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Os mortos podem voltar

Os mortos podem voltar
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O segundo dia do pré-Fantasporto foi marcado pela exibição de “Drácula” de Francis Ford Copolla, talvez a melhor das releituras de sempre do mito dos vampiros

Há um bom par de anos, ao preparar uma reportagem na Roménia ainda no tempo da ditadura de Ceausescu, conversei com um professor da Sorbonne sobre as raízes do mito dos vampiros. E o que o meu interlocutor me explicou é que este tipo de lendas, relativas a seres que não pertenciam nem ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, tinha muito a ver com os Balcãs, fronteira histórica secular entre três impérios (bizantino, otomano e austríaco) e outras tantas religiões (católicos, cristãos ortodoxos e muçulmanos). Ou seja, onde as próprias fronteiras físicas e políticas eram difusas, de resto como a barreira entre a mentira e a verdade.

Drácula é um dos cognomes de Vlad Tepes, personagem lendária romena do século XV que, tanto se notabilizou por encabeçar a resistência ao avanço otomano, como pela sua extrema crueldade e sede de sangue, ao ponto de também ter ficado conhecido como “o empalador”.

Este ser terrífico que segundo a lenda saía de noite do caixão para beber o sangue dos vivos inspirou o escritor romântico Bram Stoker e, por sua vez, esse romance alimentou sucessivas transposições para o cinema, a primeira das quais foi “Nosferatu” de Friedrich Murnau em 1922, ainda no tempo do cinema mudo.

Um acto de misericórdia…

Quando 70 anos mais tarde Francis Ford Coppola filmar a sua própria versão de Drácula retomará, pelo menos, um dos pontos fortes da fita de Murnau. É a vítima feminina que vai pôr termo ao pesadelo. No filme mudo sacrifica-se no leito, mantendo o monstro abraçado a ela até que nasça o sol. Na versão de Coppola, praticando um ato de amor e de misericórdia – o espeto no coração – para quebrar de vez a maldição e deixar o conde repousar em paz.

O filme de Coppola do qual a maior parte das pessoas só conhece a versão comercial era mais extenso e ousado mas os produtores censuraram uma série de cenas, nomeadamente entre Drácula e Mina Harker, por terem demasiado sexo e demasiada nudez para os padrões da época. De resto, não faltam diálogos e situações em que o autor sugere o vulcão de sensualidade reprimida inerente ao moralismo da época vitoriana.

O filme, sendo de uma enorme beleza cenográfica, tem momentos arrepiantes. E, como me contou Mario Dorminski da direção do Fantasporto, mais tenebroso ainda se tornou quando, por volta de 1995, durante uma exibição da fita no efémero cinema Jardim, na Rua da Constituição, a cena em que o conde se levanta lentamente do caixão com um braço estendido calhou coincidir com uma noite de temporal portuense e foi acompanhada pelo estrondo de um sonoro trovão que gelou o sangue da plateia inteira.

O filme conta com um naipe de atores de fazer inveja a qualquer estúdio: Keanu Reeves como Jonathan Harker (ainda antes de Matrix o ter tornado famoso), Antonhy Hopkins interpretando o mais cínico e truculento dr. Van Helnsing de todos os tempos, Winona Ryder como Mina Harker e, no papel de Drácula, o excelente Gary Oldman. E ainda há Tom Waits, de que adiante vos tornarei a falar, no papel de Renfield, o paciente do manicómio escravizado pelo vampiro. Era assim como ter uma equipa de futebol que juntasse Messi, Cristiano Ronaldo, Lewandowski, Bale, Neymar e outros craques à escolha.

O filme, estreado um ano antes nos EUA, passou em antestreia surpresa no Fantasporto em 1993, regressando agora para a celebração dos 40 anos do festival.

… do fundo do coração

Copolla, capaz de inventar uma história de amor onde menos se espera, até num filme de vampiros, tinha dez anos antes filmado “Do fundo do coração/One from the Heart”. Um filme de uma grande beleza que – quer-me parecer – foi beber inspiração na iluminação, na cor, nos cenários, na história e até na música a essa obra-prima de Jacques Demy que tinham sido “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” (1963). Tirando os diálogos cantados, basta trocar a música de Tom Waits pela de Michel Legrand ou Nastassia Kinski por Catherine Deneuve e não ficamos a perder.

A noite de quinta-feira, última destes três dias de pré-Fantasporto, será marcada pela projeção de “Touro Enraivecido/Raging Bull” de Martin Scorsese.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RCardoso@expresso.impresa.pt

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