Cultura

Fantasporto, regresso às origens

Harrison Ford numa das cenas finais de “Blade Runner”
Harrison Ford numa das cenas finais de “Blade Runner”
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Começou, terça-feira 25, a 40.ª edição do Festival Internacional de Cinema do Porto com a projecção de um clássico aqui exibido em 1983, “Blade Runner” de Ridley Scott

Estávamos em 1982, altura em que ainda não se sonhava com efeitos especiais gerados em computador. A alucinante sequência de abertura de “Perigo Iminente/Blade Runner”, uma vista aérea da Los Angeles do futuro, cheia de arranha-céus gigantescos, profusamente iluminados, vomitando chamas e nuvens de fumo, foi criada pelo especialista em fotografia Douglas Trunbull a partir de miniaturas montadas numa mesa, um pouco como as naves espaciais dos primeiros episódios de “Guerra das Estrelas”.

O resultado, abrilhantado pela música de Vangelis, fica para a história do cinema e trouxe para o pedestal o realizador britânico Ridley Scott, um autor obcecado desde o início da sua carreira pela construção dos cenários e que já se distinguira em 1979 com “O Oitavo Passageiro/Alien”. Acrescentem-se interpretações notáveis de Harrison Ford e Rutger Hauer e está esboçada a apresentação de uma fita de culto.

É verdade que a tecnologia nos oferece mil e uma maneiras de ver cinema. Até haverá quem se divirta a ver “Lawrence da Arábia” no telemóvel mas, como disse Beatriz Pacheco Pereira, da direcção do Fantasporto, na abertura dos três dias de pré-festival, terça-feira 25 de fevereiro, “este filme merece ser visto no ambiente para o qual foi feito, uma sala com ecrã grande”.

A base do argumento, um conto do escritor norte-americano de ficção científica Philip K.Dick, era promissora mas isso não basta porque não seria a primeira vez que um texto brilhante era assassinado na passagem para o ecrã. Não foi o caso e assim surgiu esta Los Angeles do futuro, sobrepovoada por “muitas e desvairadas gentes”, onde chove constantemente e os animais selvagens desapareceram, substituídos por seres artificiais recriados em laboratório.

A ilusão do homem perfeito

Nessa megalópole distópica de 2019 dar-se-á o confronto entre a humanidade e pessoas artificiais criadas pela engenharia genética para serem ainda mais humanas que os seus criadores mas condenadas a ter vidas de apenas quatro anos e cujas recordações de infância lhes haviam sido implantadas artificialmente.

Mas os assim chamados “replicantes” caçados implacavelmente por uma unidade especial da polícia (cujos membros são conhecidos como “blade runners”, ou seja os que fazem correr a lâmina da espada) serão tão diferentes como isso das outras pessoas? A pergunta, que remete para os mitos primordiais da criação do Homem, faz tanto mais sentido quando atualmente alguns dos “influenciadores” do Youtube (esses seres venais que extorquem dinheiro às marcas de roupa, cosméticos, etc, a troco de posts favoráveis) já não são pessoas reais mas avatares digitais. Isto acontece nos países orientais mas mais cedo ou mais tarde essa moda chegará cá…

Fica ainda a ironia que persegue todas as antecipações futurísticas, incluindo “Blade Runner”. Estamos em 2020 e, tecnologicamente, o mundo ficou aquém do antevisto pelo cinema. Não nos instalámos na Lua e muito menos fomos aos confins do espaço à procura dos segredos da criação da vida inteligente na Terra ao contrário do imaginado em “2001 Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrik, 1968). Se é verdade que ainda não colonizámos a Lua, também ainda não demos cabo do nosso satélite com um depósito de lixo nuclear como na série televisiva “Espaço 1969” exibida entre nós a partir de 1977. Há milhares de espécie ameaçadas mas ainda não demos cabo delas de vez e a Los Angeles atual terá os seus defeitos mas não é tão assustadora como a imaginada por Ridley Scott em 1982.

Para a história do cinema “Blade Runner” deixa também uma das mortes mais memoráveis no ecrã, a do chefe dos replicantes rebeldes, Roy Batty, interpretado por Rutger Hauer, antecedida por um monólogo shakespeariano que não fica a dever ao de Hamlet.

Com a fasquia colocada a esta altura, o filme que se segue, no segundo dia do pré-Fantas (quarta-feira 26 de fevereiro), será a versão de Drácula filmada por Coppola. Segue-se quinta-feira “Touro Enraivecido/Raging Bull” de Martin Scorsese e sexta-feira 28 será a abertura oficial da 4.ª edição do Fantasporto com a projeção às 21h do filme “Adverse” de Brian Metcalf.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RCardoso@expresso.impresa.pt

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