A ativista norte-americana e índia Navajo Janene Yazzie é também co-convocadora do Grupo Principal de Povos Indígenas do Fórum Político de Alto Nível da ONU sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2030. E é ainda uma das fundadoras da Sixth World Solutions, uma empresa que ajuda as comunidades da Nação Navajo a desenvolver projetos económicos sustentáveis.
Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press.
A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.
O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Pode ver as cinco primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães e Karl Burkart. Pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Janene Yazzie, AQUI.
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da ustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (IIDMA, Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.
Qual é o seu trabalho no Fórum Político de Alto Nível da ONU sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030?
O Conselho do Tratado Internacional do Índio e a Fundação Tebtebba, uma conhecida organização global de povos indígenas, juntaram-se para se envolverem no início das discussões dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Os representantes desta parceria estiveram na liderança do processo para garantir, nas negociações sobre o desenvolvimento dos ODS, a inclusão dos povos indígenas. E ficou muito claro para as duas organizações que devíamos participar no desenvolvimento das métricas que foram criadas para medir o progresso de concretização desses objetivos. É assim que os povos indígenas são mencionados em diferentes aspetos das metas dos ODS e das suas métricas. E a Fundação Tebtebba e o Conselho do Tratado Internacional do Índio foram reconhecidos como co-convocadores do Grupo Principal de Povos Indígenas do Fórum Político de Alto Nível da ONU sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2030.
Somos uma das nove organizações da sociedade civil reconhecidas neste importante processo. E garantimos a participação no debate de representantes indígenas de todas as sete regiões sócio-culturais reconhecidas pela ONU, facilitando o seu envolvimento nas discussões de grupos de especialistas durante o Fórum Político de Alto Nível, bem como em todos os eventos paralelos, assegurando desta forma que os países participantes que desenvolvem programas nacionais para alcançar as metas da Agenda 2030 da ONU também estão a ser responsabilizados perante os povos indígenas que residem nos seus territórios. Estamos a passar por um momento emocionante.
A crise da Covid-19 perturbou de algum modo este processo?
Obviamente que a Covid-19 tornou os nossos problemas muito mais difíceis de resolver. Uma das coisas que aprendemos é que muitos de povos indígenas e comunidades de onde eles vêm não têm acesso a infraestruturas críticas, especialmente Internet e telemóveis. Por isso, com a pandemia, enfrentamos algumas barreiras e desafios extraordinários para manter o objetivo de aumentar a participação destes povos e comunidades no Fórum Político de Alto Nível da ONU.
Nesse sentido, temos trabalhado bastante para obter recursos financeiros e outros recursos para algumas das comunidades mais vulneráveis. E é através de toda esta colaboração que realmente encontramos a nossa força como povos indígenas, como todas as comunidades indígenas estão na linha da frente para resolver os problemas relacionados com os impactos das alterações climáticas, da degradação ambiental, do desenvolvimento insustentável e prejudicial às funções dos ecossistemas onde vivemos e à continuação dos nossos modos de vida tradicionais.
Como é que as alterações climáticas estão a afetar a Nação Navajo e a sua comunidade?
Sempre fui uma defensora da justiça social e ser indígena e ter nascido na Nação Navajo deu-me apetência natural por estas questões, porque todas as nossas comunidades estão a lidar sempre com uma série de desafios e de opressão sistémica que influenciam muito a nossa experiência de vida. Quando, em 2011, tive de fazer várias escolhas na minha carreira, era voluntária no Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas e deparei-me com um relatório de avaliação de risco climático, feito com a colaboração de vários cientistas, onde se salientava o risco que enfrentaria a Nação Navajo no sudoeste dos EUA devido aos impactos das alterações climáticas.
Ler esse relatório assustou-me porque tinha sido pela primeira vez mãe e era uma jovem profissional nesta encruzilhada, mas o documento expôs e relacionou muitos dos problemas que eu conhecia e vivia na minha comunidade, como a perda de fontes de água e de vegetação, o aumento da desertificação e a concentração de toxinas no ambiente acumuladas ao longo de gerações devido à indústria mineira na Nação Navajo, em particular a extração de urânio e os impactos do grave derramamento de resíduos da fábrica de urânio da mina de Church Rock, no Novo México, em 1979, o maior acidente de libertação de materiais radioativos da história dos EUA.
Ao ver nesse relatório as previsões de que até 2017 haveria uma mudança dramática por causa da falta de água e que não seriam mais viáveis muitas das atividades da Nação Navajo relacionadas com modos de vida tradicionais, no pastoreio de ovelhas, na pecuária, na agricultura ou na alimentação, devido às alterações climáticas nos nossos territórios, tudo isso foi um alerta que me trouxe de volta para casa, para a Nação Navajo.
O meu regresso com a intenção de enfrentar os impactos das alterações climáticas acabou por se cruzar com os problemas da água, da energia e dos sistemas alimentares. E focando-me em particular em ajudar a trazer dados, experiências e recursos disponíveis noutras comunidades indígenas que nos poderiam capacitar para resolvermos os nossos problemas, dando prioridade a uma visão partilhada para os nossos recursos e bem-estar comum, para criar planos de mitigação e adaptação climática e também defender proteções mais fortes para os nossos direitos de água.
Tem sido uma batalha contínua desde então, mas com a Covid-19 vemos como é realmente precária e vulnerável a situação das nossas comunidades indígenas no acesso à água, na segurança alimentar, na saúde, em todas as frentes. E todos os problemas que enfrentamos estão interligados com os impactos das alterações climáticas. Por isso, as soluções para resolvermos estes problemas precisam também de estar interligadas, precisam de ser globais, holísticas.
As comunidades indígenas protegem 80% de biodiversidade global. No entanto, muitas vezes têm um papel limitado, ou são totalmente excluídas das discussões multilaterais sobre governança ambiental. O Pacto Global para o Ambiente pode ajudar a resolver este problema?
O Pacto Global para o Ambiente tem muito potencial para nos unir como humanos, para reconhecermos que temos uma casa partilhada, o nosso planeta, bem como um interesse partilhado em preservar esta casa e todas as dádivas maravilhosas que vêm da diversidade de funções de ecossistema que esta casa assegura. Nessa unidade, podemos superar todas as diferenças para encontrarmos um terreno e um propósito comum, e restaurar a nossa responsabilidade partilhada por tudo o que nos foi dado pela Natureza.
Se pudermos continuar a construir uma visão partilhada que pode ser oferecida através de um Pacto Global para o Ambiente, podemos descobrir como aproveitar todos as dádivas maravilhosas da Natureza e encontrar novos caminhos entre todos os povos para criarmos um futuro que beneficie toda a vida na Terra. E hoje, com a crise da Covid-19, mais do que nunca, é o momento para a ONU avançar com este Pacto Global para o Ambiente.
A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas adotada pela ONU reconhece o direito às terras, territórios e recursos, mas não é juridicamente vinculativa. Acha que o quadro jurídico inovador proposto pela Casa Comum da Humanidade ajudaria a resolver este problema?
Sim, sem dúvida, precisamos muito de um novo quadro jurídico no direito internacional para ajudar a lidar com os problemas globais que enfrentamos no planeta. Muitas das ameaças aos direitos dos povos indígenas vêm de políticas nacionais, de interesses particulares de cada Estado e da manutenção de sistemas de colonização nos seus territórios. Por isso vejo a proposta da Casa Comum da Humanidade (CCH) como o mesmo tipo de iniciativa, mas numa escala maior. E gosto realmente da forma como a CCH está a reconhecer que as fronteiras geopolíticas que separam as nossas nações e comunidades são uma parte do problema que precisa ser resolvido a fim de criarmos um sentido de partilha, compromisso e responsabilidade com todos em relação às funções do nosso ecossistema global.
Se as pessoas puderem ler mais e saber mais sobre as lutas específicas dos povos indígenas que estão a acontecer nas fronteiras dos países e nações, penso que isso ajudaria a revelar como essas divisões de território são problemáticas. Por exemplo, a resistência à construção do muro na fronteira entre os EUA e o México, é uma resistência para continuar a proteger ecossistemas vitais e preciosos que são muito vulneráveis às mudanças climáticas. E estas ameaças têm uma longa história, com o desenvolvimento da fronteira dos EUA com o México, porque há várias comunidades indígenas que atravessaram sempre essa fronteira.
Essa longa história passou pela introdução de questões sócio-políticas, da criminalização e militarização da fronteira, da destruição e degradação ambiental. Tudo isso veio interromper as atividades dos ecossistemas e trouxe formas prejudiciais de desenvolvimento, ameaçando alguns de nossos recursos naturais mais preciosos e funções dos ecossistemas que são uma parte vital da saúde de rios nacionais como o rio Colorado, crucial para o sudoeste dos EUA e o norte do México.
Precisamos é de um enquadramento jurídico totalmente novo que nos proteja dos interesses de um Estado e de grandes empresas como os que durante anos dissecaram as nossas terras e os seus recursos para gerar lucros. Na verdade, a Humanidade precisa de construir grandes alianças e parcerias para lidar com todos os desafios que hoje enfrenta. E tanto o Pacto Global para o Ambiente como o novo enquadramento jurídico no direito internacional que está a ser proposto pela Casa Comum da Humanidade são um passo fenomenal nessa direção.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press