Projetos Expresso

“Gosto muito do sítio onde nasci, mas uma freguesia alegre é esta”

Açores: na última viagem pelo país, fomos à zona estatisticamente mais pobre, com cerca de 30% da população a viver com apoios do Estado. Mas em Rabo de Peixe, o que falta em rendimentos e escolaridade tem de sobra em sorrisos, amizade e festas

Ana Baptista e José Fernandes

Zélia Rego, 59 anos, trabalha num dos dois Centros de Apoio à Crian­ça da vila de Rabo de Peixe, nos Açores, naquele que fica na Cova da Moura, uma zona conhecida pelas casas construídas tão na beira da escarpa que “o quintal era o mar”. Mas que, por isso mesmo, teve de ser demolida, “porque estava a cair”. Já lá vão 35 anos a trabalhar ali, “sempre com crianças em idade escolar”, e foi lá parar porque “morava a 10 passos”, conta. Agora está num bairro construído para realojar os moradores da Cova da Moura, na Alameda 25 de Abril, e, apesar de já se terem passado mais de 10 anos, ainda tem saudades. “Fui tão feliz nesta rua que não tenho palavras. Em criança, saía da escola e brincava na rua, e em adulta era a mesma coisa, era uma rua cheia de alegria e de gente até às 11 da noite”, recorda.

Mas Zélia continua a ser feliz em Rabo de Peixe, porque se há característica que distingue esta vila é o sentido de comunidade. “Somos quase nove mil, mas não há pessoas anónimas”, nota Rogério Martins, 46 anos. “E estamos sempre em festa. A partir de abril, levo sete semanas que não como em casa”, conta Telma Pereira, 44 anos, esboçando um enorme sorriso.

E é na zona que se estende da igreja até ao mar — onde moram os pescadores — que este sentido de comunidade é mais visível. Aqui, as portas das casas estão, literalmente, sempre abertas, desvendando parte da mobília; as crianças brincam e jogam à bola na rua; os homens enchem os cafés a beber uma cerveja, e as mulheres juntam-se à porta das casas, sentadas no chão, a conversar e a lanchar, com um pacote de pipocas cor-de-rosa ou um bolo acabado de comprar na carrinha da padaria, que ali passa todos os dias a vender pão, tartes de nata ou as tradicionais queijadas de feijão.

Até chegam a andar na rua descalças, como se a rua fosse uma extensão da casa. “Este é o sítio mais feliz para viver. Estamos aqui todas juntas, a minha mãe, as minhas irmãs, as minhas sobrinhas e esta minha amiga. Há lá melhor que isto”, diz Josefina. Pois, para dona Olívia — 83 anos e a mais extrovertida e faladora utente do centro de dia — não há mesmo melhor que isto. “Nasci em São Vicente de Ferreira, gosto muito de viver aqui e gosto muito do sítio onde nasci, mas uma freguesia alegre é esta”, garante.

Contudo, não é só pela comunidade e pelas festas que Rabo de Peixe é um vila feliz. “Se for por aí abaixo, tenho tudo o que preciso: peixaria, mercearia, farmácia, cabeleireiro…”, explica Telma, que mora “três casas acima da junta de freguesia”, onde trabalha. E há três escolas básicas, uma escola profissional, centros de apoio a crianças e a idosos, um clube desportivo, um clube naval, um clube equestre… a lista continua, diz Jaime Vieira, 47 anos, presidente da junta.

Claro que há problemas. Estatisticamente, Rabo de Peixe é a zona mais pobre do país. Dados de 2019 do Governo Regional dos Açores mostram que há 30% de moradores a receberem o Rendimento Social de Inserção (RSI) e mais de 60% sem qualquer grau de escolaridade ou apenas com a 4ª classe. Mas, como diz Rúben Faria, presidente do Clube Naval, a maior pobreza de Rabo de Peixe “é a de espírito”, porque muita gente prefere continuar a viver de subsídios. Aliás, questiona Carlos Estrela, presidente da Casa do Povo: “Alguém lhes perguntou algum dia se querem mudar o seu modo de vida?” Cármen acrescenta: “Aqui as pes­soas são felizes mesmo com pouco.” E esta professora do 1º ciclo da Escola Dom Paulo José Tavares, que é rabo-peixense, convive com essa realidade todos os dias. “Aqui ainda há muita carência afetiva e problemas so­ciais, como o alcoolismo ou a droga, mas estas crianças são mais felizes do que as da escola privada em Ponta Delgada, onde trabalhei oito anos. Lá as crianças têm atividades extracurriculares e são acompanhadas pelos pais nos estudos, mas alguns alunos tinham de ir ao psicólogo porque os pais exigiam tanto deles que não os deixavam divertir nem brincar. Não os deixavam viver.”

IDEIAS PARA UM BAIRRO FELIZ

  • “Ser inclusivo, onde todos se sintam parte do mesmo; ser dinâmico e produtivo, para provocar interesse dos seus habitantes; e inovador, porque só colocando em prática atividades novas é possível manter a união e a motivação do grupo”, Sara Rodrigues, fundadora e sócia-gerente da Live Ethics, consultora na área das boas práticas empresariais.

O que é o Bairro Feliz

O projeto

O Bairro Feliz é uma iniciativa do Pingo Doce, a que o Expresso se associa, e que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida nos bairros. Para isso é lançado um desafio onde entidades locais ou grupos de vizinhos inscrevem projetos “que promovam um impacto positivo” nos seus bairros. As ideias são depois analisadas por um painel de jurados e levadas a votação popular nas lojas.

As ideias

Enquadram-se em seis áreas: ambiente; apoio animal; apoio social e cidadania; cultura, património, turismo e lazer; educação, saúde, bem-estar e desporto.

O prémio

Inscreveram-se associações, IPSS, fundações, cooperativas, entidades públicas ou privadas e grupos de vizinhos com cinco pessoas. Cada vencedor ganha até €1000 para desenvolver o projeto.

Os prazos

As candidaturas já foram avaliadas pelos jurados. Serão afixadas nas lojas dos bairros para que possam ser votadas pelos clientes até 22 de outubro.

Saiba mais

AQUI. E acompanhe no Expresso e na SIC.

Bairros mais felizes

O que pode tornar os nossos bairros melhores? Que ideias novas? Que projetos? O que precisamos para melhorar a nossa qualidade de vida? Pelo segundo ano consecutivo, o Expresso associa-se ao projeto Bairro Feliz — um desafio lançado pelo Pingo Doce a todos os bairros, a todos os vizinhos, para descobrirem e apostarem em novas ideias. Acompanhe a nossa viagem ao longo dos próximos meses, do continente à Madeira e aos Açores. Sempre nas páginas do Expresso.

Textos originalmente publicados no Expresso de 14 de outubro de 2022

O café de Videmonte é o ponto de encontro desta pequena aldeia com pouco mais de 400 pessoas. A água mantém-se como um dos ex-líbris, tal como o pão de centeio que Manuel ainda faz no forno a lenha de sua casa. Mas Videmonte não parou no tempo. O ano passado abriu um espaço de cowork da Aldeias de Montanha e já há quem lá passe o dia a trabalhar
José Fernandes

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas