Livros

Ian McEwan conta-nos a vida extraordinária e comum de um homem no mundo

27 novembro 2022 14:25

A queda do Muro de Berlim é observada in loco pelo protagonista deste livro, o mais longo e ambicioso dos 17 romances de Ian McEwan

stephen jaffe/getty images

Em “Lições”, romance-síntese da sua arte literária, McEwan esmiúça a existência de um homem normalíssimo, contra o pano de fundo da História dos últimos 75 anos

27 novembro 2022 14:25

Há uma frase de três palavras que pode funcionar como sinopse de “Lições”, o 17º romance de Ian McEwan: “Memórias, danos, tempo.” Tudo neste livro nasce da ideia de que uma vida humana é feita de acumulações — por vezes trágicas, outras vezes apenas prosaicas, banais — de instantes decisivos que desviam o ‘curso’ dos acontecimentos, tanto na escala histórica como na individual. O protagonista, Roland Baines, tem consciência plena dos “acasos, pessoais e globais, minúsculos e monumentais, que tinham formado e determinado a sua existência”. É da tensão entre o seu caminho acidentado, um trajeto cheio de erros, feridas emocionais mal resolvidas, falhanços de vária ordem, e os grandes momentos coletivos dos últimos 75 anos, que nasce a força que insufla e sustenta o fôlego quase épico desta narrativa.

O principal momento decisivo acontece em 1962, quando Roland, aos 14 anos, temendo que a crise dos mísseis de Cuba descambe no apocalipse e ele acabe por morrer virgem, se lança pelos campos, pedalando velozmente na bicicleta, até à porta da sua professora de piano, que já manifestara três anos antes um interesse inusitado pelo corpo pré-púbere do aluno. A aprendizagem erótica e sentimental que se segue, só mais tarde entendida como uma situação de abuso, condiciona indelevelmente o seu futuro. Tudo o que vem depois — a “década perdida” a deambular pelo mundo, entre os 20 e os 30 anos; os trabalhos frustrantes; as relações falhadas; o fantasma do que nunca chegou a ser — irradia daquela experiência precoce, com a qual nunca se reconciliará, nem sequer quando lhe surge, décadas mais tarde, a oportunidade de um ajuste de contas.