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Joe Biden “não é antibritânico”, mas fez discurso em Belfast que pode ser incómodo para os unionistas

Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, na Universidade Ulster, em Belfast
Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, na Universidade Ulster, em Belfast
JIM WATSON/Getty Images

O Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte lançou uma ofensiva mediática para esvaziar qualquer pressão que a visita de Joe Biden pudesse representar para si. O Presidente americano veio em paz, lembrar a importância do Acordo de Sexta-Feira Santa, 25 anos depois da sua assinatura, mas não deixou de avisar que o investimento económico pode crescer se a estabilidade política voltar à Irlanda do Norte. Ora, se o território está sem governo há mais de um ano, é justamente porque os unionistas se negam a negociar com os republicanos, devido ao protocolo que gere as relações comerciais no Reino Unido no pós-Brexit

Joe Biden “não é antibritânico”, mas fez discurso em Belfast que pode ser incómodo para os unionistas

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Joe Biden não é “antibritânico”. A Casa Branca sentiu necessidade de o declarar esta quarta-feira, durante uma visita do Presidente dos Estados Unidos à Irlanda do Norte e à Irlanda. O inusitado esclarecimento acontece porque o Partido Unionista Democrático (DUP, maior força política defensora da manutenção da Irlanda do Norte no Reino Unido) tem dúvidas sobre as simpatias no coração de Biden.

Estas incertezas são motivadas, escreve a imprensa britânica, pela sensação de que o governante americano possa, mesmo não o fazendo em público, culpar o DUP pela atual ausência de Governo na Irlanda do Norte. Se a lei exige que qualquer executivo no território alie a maior força unionista com a maior força republicana (partidária da reunificação irlandesa, no caso, o Sinn Fein), é a recusa do DUP em falar com Sinn Fein que mantém o presente impasse.

Biden está de visita à Irlanda do Norte e à Irlanda para participar nas comemorações dos 25 anos do Acordo de Sexta-feira Santa, também conhecido como Acordo de Belfast. Assinado em 10 de abril de 1998, pôs fim ao período de violência entre católicos (republicanos) e protestantes (unionistas) na Irlanda do Norte. A paz nem sempre é estável, mas é hoje um adquirida para os mais novos, que se revelam cada vez menos próximos de qualquer das fações religiosas e rejeitam o binarismo histórico, revelam estudos.

Biden e o molde europeu

Poucas horas antes de chegar a Belfast, o propósito da visita de Biden ainda era questionado pelos unionistas, escreve “The Guardian”. A clarificação da Casa Branca foi espicaçada pelo líder da bancada do DUP no Parlamento britânico, Sammy Wilson. “Ele é antibritânico, é pró-republicano e não faz segredo da sua antipatia pelos protestantes”.

Wilson foi mais longe ao culpar parcialmente Biden, em entrevista à Talk Radio, pelo bloqueio do Governo em Stormont. “Ele sempre tentou colocar o Reino Unido dentro do molde da União Europeia”, disse o deputado. O DUP é ferozmente eurocético.

O protocolo para a Irlanda do Norte, que gere o comércio entre a Irlanda do Norte e o restante Reino Unido após a saída da UE, não agrada aos unionistas. Assinado por Boris Johnson com os 27, representou uma traição ao que o DUP esperava do então primeiro-ministro britânico: este violou as promessas aos unionistas ao erguer uma barreira aduaneira virtual no mar da Irlanda, ou seja, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte (que juntas formam o Reino Unido).

O DUP teme um afastamento progressivo da Irlanda do Norte em relação a Londres e, potencialmente, na direção de Dublin e Bruxelas. Ao lado da Irlanda do Norte, na mesma ilha, está a Irlanda, membro da UE, com uma economia sólida, cheia de oportunidades de emprego, universidades ligadas à rede Erasmus, que os jovens de Belfast frequentem e muitos preferem.

Ainda por cima, o Acordo de Sexta-feira Santa permite a reunificação, após referendo, caso haja sinais de que tal é o desejo da maioria dos norte-irlandeses. Ora, os católicos estão a crescer mais do que os protestantes. E o Sinn Fein foi o partido mais votado nas eleições de maio de 2022.

Arlene Foster, antiga líder do DUP que chefiou o governo da Irlanda do Norte (2016-17, 2020,21), juntou à voz às críticas à presença de Joe Biden. Numa entrevista à GB News, afirmou que o Presidente “odeia o Reino Unido, não há qualquer dúvida”. Acrescentou que o DUP não sente qualquer pressão com esta visita, porque Biden “é visto por muita gente como um republicano”.

Ascendência não dita política

Amanda Sloat, conselheira de Biden e diretora do departamento de assuntos europeus no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, sublinhou que a ascendência irlandesa de Biden não torna o Presidente parcial na análise de assuntos políticos. “Acho que o passado do Presidente mostra que não é antibritânico. Sempre esteve ativamente envolvido, ao longo da sua carreira, desde que era senador, no processo de paz na Irlanda do Norte. Nesse processo, falou com dirigentes de todos os partidos da Irlanda do Norte, de ambas as principais comunidades”, comentou.

Depois de uma reunião muito rápida com os líderes dos partidos da Irlanda do Norte, Biden fez o seu principal discurso da viagem na Universidade de Ulster (outro nome para o território). O Presidente começou por falar das suas ligações familiares não só à Irlanda como a Inglaterra, fez piadas sobre isso, mas depressa passou para um passado mais recente: o dos Troubles (Sarilhos), nome or que ficou conhecido o período de mais de 30 anos em que Belfast foi uma cidade dividida.

“Foi bom ver Belfast, uma cidade viva, com comércio, com arte e, diria eu, inspiração”, disse o americano, lembrando o arame farpado que existia na zona onde agora está o prédio de vidro, a “catedral do conhecimento” onde falou.

Um legado para a América

Lembrando que o legado cultural irlandês é comum a largos milhares de americanos, Biden realçou que o Acordo de Sexta-Feira Santa é “prioridade para democratas e republicanos, e isso é incomum” entre os dois maiores partidos dos Estados Unidos.

Aproveitou para lastimar a polarização da vida política americana, sem culpar qualquer dos dois partidos do seu país por essa divisão, que tantas vezes parece insanável. “A vossa História é a nossa História. O vosso futuro é o futuro da América”.

Os temas difíceis não ficaram arredados do discurso, incluindo o acordo de partilha de poder, neste momento paralisado, precisamente o assunto que levou a que membros e ex-membros do DUP tenham reprovado Biden. “O regresso ao acordo de partilha do poder atrairia ainda mais oportunidades para a Irlanda do Norte”, disse Biden, elogiando o novo pacto comercial com a UE assinado há cerca de um mês pelo primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Os unionistas rejeitam esse documento, já aprovado pelo Parlamento do Reino Unido. Como tinham previsto, Biden apoia-o: vê-o um passo para dirimir alguns dos “desafios complexos” do Brexit e “essencial para preservar e fortalecer" o Acordo de Sexta-Feira Santa.

O Presidente dos Estados Unidos prezou “estabilidade e previsibilidade”. Pedindo que não o considerassem “presunçoso”, Biden deu o seu aval claro à formação de um Governo norte-irlandês, que exige que DUP e Sinn Fein se ponham de acordo e que, na esteira das últimas eleições, daria pela primeira vez aos republicanos o cargo de primeiro-ministro da Irlanda do Norte, ficando os unionistas com o de vice-primeiro-ministro (na prática, têm iguais poderes e um não pode exercê-los sem o outro).

“As instituições democráticas continuam cruciais para o futuro da Irlanda do Norte”, afirmou Biden. “Espero que a assembleia e o executivo sejam restaurados em breve. É decisão que vos cabe, não a mim, mas espero que aconteça”.

O DUP já respondeu. Jeffrey Donaldson, líder do partido, reforçou que a visita “não modifica em nada a dinâmica política”, apesar de Biden ter prometido, ainda que não por palavras exatas, mais investimento externo caso a estabilidade institucional regresse ao território. Os Estados Unidos são o maior investidor estrangeiro na Irlanda do Norte.

“Sabemos o que tem de acontecer”, para haver novo Governo, disse Donaldson. O DUP quer acabar com qualquer protocolo regulador do comércio entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido. É um objetivo quase impossível, dado que essas ligações económicas têm de ser controladas por Bruxelas, uma vez que a Irlanda do Norte faz fronteira com um país da UE e a mercadoria que vem do Reino Unido pode acabar a passar, sem controlo, da Irlanda do Norte para a Irlanda.

O problema é que o mercado europeu tem centenas de regras de qualidade, higiene, segurança, ambientais para os produtos que são consumidos pelos europeus. O Reino Unido já não tem de cumprir essas regras e Bruxelas é ciosa de proteger o mercado único.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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