Acordo de Sexta-feira Santa viu a luz há 25 anos. A paz na Irlanda do Norte resiste, mas não convém presumir que é dado adquirido
O primeiro-ministro britânico Tony Blair (ao centro na imagem) com os dirigentes norte-irlandeses responsáveis pelo Acordo de Sexta-feira Santa, em 1998. À esquerda, o unionista David Trimble; à direita, o republicano John Hume
GERRY PENNY/AFP/Getty Images
Tensões ensombram efeméride. Nos próximos dias território receberá visitas de Joe Biden, Hillary e Bill Clinton e Rishi Sunak. Mas está sem governo regional há mais de um ano, por falta de consenso entre republicanos e unionistas
A Irlanda do Norte comemora, esta segunda-feira, 25 anos do acordo de paz que pôs fim a três décadas de um conflito sectário, cujas sequelas ainda são visíveis e sentidas. A efeméride é assinalada sem fanfarra e num contexto de tensão.
Foi a 10 de abril de 1998, Sexta-feira Santa desse ano, que se alcançou o acordo entre republicanos nacionalistas (maioritariamente católicos e favoráveis à reunificação com a Irlanda) e unionistas (tendencialmente protestantes e determinados em manter a ligação ao Reino Unido). Foi em Belfast, após intensas negociações entre Londres, Dublin e Washington.
Manifestante contra os controlos fronteiriços entre a Irlanda do Norte quer com a Irlanda, quer com o resto do Reino Unido
O acordo pôs fim à violência entre as duas comunidades norte-irlandesas e o exército britânico, mobilizado para vigiar as ruas da província britânica. O conflito causara até então cerca de 3500 mortos e 40 mil feridos. Passado um quarto de século, os festejos são ensombrados pelo impasse político e pela ameaça de regresso da violência típica da era conhecida como The Troubles. Além do terrorismo de organizações como o Exército Republicano Irlandês (IRA, entretanto autodissolvido), havia os grupos paramilitares unionistas e, ainda, violência policial e militar exercida pelas forças britânicas.
Paralisia há mais de um ano
As instituições locais criadas na sequência do acordo, incluindo um governo regional partilhado entre os dois campos políticos, estão paralisadas há mais de um ano devido a divergências decorrentes da saída do Reino Unido da União Europeia (UE). O Partido Unionistas Democrático (DUP, na sigla inglesa), o maior dessa comunidade, recusa-se a partilhar o poder com o republicano Sinn Fein, vencedor das últimas eleições locais, em maio de 2022.
O DUP iniciou, em 2022, um boicote ao governo e assembleia regionais, recusando-se a participar até que sejam abandonadas as disposições pós-Brexit destinadas a evitar o regresso de uma fronteira física com a Irlanda. Desde que o Reino Unido saiu da UE, o Protocolo da Irlanda do Norte assinado por Londres e Bruxelas gera controvérsia, temendo os unionistas que afaste ainda mais a província do Reino Unido e torne mais provável uma Irlanda unida.
Os 27 renegociaram o texto com o Governo britânico, com vista a responder às preocupações dos unionistas, mas o acordo-quadro de Windsor foi rejeitado pelo DUP, apesar de ter apoio parlamentar maioritário na Câmara dos Comuns.
Momento histórico, em 2011, em que a rainha Isabel II aperta a mão do entõa vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte, Martin McGuinness, militante do partido Sinn Fein e ex-membro do IRA
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Após a tentativa de homicídio de um polícia em fevereiro deste ano, reivindicada por membros de um grupo republicano dissidente, o nível de ameaça terrorista na Irlanda do Norte foi elevado para “grave”, indicando a maior probabilidade de novo atentado. Condenado em uníssono pelos líderes políticos da Irlanda do Norte, o ataque trouxe à superfície memórias da violência que era comum na região, e receios de um reacender das rivalidades.
Desfile de estrelas
Nas próximas semanas, Belfast vai acolher uma série de iniciativas com atuais e antigos dirigentes internacionais para assinalar o aniversário do fim do conflito. Não haverá as celebrações formais que os políticos desejavam.
O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden — que tem ascendência irlandesa e chefia um país onde a imigração irlandesa teve grande importância desde a fundação, no século XVIII —, vai visitar a Irlanda do Norte entre terça e quarta-feira, seguindo para Dublin, onde ficará até sábado. Do programa em Belfast apenas se conhece uma palestra na Ulster University, quarta-feira. A polícia da Irlanda do Norte reconheceu que a visita envolve uma grande operação de segurança, agravada pela informação de que grupos paramilitares dissidentes vão tentar criar desordem pública e lançar ataques nos próximos dias.
A partir de dia 17, a Queen’s University Belfast organiza uma conferência de três dias com a antiga secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton e o seu marido, Bill Clinton, que enquanto Presidente desempenhou papel fundamental na consecução do acordo de paz. Outro participante será o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak.
A conferência centra-se na transformação da província britânica ao longo dos últimos 25 anos, em que assistiu ao desarmamento dos grupos paramilitares, desmantelamento da fronteira militar e retirada das tropas britânicas. Ainda assim, muitos dos muros seguidos entre os anos 1969 a 1971 para evitar confrontos continuam a separar as duas comunidades, refletindo a fragilidade e imperfeição do processo de paz.
O antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, que esteve envolvido no Acordo de Sexta-feira Santa, admitiu recentemente que o Brexit é “uma equação difícil de resolver” em relação à Irlanda do Norte. O seu homólogo irlandês da altura, Bertie Ahern, comparou os últimos anos a andar numa montanha-russa, mas lembrou que o acordo “foi sempre um processo, e os últimos 25 anos foram muito mais agradáveis e encorajadores do que os 25 anteriores”. Em declarações à agência France-Presse, frisou que foram salvas as vidas de muitas pessoas.
Londres aposta na economia
Para o atual chefe do Executivo britânico, é o crescimento económico que pode ajudar a “cumprir a promessa” de um futuro melhor para a Irlanda do Norte. O conservador Sunak afirmou num comunicado, domingo: “O Acordo de Belfast [outro nome do Acordo de Sexta-feira Santa] foi um momento incrível na história da nossa nação. Foi um exemplo muito raro de pessoas a fazerem o que era impensável para criar um futuro melhor para a Irlanda do Norte”.
O primeiro-ministro diz assumir como responsabilidade sua o cumprimento dessa promessa. “A Irlanda do Norte, como o resto do Reino Unido, está repleta de oportunidades, talento e criatividade. O melhor que podemos fazer para melhorar o nível de vida das pessoas e assegurar uma Irlanda do Norte próspera e próspera é o crescimento económico. É algo em que estou incansavelmente concentrado.”
Sunak pretende aproveitar a visita de Biden para atrair mais capital dos Estados Unidos, que já é um dos maiores investidores estrangeiros na Irlanda do Norte: na última década, entrou do outro lado do Atlântico o equivalente a 1700 milhões de euros, criando 13 mil postos de trabalho e contribuindo para o desenvolvimento económico da região. Cerca de mil empresas americanas, como a Microsoft, operam na Irlanda do Norte, tendo sido responsáveis por exportações equivalentes a 1130 milhões de euros em 2022.
O Governo britânico planeia para setembro uma Cimeira de Investimento em Belfast para atrair mais empresas internacionais, com destaque para serviços financeiros e profissionais, tecnologia, ciências biomédicas e industrias sustentáveis. A capital norte-irlandesa já é o segundo maior centro de empresas tecnológicas no Reino Unido, depois de Londres, concentrando mais de 100 empresas dedicadas à cibersegurança.
O reverendo Ian Paisley (do partido unionista DUP) e Gerry Adams (do republicano Sinn Fein) foram polos opostos capazes de dialogar
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O peso da História
As Irlandas separaram-se em 1921, quando seis dos 32 condados irlandeses quiseram permanecer sob a égide do Reino Unido, enquanto os restantes formavam um Estado livre, mais tarde nova República. A era conhecida como The Troubles poderá ter começado (não há consenso) com a morte de Francis McCloskey, católico republicano de 67 anos que morreu após ter sido agredido pela polícia numa manifestação, no dia 14 de julho de 1969.
Três anos depois, 14 republicanos morreram no “Domingo Sangrento” de 30 de janeiro de 1972, alvejados pelas forças britânicas. Nessa mesma década, o IRA assassinou Louis Mountbatten, tio do duque de Edimburgo (marido de Isabel II) e figura de referência do atual rei, Carlos III. Em 1984, o mesmo grupo pôs um bomba no hotel que alojava a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.
O Acordo de Sexta-feira Santa permitiu que vários presos por atos destes, alguns a penas de prisão perpétua, fossem libertados. Alguns ex-membros do IRA entraram na política através do Sinn Fein, que passou de braço político da organização terrorista a ser um partido democrático. É o caso de Martin McGuiness, que chegou a ser vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte. O seu aperto de mão à rainha, que visitou o território em 2011, foi visto como símbolo da pacificação. Da época dos Troubles resultaram 1874 reclusos republicanos e 107 unionistas, indica a Universidade de Ulster.
Em 1986 o líder do Sinn Fein,Gerry Adams, reuniu-se em sigilo com John Hume, dirigente do Partido Social-Democrata e Trabalhista (SDLP), também republicano. Foi um primeiro passo para o IRA declarar um cessar-fogo e aceitar negociar um acordo de paz duradouro, após vários que foram interrompidos ao fim de pouco tempo.
Em 1997, a eleição dos primeiros-ministros Blair (Reino Unido) e Ahern (Irlanda) e o apoio de Clinton foram um catalisador importante. O DUP não apoiou o Acordo de Sexta-feira Santa, mas isso não impediu a sua assinatura a 10 de abril de 1998. O respaldo das demais forças políticas e da opinião pública era esmagador.
O documento reconhece que a maioria dos norte-irlandeses prefere permanecer no Reino Unido, mas ressalva uma minoria significativa a favor da reunificação da Irlanda e admite que esta venha a ser obtida através de referendo, se houver sinais de que tal posição se tornou maioritária.
Fronteira (dificilmente) aberta
Ao abrigo do acordo, o governo regional tem de incluir republicanos e unionistas e atribui cidadania irlandesa e britânica aos habitantes da província. Também estipula, embora de forma não-explícita, que a fronteira entre as Irlandas deva ser aberta — coisa que o Brexit veio complicar, pois a Irlanda do Norte tem de se manter de alguma forma sujeita a regulações comunitárias, para ter fronteira aberta com a Irlanda, e isso desagrada aos unionistas mais radicais e à ala eurocética do Partido Conservador de Sunak.
Outras disposições dizem respeito ao desarmamento e à segurança. A pacificação, embora não total e não se sabe se definitiva, é a maior conquista. Apesar de surtos de violência, não voltou a haver guerra aberta nem mortes ao ritmo do século XX.
Há, é claro, uma geração que nasceu depois do Acordo de Sexta-feira Santa, grande parte da qual não se revê na dualidade republicano/unionista. O partido Aliança, que nasceu para exprimir essa rejeição do maniqueísmo, tem crescido sustentadamente: nas últimas eleições, em 2022, subiu de 9,1% para 13,5% dos votos e de 9 para 17 assentos parlamentares.
Ao mesmo tempo, há quem tema que a concórdia possa parecer garantida aos mais novos, quando foi difícil conquistá-la. Tanto assim que Hume e o então líder dos unionistas, David Trimble, receberam em 1998 o prémio Nobel da Paz.
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