Governo diz que "a informação sobre todas as reformas consta do PPR". Mas não consta toda (e o próprio Governo reconheceu)
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Gabinete do primeiro-ministro fez uma nota à imprensa sobre a manchete do Expresso ("Governo esconde reformas negociadas com Bruxelas"), garantindo que publicou toda a informação. Mas foi o próprio gabinete de António Costa que reconheceu ao Expresso que as tabelas completas com as reformas, seus detalhes e calendário de implementação só será publicado quando Bruxelas aprovar o PRR português. Veja a nota - assim como a informação que falta conhecer
O gabinete do primeiro-ministro publicou esta sexta-feira uma "nota à comunicação social" sobre a manchete do Expresso, tentando contrariar a informação de que o Governo ocultou informação entregue à Comissão Europeia sobre as reformas estruturais que o Governo se propõe a implementar até 2026, nos seus detalhes e respetivo calendário de implementação. Assim, diz o Governo, "ao contrário do que titula o semanário Expresso, a informação sobre todas as reformas incluídas no Plano de Recuperação e Resiliência consta do documento divulgado".
Mas a nota do gabinete do primeiro-ministro não corresponde aos factos. Como noticiou o Expresso, nos documentos do PRR publicados na semana passada (na parte dos anexos pedidos pela Comissão Europeia), constava uma lista investimentos previstos (189), com metas e o ano a executar (faltava o seu detalhe e calendário por trimestre) e ainda uma "lista de reformas" em folha e meia, com apenas uma descrição genérica de 37 reformas. Só depois de perguntas do Expresso, sobre o porquê de haver uma diferença tão grande entre as listas de metas e investimentos e a das reformas, é que o Governo publicou uma lista de marcos - muitos dizem respeito a reformas - de seis páginas, com 110 indicadores. Uma "versão síntese" e "editada", como assumiu ao Expresso o gabinete do primeiro-ministro. Mas uma vez mais o calendário não refere os trimestres e falta a descrição detalhada.
Além disso, estes 300 indicadores, entre metas e marcos, são apenas uma parte dos mais de 1600 que seguiram para Bruxelas.
De resto, isso mesmo foi assumido pelo gabinete do primeiro-ministro, nas respostas enviadas ao Expresso na quinta-feira, e devidamente publicadas na notícia que faz manchete: “Considerou-se que a versão pública deveria corresponder a uma versão síntese". Mais: nessa mesma resposta o Governo dizia que a sua intenção era publicar essa lista completa só depois de haver uma aprovação do PRR português pela Comissão: "Com a aprovação do PRR, a versão final deste programa será integralmente pública no Portal da Transparência”. Eis a resposta completa do gabinete de Costa ao Expresso na quinta-feira:
"Neste momento em que a COM procede à avaliação do PRR, considerou-se que a versão pública da parte 2 do PRR deveria corresponder a uma versão síntese dos múltiplos documentos e ficheiros técnicos de difícil leitura submetidos na plataforma oficial. Com a aprovação do PRR, a versão final deste Programa será integralmente pública no Portal da Transparência"
Agora, o gabinete de António Costa acrescenta que "as mesmas [reformas] decorrem das Recomendações Específicas por País (REP), que são públicas." Sendo correto que essas recomendações são públicas, o Expresso não pode garantir que esta afirmação seja correta - só e apenas porque o anexo completo, detalhado e calendarizado não foi tornado público. Esse anexo, como explica corretamente a nota de São Bento agora publicada, tem como objetivo fixar a "listagem das reformas (e investimentos) e listagem dos marcos e metas associados aos desembolsos" - ou seja, às transferências da "bazuca" que Bruxelas só fará para Portugal se cada um desses calendários, por medida, for escrupulosamente cumprido.
Na "nota" enviada à comunicação social, o gabinete do primeiro-ministro diz que no restante corpo da proposta de PRR entregue e publicada existe informação sobre essas reformas, o que é correto - e também foi escrito pelo Expresso na notícia que dá corpo à manchete. Mas nessa parte do relatório não aparece com detalhe todo o processo legislativo que terá de ser feito para cada uma das reformas, tão pouco o seu calendário detalhado. De resto, não é suposto: é mesmo nesses anexos (de que o Governo optou por fazer uma "síntese") que essa informação deve constar.
Depois, o gabinete do primeiro-ministro diz que "as diversas apresentações sobre o PRR incluíram também informação relativa às reformas nele incluídas, como se pode constatar, por exemplo, na brochura informativa distribuída na sessão de 16 de abril, em Coimbra". O que, uma vez mais, só parcialmente corresponde à verdade: nesses documentos colocados em consulta pública há cinco páginas e meia com informação sobre as reformas pedidas por Bruxelas, mas - uma vez mais - sem concretizar como o Governo pretende, especificamente, concretizá-las - e sem meta para a implementação. Esse, de resto, também não era o momento em que o Governo tinha de o fazer.
Por exemplo, relativamente a uma das mais sensíveis dessas reformas, a que pretende reformar as profissões reguladas (vulgo, acesso às profissões e limite à atuação das Ordens Profissionais) esse documento diz apenas que está "em preparação" um projeto no âmbito da Assembleia da República. Os termos do que está lá escrito são exatamente os que agora estão plasmados na primeira parte do PRR e hoje enviado pelo gabinete do PM:
"Na página 44 pode ler-se: 'O PRR prevê ainda uma reforma de redução das restrições das profissões reguladas (RE-r14), no âmbito da componente C6. Esta matéria, de reconhecida importância por Portugal, está prevista no Programa do XXII Governo Constitucional, estando neste momento em preparação, na Assembleia da República, um projeto de lei que visa adequar a atuação das associações públicas profissionais, eliminando restrições à liberdade de acesso e de exercício da profissão e prevenindo infrações às regras da concorrência na prestação de serviços profissionais, nos termos do direito nacional e nos termos do direito da União Europeia.”'
Sobre esse ponto a "nota" agora enviada diz até que "é também falso que o documento seja omisso sobre a implementação da reforma das ordens profissionais altamente reguladas.". Mas o Expresso, na sua manchete, não diz que o documento é omisso, diz, sim, que "não consta da calendarização disponível". E até acrescentando que "o Expresso sabe que os pormenores para se fazer a reforma existem, incluindo uma calendarização por trimestre, mas na versão publicada é apenas remetido para a Assembleia da República." Nota adicional: esta reforma está a ser exigida por Bruxelas a Portugal desde a primeira versão do Memorando da troika, até ao tempo deste Governo. E no verão passado o Governo e PS diziam já que estavam a preparar esta legislação. Até hoje, não foi apresentada.
Mas o gabinete de António Costa vai mais longe, hoje: diz que "o marco estabelecido para a reforma, associado ao desembolso, consta da listagem do Anexo respetivo". E mostra uma linha da síntese do anexo que foi tornada pública:
“C06 Entrada em vigor da proposta legislativa até ao 4º trimestre de 2022”
Problema: esta linha, que consta do documento, não explica a que medida se refere. Outro problema: no quadro que foi entregue em Bruxelas - a que o Expresso teve acesso - o calendário não corresponde ao que agora é dito pelo gabinete do PM: diz, antes, que a implementação será no 2º trimestre desse ano, pelo menos para uma parte dessa reforma, a que se aplicará aos administradores judiciais.
Sendo este ponto exemplificativo, a verdade é que o desconhecimento da versão do PRR entregue em Bruxelas se multiplica por outras vertentes. Como explicou o Expresso, em Bruxelas o Governo entregou 1654 indicadores (metas e objetivos, divididos em investimentos e reformas), mas na versão tornada pública decidiu só 300, mesmo esses sem o detalhe e calendário preciso que foi entregue à Comissão. É tudo isso que falta conhecer.
Uma comparação simples entre a síntese publicada pelo Governo português e o anexo completo que o Governo alemão decidiu publicar mostra bem as diferença de informação:
Página do anexo publicado pelo Governo português, resumindo várias reformas numa ágina
Página do anexo publicado pelo Governo alemão, só referente a uma medida
Aqui fica a nota enviada hoje pelo gabinete do primeiro-ministro:
NOTA À COMUNICAÇÃO SOCIAL
Ao contrário do que titula o semanário Expresso, na sua edição de hoje 30 de abril 2021, a informação sobre todas as reformas incluídas no Plano de Recuperação e Resiliência consta do documento divulgado. Acresce que as mesmas decorrem das Recomendações Específicas por País (REP), que são públicas.
Secção 1.1 da Parte 1: Ligação das reformas incluídas no PRR com o Semestre Europeu (onde se inserem as REP);
Parte 2: Apresentação de todas as reformas (e investimentos), por Componente;
Anexos: Listagem das reformas (e investimentos) e listagem dos marcos e metas associados aos desembolsos.
As diversas apresentações sobre o PRR incluíram também informação relativa às reformas nele incluídas, como se pode constatar, por exemplo, na brochura informativa distribuída na sessão de 16 de abril, em Coimbra (ver documento em anexo, em particular os slides 6 e 7, com a ligação às Recomendações Específicas por País; e slides 11 em diante, para o detalhe por Componente).
No artigo do Expresso escreve-se ainda: “Assim sendo, até lá, as conversas com a Comissão prosseguirão discretas. Como foram as que levaram à lista de reformas preparada ao longo do último ano pelo Governo, que não passou pela consulta pública a que foi sujeita a lista de investimentos previstos.”
Também não é verdade. As reformas constam no documento público e também constavam no documento que foi objeto da consulta pública.
É também falso que o documento seja omisso sobre a implementação da reforma das ordens profissionais altamente reguladas.
Na página 44 pode ler-se: “O PRR prevê ainda uma reforma de redução das restrições das profissões reguladas (RE-r14), no âmbito da componente C6. Esta matéria, de reconhecida importância por Portugal, está prevista no Programa do XXII Governo Constitucional, estando neste momento em preparação, na Assembleia da República, um projeto de lei que visa adequar a atuação das associações públicas profissionais, eliminando restrições à liberdade de acesso e de exercício da profissão e prevenindo infrações às regras da concorrência na prestação de serviços profissionais, nos termos do direito nacional e nos termos do direito da União Europeia.”
No texto da Componente 6, onde se insere esta reforma, lê-se ainda (p.117):
“Redução das Restrições nas Profissões Altamente Reguladas
Portugal tem sido alertado, desde há alguns anos e por múltiplos organismos internacionais, para a necessidade de identificar e eliminar entraves no acesso profissões reguladas. Assim, está em preparação, no quadro da Assembleia da República, um projeto de lei que visa adequar a atuação das associações públicas profissionais, eliminando restrições à liberdade de acesso e de exercício da profissão e prevenindo infrações às regras da concorrência na prestação de serviços profissionais, nos termos do direito nacional e nos termos do direito da União Europeia.”
Esta informação espelha de forma rigorosa e exata o teor das conversações com a Comissão Europeia.
O marco estabelecido para a reforma, associado ao desembolso, consta da listagem do Anexo respetivo:
“C06 Entrada em vigor da proposta legislativa até ao 4º trimestre de 2022 2022”
Aliás, logo em setembro de 2020, quando foram apresentadas as prioridades do PRR com a Presidente da Comissão Europeia, na Fundação Champalimaud, o Primeiro-Ministro referiu-se expressamente a este tema: “Nem todas as reformas têm necessariamente implicações financeiras. No nosso caso, uma das reformas fundamentais que há a fazer tem a ver com o regime das profissões reguladas, ou outras [reformas] que só parcialmente têm uma dimensão financeira, como por exemplo, a recomendação para combater a segmentação do mercado de trabalho.”
Não é verdade, portanto, que exista qualquer reforma em negociação com a Comissão Europeia que não seja pública.
Lisboa, 30 de abril de 2021
Perguntas enviadas pelo Expresso ao gabinete do primeiro-ministro na quarta-feira à tarde e respostas enviadas ao Expresso na quinta-feira à tarde:
1 - Os regulamentos do PRR exigem aos governos da UE que enviem à Comissão uma lista de reformas, devidamente detalhadas e calendarizadas a realizar. Essa lista foi enviada à Comissão Europeia?
Portugal procedeu ao envio de todos os documentos constantes dos Regulamentos, incluindo o detalhe e calendarização das reformas.
2 - Em caso positivo, por que razão o Governo optou por não publicar, na versão final do PRR disponível no Portal do Governo, essa mesma lista devidamente detalhada e calendarizadas - tal como fez para os investimentos propostos?
A informação da calendarização das reformas, e os marcos associados, já se encontra disponível no Portal do Governo desde o dia da disponibilização do docuemnto, em linha com a informação disponibilizada para os investimentos, depois de se detetar que por lapso não estava inicialmente.
3 - Mesmo na versão sobre as reformas que o Governo, a pedido do Expresso, nos fez chegar (Anexo Parte 2 - Marcos por Componente"), as medidas ali apresentadas não se encontram calendarizadas em detalhe como está especificado nos templates disponibilizados pela CE. Acresce que várias não apresentam detalhes específicos sobre as mesma medidas. Porquê?
Portugal tal como referido anteriormente procedeu ao envio de todos os documentos constantes do Regulamento.
Neste momento em que a COM procede à avaliação do PRR, considerou-se que a versão pública da parte 2 do PRR deveria corresponder a uma versão síntese dos múltiplos documentos e ficheiros técnicos de difícil leitura submetidos na plataforma oficial. Com a aprovação do PRR, a versão final deste Programa será integralmente pública no Portal da Transparência.
4 - A versão que nos chegou do Anexo "Marcos por Componente" é a mesma que seguiu para Bruxelas ou uma versão editada?
Como referido anteriormente, todo o documento do PRR publicado, que inclui essa tabela, é uma versão editada de documentos técnicos e múltiplos ficheiros submetidos que vão ser disponibilizados integralmente.
5 - Tendo em conta que haverá uma avaliação semestral pela CE do cumprimento de cada passo de cada reforma, o Governo enviou essa timeline semestral e/ou trimestral para Bruxelas?
A avaliação é feita com base nos marcos e metas acordados com a COM. A avaliação é feita normalmente numa base semestral, associada aos desembolsos.
6 - Esta quarta-feira, o senhor primeiro-ministro apresentou o Portal da Transparência do PRR. Considera o Governo que a informação neste momento pública é suficiente e transparente para o “escrutínio” que o cidadão deve fazer dos poderes públicos?
Dada o volume e a concentração dos fundos PRR, o Governo decidiu reforçar os mecanismos de controlo de execução destes fundos. O Mais Transparência, não se cingindo apenas ao PRR, dá um importante contributo para este objetivo. É uma ferramenta de prestação de contas do uso de fundos nacionais e europeus e pretende reforçar o escrutínio e estimular a cidadania.
O Portal deve ser visto em conjunto com outras iniciativas que visam precisamente reforçar a transparência. Desde logo, os mecanismos de auditoria e controlo de execução específica do PRR, com vários níveis de coordenação e acompanhamento e com a participação de um número alargado de entidades. É neste contexto que se insere a atuação da Comissão Nacional de Acompanhamento, presidida por uma personalidade independente e personalidades de reconhecido mérito, e que integra um alargado conjunto de entidades do setor empresarial, da ciência e conhecimento, da área social e cooperativa, e dos territórios; da Comissão de Acompanhamento por parte da AR; do Tribunal de Contas; ou das próprias instituições europeias, incluindo o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF).
Outros exemplos são o Protocolo de colaboração celebrado entre DCIAP e AD&C para partilha da informação, de forma a facilitar a investigação de crimes de fraude na obtenção ou desvio de subsídio em operações e entidades candidatas a apoios ou apoiadas pelos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, ou o esforço de combate à corrupção no âmbito da Estratégia Nacional contra a Corrupção.
7 - Há uma grande concentração de medidas nos anos de 2021 e 2022. Qual o motivo?
O objetivo central do PRR é assegurar uma célere recuperação e dotar o país de um enquadramento propício a um crescimento sustentado e sustentável. Por essa razão, é importante iniciar os investimentos o mais cedo possível e ainda durante 2021.
8 - Na lista geral de reformas (p313 e p314) não constam as da Componente 4 e 7, Cultura e Infraestruturas, que depois aparecem detalhadas nas milestones. Qual o motivo?
Os marcos são, em geral, de natureza qualitativa e, por isso, surgem normalmente associados a reformas. No entanto, alguns marcos dizem respeito, não a reformas, mas sim a condições necessárias para a concretização de investimentos (estudos, procedimentos de candidatura, contratações, etc.). É esse o caso dos marcos das Componentes 4 e 7 que, efetivamente, não têm reformas associadas. É importante recordar que as reformas procuram responder aos principais bloqueios estruturais do país e devem ser lidas no seu conjunto. Não é necessário que todas as componentes tenham reformas associadas.
9 - Existe no documento alguma tabela com as reformas detalhadas fazendo corresponder essas reformas a cada Recomendação Específica (REP) feita pela CE?
A Figura 16 mapeia as componentes e as REP de 2019 e 2020. O texto do ponto 1.1 (Articulação com o Semestre Europeu) contém informação adicional que detalha a forma como Portugal responde através do seu PRR às REP 2029 e 2020.