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Um cavalo nunca pisa um homem morto

Há quatro anos que não líamos, em português, nenhuma obra dela. A última tinha sido “Coração Rebelde”, uma compilação de textos ensaísticos, género em que foi e continua a ser prolífica, alimentado por um profundo ativismo. Por vezes encontramo-la nos jornais, a denunciar os desmandos do Governo do seu país, o nacionalismo que detesta, a perseguição de muçulmanos pelo hinduísmo vigente, a destruição dos recursos naturais que deixam milhares de pessoas na miséria, a persistência subterrânea do sistema de castas que - como ela denunciou - Gandhi tanto admirava. Arundhati Roy nunca foi uma voz neutra. Publicou dois grandes romances, “O Deus das Pequenas Coisas”, vencedor em 1997 do Booker Prize, e “O Ministério da Felicidade Suprema” uma década depois.

Em termos de ficção, ficou-se por aqui – e talvez tenham de passar outros dez anos até dar à luz um novo livro. Mas eis que agora surge, pela ASA, “Meu Abrigo, Minha tempestade”, uma autobiografia que a escritora indiana intitulou, seguindo o mantra dos Beatles, “Mother Mary Comes to Me”. Mary é a mãe, mulher de força inaudita que advogou a favor dos direitos das mulheres, que travou uma batalha legal pela igualdade de direitos de herança para as mulheres cristãs em Kerala. Que, arriscando tornar-se uma pária, recusou um matrimónio abusivo e optou por se divorciar, ficando sozinha com dois filhos; que fundou e dirigiu uma escola.

Neste livro, Arundhati dá conta do vínculo complexo com a mãe, de tudo o que ela lhe deu e lhe tirou. De como saiu de casa aos 18 anos para estudar arquitetura em Nova Dehli, indo ao encontro do outro planeta - de quem nem sequer, literalmente, falava a língua - que aquela cidade situada a vários dias da sua aldeia representava. “Não deixei a minha mãe por não a amar, mas para poder continuar a amá‑la. Ficar tê-lo-ia tornado impossível. Depois de sair de casa, não a vi nem falei com ela durante anos. Ela nunca foi à minha procura. Nunca me perguntou porque me fora embora. Não era preciso. Ambas sabíamos. Ficámo‑nos por uma mentira. Uma boa mentira. Fui eu que a inventei – ‘Ela amava‑me o suficiente para me libertar’.”

Tive a oportunidade de a entrevistar duas vezes, e na primeira, em 2017, num pequeno hotel de Londres perto do Convent Garden, o divórcio da mãe veio à conversa: “Quando a minha mãe voltou para Kerala, nós éramos muito pequenos. Ela era uma doente asmática grave e divorciada, e as pessoas tratavam-na mal. Isso enfurecia-a e fazia virar-se contra nós. Dizia-nos coisas terríveis e, mesmo sendo muito novos, nós sabíamos ou intuíamos que ela agia assim porque estava a ser maltratada por alguém. Percebíamos, e isso era horrível.” Admitiu que o passado é um conflito que alimenta a sua escrita: “Houve muita violência mas também muitas dádivas da sua parte, e tudo isso fez-me ser quem hoje sou. E agora sou demasiado crescida para culpar quem quer que seja.” A autobiografia lê-se de um fôlego, uma respiração. Não é uma catarse, mas um ato de entendimento.Tem a cadência literária das grandes obras, o nó apertado e jamais desfeito – nem mesmo na morte – que amarra as relações conflituosas.

Outro volume literário com o pé (e o corpo todo) na realidade é “A Guerra não Tem Rosto de Mulher”, de Svetlana Alexievich, reeditado pela Elsinore. Nobel da Literatura em 2015, surpreendeu o mundo por elevar a tal pódio o jornalismo que constitui a base do seu ‘romance de vozes’, cru e testemunhal, e cinzelado com o cuidado dos melhores artífices. Este volume publicado em 1985 foi a obra de estreia desta escritora que nasceu na Ucrânia e cresceu na Bielorrússia, mas sofreu alterações em 2002 que fixaram o texto final já não sujeito à censura. Debruça-se sobre algo nunca antes tocado, intocável: a história do milhão de mulheres que combateram no Exército Vermelho, através da voz de duzentas jovens russas. “Elas não mencionam (...) o que nos habituámos a ler e ouvir: como umas pessoas matavam heroicamente outras e venceram. Ou perderam. Que meios tinham, quem eram os generais. (...) Nesta guerra, não há heróis nem proezas incríveis, mas tão-só as pessoas ocupadas na sua atividade humana e simultaneamente desumana. Lá não são elas, as pessoas, a sofrer, mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que habitam a terra connosco. (...) Mas porquê?, perguntei-me mais de uma vez. Porque não defenderam a sua história as mulheres que disputaram e ocuparam o seu lugar num mundo outrora completamente masculino? As suas palavras e os seus sentimentos? Não acreditaram em si mesmas? (...) Quero escrever sobre a história desta guerra. A história feminina.”

Alexievich aprendeu a arte de ouvir. Esperou pacientemente pelo momento em que a entrevistada se afastava do cânone “de gesso ou de cimento armado como os nossos monumentos” e começava a olhar para dentro de si própria. Tornou-se um “ouvido grande, sempre virado para outra pessoa”. Passou dois anos a ver recusado o manuscrito pelas editoras, que o consideravam demasiado aterrador, demasiado ‘real’, pouco engrandecedor do Partido [Comunista] enquanto líder e guia. Nele a mulher não é santa, como quer o censor, mas uma fêmea, uma “mulher comum”. Um manuscrito que não contava a grande história, mas as ínfimas, milimétricas preocupações de miúdas - uma lembrava-se que durante a guerra até cresceu -, um vestido emprestado, a sensação de a farda aprisionar o corpo e o desejo, a visão de uma mãe a afogar o próprio bebé a berrar com fome para não ser descoberto pelos cães dos alemães. “Um cavalo nunca pisa um homem morto”, lemos.

Por cá, o volume “Construtoras de Impérios - Vozes de Mulheres na Expansão Portuguesa”, lançado pela Temas e Debates, vai por um caminho semelhante – embora puramente científico. Trata-se de uma investigação coordenada por Amélia Polónia, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em que participam os também historiadores Amândio Barros, António Manuel Hespanha e Rosa Capelão. São quase 500 páginas dedicadas às mulheres enquanto agentes que também sustentaram o movimento expansionista, contribuindo com ele, numa tentativa, em sintonia com muitas outras, de ultrapassar a invisibilidade da mulher nos processos históricos.

Mais à lupa, diz Amélia Polónia que a obra pretende “chamar a atenção para os grupos de mulheres que, com desempenhos diversos, e com distinta visibilidade documental, se revelaram nucleares no processo expansionista português”. Estes são sobretudo o das que ficam, “garantindo o normal funcionamento de sociedades, em particular marítimas”, que sofrem a ‘drenagem’ masculina para outros espaços; mas também as autóctones, “a mulher negra e ameríndia, a mulher asiática - livres ou escravizadas, sem as quais a construção do império ultramarino português não teria sido viável”.

“O que me ensinou o texto. O texto ensinou-me que ele é uma força, e tem um destino”, escreve Maria Gabriela Llansol no recém-saído “A Floresta das Intensidades”, o seu décimo Livro de Horas, publicado pela Assírio & Alvim. Resultado de um trabalho de transcrição e de leitura analítica com mais de 15 anos empreendido principalmente por João Barrento, que se debruça sobre os textos inéditos contidos em 76 cadernos, é mais um passo, dos muitos já dados, no conhecimento do espólio de uma das mais singulares escritoras portuguesas do século XX.

O fragmento que fala do texto como tendo um destino continua: “Que ora se revela, ora se apaga, entre os humanos, e que o seu maior momento não é só quando está a ser escrito, quando alguém projeta fora de si o que experimentou em si mesmo, mas quando aparece, sob nova forma, a quem o lê, e outros veem fora de si o que experimentaram em si mesmos.”

Nessa via de duplo sentido que (des)conecta o autor e o seu texto, o melhor é ser apanhado no meio.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“O que Podemos Saber”, de Ian McEwan (Gradiva)

Novo romance - filosófico, empolgante - do autor britânico, dedicado ao historiador Thimoty Garton Ash, onde se lê: “As variedades do silêncio são tão numerosas como as da fala ou do pensamento. Ou da audição.”

“Huris”, de Kamel Daoud (Bertrand)

Vencedor do Goncourt, romance de um argelino que dá voz aos esquecidos: “Sou o verdadeiro vestígio, o mais sólido dos indícios a atestar tudo o que vivemos. Escondo a história de uma guerra inteira inscrita na minha pele desde criança.”

“Sexografias”, de Gabriela Wiener (Antígona)

Da premiada jornalista e autora peruana, nascida em Lima, em 1975, e residente em Espanha, um livro de 2008 com crónicas que mergulham, percorrendo vários cenários, no tema da sexualidade contemporânea.

NÃO-FICÇÃO

“Trincheira Tropical”, de Ruy Castro (Tinta-da-China)

Um livro-biografia do Brasil, mais precisamente do Rio de Janeiro, durante a II Guerra Mundial, entre 1935 e 1945, que é uma filigrana de investigação e mestria na escrita. “Eram três mundos: o democrático, o comunista e o fascista. Como esferas no espaço, eles se aproximavam ou se repeliam”, começa o autor.

“Porque Morremos”, de Venki Ramakrishnan (Temas e Debates)

Do biólogo molecular nascido na Índia que recebeu o Nobel da Química em 2009, um livro que o Pulitzer Siddharta Mukherjee diz ser “sobre o mistério e a metafísica do morrer”.

“Contra o Progresso”, de Slavoj Zizek (Objectiva)

O pensador esloveno e diretor do Bikbeck Institute for Humanities da Universidade de Londres examina a discrepância entre a vida que levamos e o colapso das antigas certezas, a acontecer à nossa frente e ao mesmo tempo.

E hoje ficamos por aqui. Se tiver comentários ou sugestões, por favor envie para lleiderfarb@expresso.impresa.pt

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