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“Já joguei no Totoloto e se me sair não deixo esta casa”

Madeira: não lhe chamam bairro mas zona, porque existe uma área de habitação social que se chama bairro da Ajuda. Ali, o estigma está apenas nas palavras: são todos iguais e dali ninguém quer sair. Porque têm tudo, incluindo a vista para o mar

Ana Baptista e José Fernandes

José Escórcio tem 67 anos de vida e mais de 30 na Paragem, um restaurante na zona da Ajuda, na rua onde, no final de agosto, os moradores do bairro social e do bairro para a dita classe média se juntam todos, sem preconceitos, num arraial em honra da Nossa Senhora da Ajuda. O estigma dos bairros sociais ainda existe, diz José, mas aqui pouco ou nada se mostra. “As pessoas são todas iguais”, repara Trindade Silva, 65 anos, que fundou a Associação Recreativa e Cultural Arca d’Ajuda em 2011. É que, dos 14 a 15 bairros sociais que existem só no Funchal, na ilha da Madeira, José garante que “este é o melhor de todos, o mais ordeiro e o mais pequeno, com umas 100 a 120 famílias”. Ou como diria Nelson, outro morador, “é um bairro onde não se passa nada, e isso é bom”. Prova disso são os vários condomínios de luxo, com piscina e casas de um milhão, que se estão a construir agora.

Mas Zulmira Andrade, 76 anos, ex-mulher a dias e mãe de seis filhos, não trocaria nenhuma dessas casas pelo seu “cantinho” onde mora há 41 anos no bairro social da Ajuda. “Já joguei no Totoloto e se me sair não deixo esta casa”, garante, acrescentando que apesar dos prédios novos que foram surgindo ao longo dos anos mesmo em frente ao seu prédio, ainda consegue ver o mar. De facto, o bairro social, por ficar no cimo de uma colina, tem a vantagem de ter vista desafogada sobre o mar e de os prédios e moradias se aninharem entre bananeiras, mangueiras, buganvílias e inúmeras plantas de folha larga tão características da ilha.

Seja em que parte da Ajuda for, a maioria dos moradores não quer vender nem quer sair. “Aqui temos tudo próximo: há jardins, praia, piscinas naturais, a via rápida, o banco, uma clínica, um hospital privado...”, diz Trindade Silva. Há “passarinhos logo de manhã e ao fim da tarde”, diz Cristina Gomes, 46 anos, que mora no condomínio mesmo em frente ao jardim público. E há “transportes, supermercado, farmácia, o [centro comercial] Fórum Madeira”, acrescenta Carla, 52 anos, empregada de mesa no Café Teatro, no centro do Funchal. E o mar? “O mar também, mas a isso já estamos habituados”, repara, sorrindo. Não vivesse ela numa ilha.

Por isso é que Guida Nunes, 72 anos, passa o dia no bairro. “Moro em Câmara de Lobos [a freguesia a seguir à Ajuda], num apartamento, mas a minha irmã mora aqui e tenho mais amigos aqui do que lá. Lá não falo com ninguém”, conta enquanto tricota uma mantinha de bebé amarela e lamentando que ali esteja “tudo cheio”. Não calhou ficar com a casa de José que se mudou há pouco tempo para a baixa, ao pé do Fórum. “Tinha uma moradia e fiquei sozinho. As filhas foram embora, depois a mulher, e um T0 chega bem para mim, mas estou aqui todos os dias”, conta.

Arca d’Ajuda

É por isso também que Paulo Gonçalves, 46 anos, professor de educação física e natural de Cabeceiras de Basto, no continente, tenha escolhido a zona da Ajuda para morar quando se mudou para a Madeira, há 18 anos. “Quando vou à terra, perguntam-me quando volto. Eu aqui tenho tudo, para que é que me vou mudar. É um bairro feliz, um bairro bom e já tenho aqui amigos que são como família”, conta. Um deles é Trindade Silva, que conheceu quando moravam ambos no prédio onde fica a Arca d’Ajuda, à qual se juntou como coordenador desportivo. Apesar de ser uma associação recreativa e cultural e a responsável pela organização de eventos que celebram as tradições daquela zona, como o arraial de agosto, a Arca tem um ATL a funcionar nas férias escolares e aulas para crianças e adultos, como atletismo, esgrima, futebol, xadrez, capoeira, teatro, voleibol ou danças latinas. Os próximos passos, diz Trindade Silva, passam por ter mais modalidades, mas também por um projeto para idosos no bairro social. O espaço já tem — a antiga escola primária — “só falta a câmara tirar o telhado de amianto”, diz Trindade.

IDEIAS PARA UM BAIRRO FELIZ

“Incentivar e criar espaços e momentos orientados para o convívio e criar um sentimento de pertença relativamente aos espaços verdes e equipamentos sociais e lúdicos, de tal forma que surjam iniciativas espontâneas de cuidado, manutenção e preservação desses bens comuns”, diz Frederico Fezas Vital, consultor em sustentabilidade e inovação social.

O que é o Bairro Feliz

O projeto

O Bairro Feliz é uma iniciativa do Pingo Doce, a que o Expresso se associa, e que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida nos bairros. Para isso é lançado um desafio onde entidades locais ou grupos de vizinhos inscrevem projetos “que promovam um impacto positivo” nos seus bairros. As ideias são depois analisadas por um painel de jurados e levadas a votação popular nas lojas.

As ideias

Enquadram-se em seis áreas: ambiente; apoio animal; apoio social e cidadania; cultura, património, turismo e lazer; educação, saúde, bem-estar e desporto.

O prémio

Inscreveram-se associações, IPSS, fundações, cooperativas, entidades públicas ou privadas e grupos de vizinhos com cinco pessoas. Cada vencedor ganha até €1000 para desenvolver o projeto.

Os prazos

As candidaturas já foram avaliadas pelos jurados. Serão afixadas nas lojas dos bairros para que possam ser votadas pelos clientes até 22 de outubro.

Saiba mais

AQUI. E acompanhe no Expresso e na SIC.

Bairros mais felizes

O que pode tornar os nossos bairros melhores? Que ideias novas? Que projetos? O que precisamos para melhorar a nossa qualidade de vida? Pelo segundo ano consecutivo, o Expresso associa-se ao projeto Bairro Feliz — um desafio lançado pelo Pingo Doce a todos os bairros, a todos os vizinhos, para descobrirem e apostarem em novas ideias. Acompanhe a nossa viagem ao longo dos próximos meses, do continente à Madeira e aos Açores. Sempre nas páginas do Expresso.

Textos originalmente publicados no Expresso de 16 de setembro de 2022

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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