia do crescimento verde na Coreia do Sul?

O crescimento verde de baixo carbono foi um novo paradigma da Coreia e é uma ideia muito simples. Trata-se de combater as alterações climáticas de forma muito agressiva e ambiciosa e de transformar os desafios das alterações climáticas em novas oportunidades. Achámos que poderíamos ter imensas oportunidades para alcançar um crescimento verde de baixo carbono em todo o Mundo e não apenas na Coreia. E tudo foi anunciado em agosto de 2008, na comemoração do Dia da Independência Nacional. Mas apenas um mês depois, a empresa de serviços financeiros Lehman Brothers entrou em falência e a crise financeira começou em todo o Mundo. Então, muitas pessoas disseram que a Coreia do Sul seria o navio a afundar-se mais rapidamente com a crise. Contudo, o Presidente da República na época, Lee Myung Bak, pensava de forma diferente e lutou contra a crise lançando um New Deal com uma série de novos projetos. Foi um pacote de estímulos económicos de 42 mil milhões de euros para preparar as futuras infraestruturas de baixo carbono na energia e nos transportes.

Com esta iniciativa foram criados novos empregos?

Aplicando este pacote de estímulos em larga escala em nome de um New Deal Verde criámos mais de 700.000 empregos e houve um grande aumento da competitividade na tecnologia verde. Mas o que foi realmente importante é que definimos pela primeira vez em toda a história industrial da Coreia uma meta para cortar em 4% as emissões de gases com efeito de estufa até 2020. E com o New Deal Verde a Coreia poderia reduzir em 10% a taxa de crescimento das emissões, mas em 2012 caiu quase para zero, o que foi uma conquista notável. Além disso, tentámos institucionalizar o Crescimento Verde, para não ser prejudicado pela mudança de governos. Nesse sentido aprovámos uma Lei de Bases para o Crescimento Verde de Baixo Carbono e leis para os edifícios verdes, para as redes inteligentes e acima de tudo, um enquadramento legal para o comércio de emissões, que foi o primeiro desse tipo na Ásia, seguido mais tarde pela China. E também tentámos institucionalizar os nossos esforços de crescimento verde através da criação com outros países de uma nova organização internacional, o Instituto para o Crescimento Verde Global. Mas o governo seguinte não pareceu gostar muito do crescimento verde e as emissões começaram a subir. Agora temos outra vez um New Deal Verde para enfrentar a crise do Covid-19.

Também é o fundador da Coligação para o Nosso Futuro Comum. Qual é o objetivo desta iniciativa?

O Nosso Futuro Comum é o título de um relatório da ONU de 1987 muito famoso, o Relatório Brundtland, que definiu pela primeira vez o conceito de desenvolvimento sustentável. Portanto, é um assunto amplamente conhecido por muitas pessoas em todo o Mundo. Mas a Coligação para o Nosso Futuro Comum reflete a ideia de que os nossos esforços devem ser interligados em todo o Mundo, de que precisamos de mais cooperação internacional. E temos projetos importantes, como os “Projetos Verdes Big Bang”. A ideia é ter energia, mobilidade e tecnologias verdes a trabalharem em conjunto de uma forma muito interoperável, para avançarem mais depressa e em maior escala e criarem um novo ecossistema industrial de baixo carbono. Outro é o projeto “Voz dos Jovens”, onde estamos a tentar capacitar os jovens e dar-lhes oportunidades de serem os verdadeiros interessados nesta nova era verde e de serem também os decisores. Estas iniciativas estão exatamente em linha com as propostas da Casa Comum da Humanidade (CCH).

Como podem as propostas da CCH ajudar a alcançar esses objetivos e contribuir para a realização de um futuro sustentável?

Se alguém invadir a nossa casa, deve ser penalizado. O Sistema Terrestre é nossa casa. E a ideia é realmente apelativa. As negociações diplomáticas sobre alterações climáticas começaram em 1995 em Berlim com o nome de Conferência das Partes. Eu participei neste processo e na Cimeira do Clima de Copenhaga, na Dinamarca, em 2009, e desde então nunca mais perdi a Conferência Anual das Partes sobre Alterações Climáticas. Durante estes 25 longos anos de diplomacia chegámos ao Acordo de Paris, o que é realmente notável. Mas, para minha tristeza, com este acordo as emissões globais de gases com efeito estufa ainda estão a aumentar. Este ano é uma exceção devido ao coronavírus, talvez as emissões venham a cair 6% ou 7%, não porque fizemos a escolha política certa, mas por causa da pandemia.

O que significa a Conferência das Partes? Quais são as Partes?

Para o direito internacional, as partes são apenas os Estados-nação soberanos. Mas os Estados-nação soberanos estão realmente interessados em combater as alterações climáticas globais? Se olharmos para a História, os Estados-nação nasceram para proteger o interesse próprio do território, algo que não foi projetado para defender os bens comuns globais como o clima e combater as alterações climáticas.

Então, precisamos de uma nova abordagem?

Sim, e é por isso que me vinculo fortemente ao espírito da Casa Comum da Humanidade (CCH), escolhendo os bens comuns globais como o nosso verdadeiro problema comum. Portanto, este é um momento muito bom para pensarmos seriamente em dar uma identidade soberana ao próprio Sistema Terrestre, a melhor entidade jurídica para o nosso planeta. Esta é para mim a maior virtude da CCH. Não vai ser fácil, mas devemos superar o interesse individual dos Estados-nação em todo o Mundo através de um conceito mais amplo, maior e abrangente, que é o que a CCH está a tentar fazer.

Como estão as alterações climáticas a afetar a Coreia do Sul?

Em geral, o aumento da temperatura e do nível do mar na Coreia está a ser cerca de duas vezes maior do que a média mundial. A Coreia pertence a uma região de clima temperado ameno, mas hoje está a transformar-se numa região semitropical. E de acordo com o recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), a partir de meados do século XXI não haverá inverno na ilha de Jeju, onde eu vivo. Vamos ter um longo verão e uma primavera e um outono muito curtos.

Na Assembleia Nacional da Coreia no início deste ano, 98% dos governos locais declararam uma emergência climática, a maior declaração deste tipo até hoje. Como vai esta declaração ajudar a impulsionar a ação climática no futuro?

Bem, os políticos são muito bons a dizer palavras bonitas, mas não a falar em ações concretas. A Coreia do Sul surgiu com projetos em grande escala no contexto do New Deal Verde a que já me referi, que envolvem investimentos de mais de 84 mil milhões de euros. E quase metade deste valor diz respeito à segunda fase do New Deal Verde. Mas até agora, este plano ainda não tem metas de redução de emissões, apenas aspira votar o objetivo de carbono zero nas instituições internacionais. Por isso, ficaria muito feliz se o governo coreano, juntamente com a Assembleia Nacional, viesse a adotar uma meta de redução de emissões para o New Deal Verde. Como o secretário-geral da ONU, António Guterres, apontou corretamente, a solução substancial para esta pandemia é criar uma transição limpa e verde para o nosso futuro sustentável.

Como presidente do Instituto de Investigação Jeju tem trabalhado em novas políticas verdes. O que é o Big Bang Verde de que falou há pouco?

Estou a trabalhar de perto sobre este projeto com o governador da ilha de Jeju, Won Hee-ryong. A ideia é muito simples: precisamos de avançar mais rapidamente e a maior escala como o Big Bang, o evento que deu origem ao Universo. Devemos ser agressivos e ambiciosos. E por isso Jeju quer ser uma ilha neutra em carbono em 2030.

Como é possível atingir esta meta?

Jeju vai substituir todos os automóveis por veículos elétricos e ecológicos. São mais de 300.000 e para conseguir isso, até 2030 os motores de combustão interna serão banidos. E a ilha vai produzir energia 100% por cento renovável. Este plano foi anunciado na Cimeira do Clima de Paris em 2015 e com o Big Bang Verde mais de 20.000 veículos elétricos já estão a circular em Jeju. E a taxa de penetração das energias renováveis é de 15%. Os números alcançados ainda não são suficientes para atingir a meta de carbono zero em 2030, e é por isso que estamos satisfeitos com o arranque da segunda fase New Deal Verde, onde serão investidos oito mil milhões de euros, incluindo investimento privado, e serão usadas novas tecnologias e abordagens. Por exemplo, vamos apresentar o V2G no próximo ano, um automóvel ligado às redes de comunicações. Em Jeju desenvolvemos um sistema de redes inteligentes e o V2G fornece eletricidade à rede quando a tarifa é alta e consome eletricidade da rede quando a tarifa é baixa. É assim que vamos obter um equilíbrio verde. Por outro lado, Jeju vai construir uma infraestrutura para novas formas de mobilidade e muitas outras iniciativas.

O que acha que o novo Pacto Global para o Ambiente deve enfrentar? E como vai a proposta da Casa Comum da Humanidade melhorar a abordagem à crise climática?

Como sabe, não existe uma autoridade global. Não há um governo global para lidar com este tipo de desafios existenciais sem precedentes, como as alterações climáticas. Temos o Acordo de Paris, o que é ótimo, e até mesmo Daniel Yergin, um dos mais importantes especialistas em energia, afirma que a História mundial será dividida em antes de Paris e depois de Paris. Mas este acordo não é suficiente, porque deveria integrar todas as componentes importantes da agenda ambiental, como o novo Pacto Global para o Ambiente, que deve ir para além das fronteiras dos Estados.

É fácil concretizar este Pacto?

Se olharmos para a realidade do sistema político internacional que é governado por Estados-nação soberanos, não é fácil alcançar o Pacto Global. É por isso que o movimento da sociedade civil liderado por organizações como a Casa Comum da Humanidade (CCH) é realmente importante. Deixe, por isso, os cidadãos do Mundo e os media conhecerem muito melhor e em maior profundidade as causas da CCH. As iniciativas internacionais nesta matéria estão dispersas e o papel da Casa Comum da Humanidade é integrá-las, juntá-las, e aumentar a consciência pública global, alinhada com o movimento das comemorações dos 75 anos das Nações Unidas (UN75), onde a CCH e muitas ONG estão a participar ativamente. E alinhada também com os 50 anos da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Humano de Estocolmo 1972, que deu origem ao Programa das Nações Unidas para o Ambiente. Para conseguirmos tudo isto podemos precisar de uma espécie de nova escola para a consciência planetária. Há sete anos criámos na Coreia uma grande escola para o crescimento verde, a KAIST, que é uma das melhores universidades do Leste Asiático. Assim, gostaria de ver a CCH a ter uma intervenção mais forte em termos de promoção da consciência pública global. No início de novembro vamos realizar o Fórum Jeju, bastante conhecido na Ásia. E nesta iniciativa vou organizar uma sessão com a CCH e a Coligação para o Nosso Futuro Comum. O objetivo é precisamente cooperar para concretizarmos o Pacto Global para o Ambiente.

Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press

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