Opinião

E para a banca não vai nada, nada, nada, nada? Tudo!

E para a banca não vai nada, nada, nada, nada? Tudo!

Miguel Prata Roque

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Apegado a uma ortodoxia ideológica já em desuso, o BCE crê – porque, na verdade, apenas de fé se trata – que o aumento das taxas de juro diretoras irá reduzir a procura interna e, assim, reduzir o surto inflacionista que se regista desde o início da guerra da Ucrânia. Sucede que a realidade o desmente, dia após dia. Como entra pelos olhos adentro, a causa da atual inflação não se deve ao aumento da procura

As recentes bancarrotas do Silicon Valley Bank, do Signature Bank, do Silvergate Bank e do Crédit Suisse fizeram-nos recordar de que lado estão os reguladores bancários mundiais, com o BCE de Christine Lagarde à cabeça.

O Banco Nacional da Suíça chegou-se à frente com 50,7 mil milhões de euros. Para fazer aquilo que os acionistas do Crédit Suisse – em especial os sauditas do Saudi National Bank – se recusaram a fazer: injetar dinheiro para cobrir as perdas decorrentes da sua má gestão.

A Reserva Federal Americana não cobriu a parada dos acionistas dos bancos americanos recém-falidos. Mas não deixou de abrir uma linha de crédito de emergência para injetar liquidez nessas massas falidas, no valor de 25 mil milhões de dólares, e de permitir que os depósitos fossem pagos aos seus clientes. Inclusive aqueles depósitos superiores a 250 mil dólares, o que protege também grandes depositantes e investidores de risco que não estavam protegidos pela regra americana vigente até esta decisão excecional de resolução.

Em contraste, quando se dirigem aos consumidores e trabalhadores que vivem do seu salário, os reguladores bancários são extremamente lestos a descartar qualquer apoio. Face à subida exorbitante de preços, à falta de dinheiro para alimentar os filhos e às dificuldades de pagar as prestações de empréstimo de habitação permanente e as rendas da casa, Christine Lagarde respondeu por duas vias: a) Aumentou as taxas de referência do BCE, decisão após decisão, fazendo a taxa Euribor passar de negativa a 3,978%; b) Condenou e instou os governos nacionais a lançarem as pessoas à sua sorte, abstendo-se quaisquer apoios sociais contra-cíclicos. Fê-lo, primeiro, perante o Parlamento, em 26 de setembro de 2022, afirmando que as políticas orçamentais nacionais de socorro à crise económica anulavam a sua política monetária. Foi mais longe, nessa invetiva para que se abandone as pessoas mais frágeis ao seu destino, em 16 de março de 2023, instando os governos nacionais a abandonar os seus programas extraordinários de apoio social.

Na verdade, a última crise do setor bancário já nos habituou a isto.

Quando as coisas correm bem, os lucros são deles. Quando correm, mal os prejuízos são nossos.

Viciados nas subvenções estatais – que tanto criticam, quando se destinam aos mais desfavorecidos –, cedo os grandes acionistas de bancos mal geridos vêm de mão estendida, sob a ameaça de que são grandes demais para cair (“too big to fail”). Acontece que o risco do negócio faz parte da liberdade de iniciativa privada. Quando o Direito reconheceu a necessidade de criar uma personalidade jurídica autónoma para as pessoas coletivas (com as empresas à cabeça), fê-lo, justamente, para desonerar o comerciante do perigo de ver o seu património pessoal afetado pelo risco do negócio. Desse modo, favorece-se o empreendedorismo e garante-se a capacidade de arriscar e de criar valor em benefício de toda a sociedade.

Ora, essa autonomização ficcionada das empresas não pode é servir para eliminar, de todo, qualquer risco próprio do negócio a que se dedicam. Senão, não é negócio. É renda garantida. Dito de outra forma: estranha-se que os arautos de uma economia de mercado sem limites estejam permanentemente a privatizar lucros e a socializar prejuízos. É caso para se dizer: és socialista e não sabias.

Que seja uma instituição da União Europeia a promover esta visão do mundo é que se revela totalmente inaceitável e indecoroso.

Desde logo, porque esta postura viola o próprio Tratado da União Europeia que, no seu artigo 2.º, n.º 3, estabelece que a União assenta “numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social”. Faz tábua rasa desse mesmo preceito vinculativo que determina que “a União combate a exclusão social (...) e promove a justiça e a proteção sociais”. E viola, de modo gritante, o direito fundamental ao apoio social em caso de carência consagrado pelo artigo 34.º, n.º 3, da Carta dos Direitos Fundamentais, que assegura que, “a fim de lutar contra a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes”.

Que fique bem claro: o BCE é independente (para garantia de todos nós), mas não é irresponsável, nem está acima da lei e do Direito. Aliás, nos termos do artigo 263.º do Tratado de Funcionamento da União, as suas decisões vinculativas podem ser alvo de impugnação, perante o Tribunal de Justiça, a pedido de qualquer Estado-Membro, da Comissão, do Conselho, do Parlamento Europeu ou até dos cidadãos, sempre que viole o Direito Europeu.

No caso específico das sucessivas subidas das taxas de juro de referência, pode mesmo duvidar-se se as mesmas não violam o princípio da segurança jurídica e o princípio da proporcionalidade, consagrados, respetivamente no artigo 1.º do Tratado da União Europeia e no artigo 52.º da Carta dos Direitos Fundamentais, ambos mais do que aceites e consolidados como tradições constitucionais comuns dos Estados, pelo artigo 6.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia.

Explico.

Apegado a uma ortodoxia ideológica já em desuso, o BCE crê – porque, na verdade, apenas de fé se trata – que o aumento das taxas de juro diretoras irá reduzir a procura interna e, assim, reduzir o surto inflacionista que se regista desde o início da guerra da Ucrânia. Sucede que a realidade o desmente, dia após dia. Como entra pelos olhos adentro, a causa da atual inflação não se deve ao aumento da procura de quem precisa de comprar leite para os seus filhos ou de pagar transportes e combustíveis para poder trabalhar. Ela deve-se à rotura das cadeias de produção, ao aumento circunstancial de vários fatores de produção e à persistência de uma inflação oportunista que se prolonga por mais tempo do que o justificado pelos anteriores fatores.

Ora, insistir na penalização daqueles que não podem fugir ao consumo de bens e serviços essenciais – ou seja, de quem vive do seu trabalho e do seu salário –, ao mesmo tempo que se abrem os cordões à bolsa cada vez que a má gestão do setor bancário estende a mão apenas contribui para o agravamento da crise económica e para a perda de coesão social, como bem explica o Nobel da Economia Joseph Stiglitz. E, por outro lado, viola, de modo flagrante, o princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes da justa medida e da razoabilidade. Punir aqueles que não podem evitar o consumo é simplesmente martírio. Para não dizer sadismo.

Por outro lado, ao subir as taxas de juro de referência para níveis históricos (e, assim, afetando as taxas Euribor), o BCE espezinha o princípio da segurança jurídica, que decorre do princípio do Estado de Direito, consagrado pelo artigo 1.º do Tratado da União Europeia. Com efeito, com a subida da Euribor, afetam-se não só os novos contratos de empréstimo e as atuais decisões de compra de habitação própria, mas também todos os contratos de empréstimo anteriores. Mesmo os que foram celebrados há 30 e há 20 anos. Por conseguinte, estas subidas de juro não afetam opções de consumo presentes, mas apenas as que já foram tomadas. Ora, se pode justificar-se que a subida da Euribor sirva para retrair a aquisição de novas casas, ela já não tem qualquer efeito sobre aqueles que já compraram casa e mantêm contratos de empréstimo em curso. O único efeito é amarrá-los a despesas exorbitantes com juros que os impedem de ter dinheiro para dar de comer aos filhos e para comprar medicamentos. Ou forçá-los a incumprir as prestações e a ficar sem as respetivas casas.

Como é evidente, só uma visão completamente invertida do Direito Europeu é que pode conduzir o BCE a julgar que só serve para garantir a segurança jurídica dos grandes acionistas de bancos e a estabilidade do setor financeiro, mas que pode borrifar-se para a segurança jurídica dos trabalhadores e dos cidadãos comuns.

Mais estranho que o BCE esteja tão preocupado em reduzir os cidadãos europeus à condição de indigentes, ao invés de exercer a sua função de regulador. Se o fizesse, já teria constatado que, apesar da taxa de referência para os juros de empréstimo começar a roçar os 4%, os mesmíssimos bancos que lucram com esse aumento, persistem em apenas pagar juros de depósito baixíssimos, cuja média é de 0,56%. Estranha-se, portanto, que a subida de juros beneficie sempre os mesmos, não se repercutindo na remuneração do dinheiro depositado pelos clientes desses bancos.

Pior do que isso, sob o pretexto de que as taxas de juro neutras e mesmo negativas reduziam as suas margens de lucros, os bancos privados (e o banco público português) foram subindo, passo a passo, as taxas e comissões por operações quotidianas irrisórias e cujo custo é muito inferior ao valor que cobram aos seus clientes. Por exemplo, a DECO demonstra que as comissões por uma fotocópia de 3 páginas de um saldo de depósito à ordem pode custar 20 euros (!). Só de 2019 para 2020, as comissões bancárias subiram 10,8%, tendo representado 32,8% do produto bancário, em 2019. A regulação bancária fechou os olhos a estas subidas, tolerando-as, precisamente, como moeda de troca pela descida abrupta dos juros.

Pois, agora, os juros já subiram. E as comissões cobradas pelos bancos? Regressaram aos valores anteriores à descida dos juros? A resposta é tão chocante que até assusta. Evidentemente que não. Porque tudo é pretexto para maximizar margens de lucro. Sempre à custa de quem não tem poder para determinar unilateralmente o funcionamento desse (pretenso) mercado onde nunca se pode negociar com a vendedora de fruta. Pena é que o regulador europeu não faça aquilo para que foi criado: garantir um funcionamento equilibrado e justo do setor bancário.

Ao invés, prefere sempre colocar a mão por debaixo de investidores especulativos provenientes de regimes autoritários, de fundos assentes na exploração de combustíveis fósseis e petrodólares, de oligarcas russos e de deslumbrados com a criptoeconomia piramidal.

A crise económico-financeira de 2008/2009 mostrou-nos o resultado que isso deu. Contribuintes a salvar bancos e a pagar pelos desvarios e má gestão de banqueiros sem escrúpulos. Que não se repita.

A não ser que se advogue apenas capitalismo para os pobres e socialização para os ricos.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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