Escolheu dizer-nos dois poemas, um deles é uma arte poética. Gosta de artes poéticas?
Não é uma questão de gostar, é uma questão de falar da nossa maneira de escrever ou de meter o mundo dentro do poema, ou de como nós nos sentimos no mundo. Portanto, uma arte poética é um bocado a descrição da nossa maneira de encarar o poema e aquilo que o poema transporta.
E também, certamente, uma descrição de uma parte de vocês poetas.
Sim, sim. O poema transporta-nos também, não é? (risos)
Usou a expressão “meter o mundo dentro do poema”. Consegue-se fazer isso com a poesia?
Pelo menos aquele mundo que nos é percetível. Porque cada ser humano, suponho que tem uma visão específica do mundo. Embora haja uma grande tendência para o rebanho, é por isso que aparecem as modas e as ideias de época e então vai tudo atrás daquela coisa que se usa pensar ou que se usa dizer, mas realmente se todos os seres humanos usassem a sua capacidade de análise e se informassem devidamente, se calhar nem todos pensavam a mesma coisa de tudo. Porque, pronto, a nossa circunstância é diversa.
Crê que há muitos rebanhos hoje?
Ai, há sempre! Basta olhar para a televisão. (risos) Para a televisão, até para, sei lá, a arte. A arte também tem os criadores e depois tem os epígonos, que são aqueles que ficam de tal maneira apanhados por uma conceção artística que depois imitam, se calhar inconscientemente. Sabe-se que quando apareceu o Pessoa apareceu logo imensa gente a tentar imitá-lo. O Pessoa ou o Herberto Helder, eu até costumo chamar-lhe a Helderite. Quer dizer, aquela maneira de escrever um bocado desaustinadamente e assim com umas metáforas algo descabeladas, que não é nada o caso do Herberto Helder. O Herberto Helder tem uma grande sabedoria do poema, mas as pessoas vão assim para esses fogos de artifício e não apanham a ideia central, aquilo que vai lá no fundo, apanham o formalismo. E depois aparecem os que escrevem à maneira do Herberto, os que escrevem à maneira do Pessoa, sei lá, essas grandes galáxias. Astros que aparecem e que depois têm os tais epígonos.
Esses astros de que fala estão aqui perto de si no seu local de trabalho. Esses e outros. Tem o Herberto, tem o Pessoa, tem o Eugénio...
O Sena, a Sophia. Também gosto muito do Camilo Pessanha. Embora tenha escrito pouco, é um poeta de uma grande musicalidade. Costuma-se dizer que é o nosso único simbolista, não é? Mas ele não é bem simbolista, não é simbolista tout court, é um simbolista diferente. Eu gosto dos poemas dele. Estou a lembrar-me agora de um verso: “floriram por engano as rosas bravas”. É um verso muito conhecido. É. E precisamente estou com um projeto, que até mandei uns poemas para a “Telhados de Vidro” do Manuel de Freitas, que é uma revista muito interessante, e portanto fiz seis poemas todos baseados em poemas que me interessaram profundamente e que me tocaram profundamente. Um da Sophia, outro do Eugénio, outro da Luiza Neto Jorge, dela é “O Poema Ensina a Cair”, e também tenho um poema sobre as rosas bravas do Pessanha. A poesia do Pessanha apanha-nos emocionalmente. Como é? “Só, incessante, um som de flauta chora,/ Viúva, grácil, na escuridão tranquila.” Esse poema ou aquele “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,/ Onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?”. Além da beleza da sua poesia, há o desinteresse que ele tinha por ser conhecido, por publicar. Lá publicou numas revistinhas mas pronto. Foi o filho da editora dele e única, a Ana de Castro Osório, uma mulher do tempo da primeira república, que ajudou. Ele veio cá a Portugal e o filho da Ana de Castro Osório foi recolher os poemas oralmente na cama de doença do Camilo Pessanha. Foi graças ao esforço da Ana Castro Osório e do filho que hoje temos a “Clepsidra” do Camilo Pessanha. Foi ele que colheu os poemas na voz do Pessanha e os escreveu. Eu aprecio bastante esse desinteresse dos poetas pela sua auto-publicidade, pela sua auto-promoção. Uma pessoa publica é para ser lida mas não precisa de estar naquela preocupação "ah, eu tenho de ser melhor do que aquele, tenho de ter muitos artigos de crítica e ir para os festivais, todos e mais algum." Não aprecio muito essa atitude.
Encontra essa atitude hoje?
Imenso. Os poetas agora têm de ser entertainers, não é? Têm de ir para os festivais de poesia, têm de ir às escolinhas. E ao fim e ao cabo depois não leem os livros deles. O poeta vai só ali, digamos, mostrar-se, dizer “eu sou um poeta”, quando realmente o texto é que interessa, não é propriamente a figura civil do poeta. Aliás, por alguma razão se sabe que existe um sujeito lírico. Ora, o meu sujeito lírico não é o meu sujeito civil. A Inês Lourenço não é a Maria Inês Ribeiro Lourenço da Fonseca que está no meu cartão do cidadão, são dois sujeitos diferentes. Por isso o nosso grande Pessoa dizia “o poeta é um fingidor”. Essa sei de cor. (diz poema) E nesta parte “E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, /mas só a que eles não têm”. Portanto o poeta teve duas dores, que foi a dor de escrever e a dor de se ler. Porque o poeta é o seu primeiro leitor. E o poeta muitas vezes rasga, é preciso rasgar muito. Ele diz “ai não, isto não presta. isto já não presta.” E portanto, essas tais duas dores: a dor de escrever e a dor de ler e verificar que aquilo não satisfaz.
Continua a acontecer-lhe?
Ai! Continua a acontecer. E eu até aconselho, por exemplo a pessoas que também escrevem e estão a começar, a lerem os poemas a horas diferentes do dia. Porque geralmente quando nós lemos os nossos poemas à noite, e se então está uma música ou qualquer coisa, aquilo parece-nos excelente! A hora tardia prepara-nos para sermos uns génios, “isto está muito bem, está muito bem”. Portanto, deve-se ler o poema à noite e deve-se ler em pleno dia e de manhã, porque quando se vai ler ao outro dia, às vezes, “ah, isto não presta para nada e ontem parecia-me tão bom.” (risos)
Ainda em relação aos autores que tem aqui, está rodeada de poesia e de ensaio, e há pouco fez questão de referir como se fosse um sublinhado o Jorge de Sena. Porquê?
Gosto bastante da poesia dele. Ele é muito moderno e muito atual continuando a ser clássico, é extraordinário. Estou a lembrar-me da “Carta aos Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya”. Ele era bastante polémico e dizia as coisas de uma maneira crua, se fosse possível. E há muita gente que acha que isso não é poesia. Ainda existe um bocado o conceito de que poesia é assim uma coisa bonita, para dizer coisas bonitas. Assim mais ou menos umas lentes cor-de-rosa ou lilases ou não sei quê. E isso para mim é lamentável porque na poesia pode-se dizer tudo o que se quiser. Tudo pode ser objeto de poesia. E não tem de ser bonita. Não tem de falar das coisas ditas poéticas.
Quais são essas coisas ditas poéticas?
O sonho, o mar, o amor. Aquelas ideias “o amor tudo vence.” Digamos, os absolutos: a verdade, a beleza, a justiça. Os absolutos no sentido do bem. Tudo aquilo que ao fim e ao cabo se conglomera numa ideia de Deus. Um Deus monoteísta.
E a Inês considera que hoje ainda há quem pense que a poesia deve dedicar-se preferencialmente a esses temas?
Eu acho que sim. Por exemplo, no facebook, há muita gente que publica poemas próprios ou de outros autores. E se aparece um poema todo harmonioso, todo cheio de felicidade, “não sei quê estou a ouvir uma fonte e estou a pensar em ti”, ou “que belo pôr do sol”, esses lugares comuns têm logo 100 likes. Se aparecer um poema que obrigue mais a pensar ou que fale na morte, como aquele verso que que falámos há pouco da Sophia “não creias na demora em que te medes”, as pessoas não ligam. As pessoas dizem “que bonito! ai é tão bonito!”. Eu acho que o adjetivo bonito para poesia é escasso. Poesia é algo entre a filosofia e a ciência. A poesia está aí. Aliás, a palavra vate que vem do latim quer dizer aquele que vê antes dos outros, que até lia nas entranhas dos pássaros e tal. O vate. Era uma espécie de adivinho, vá. O poeta muitas vezes tem razão antes do tempo. A poesia é um novo olhar. Precisamente se me perguntar o que acho que um verdadeiro poeta deve fazer, eu digo-lhe: um poeta deve olhar de outra maneira. Olhar para esta mesa e dizer “isto não é uma mesa, isto é um tampo que está sustido por...”
Quatro pés.
Quatro pés. Por exemplo, pés é uma metáfora, é uma migração de sentido. (risos) São as tais metáforas que entram na linguagem quotidiana. Nem nos apercebemos que estamos a migrar de um campo semântico para outro campo de sentido.
Quando é que se apercebeu que era poeta?
Muito pequenita. Eu tinha uma irmã mais velha que eu 7 anos, que infelizmente já faleceu, e nesses tempos era muito favorecido decorar poesia nas aulas de português, mas desde a instrução primária. Decoravam-se aqueles poemas, a Balada da Neve do Augusto Gil, poemas do Guerra Junqueiro, um que se chamava A Lágrima. Nesses tempos dizer coisas de cor não era considerado anti-pedagógico, achava-se que a criança tinha memória e que tinha que praticar a memória. E portanto comecei a imitar. Na escola primária fiz uns versozinhos e depois quando fui para o secundário tive a sorte de ter professoras de português muito boas que liam nas aulas, gostavam de ler poesia. Uma delas, chamada Virgínia Mota que já faleceu há muitos anos e que também era tradutora - foi ela que traduziu o "Debaixo do Vulcão" do Malcom Lowry - ela lia textos nas aulas. Às vezes era uma aula só de leitura de um livro, e nós adorávamos essas aulas. E depois eu fixava os sonetos do Antero, os sonetos do Bocage, mesmo sem querer, e comecei a escrever. E depois o meu pai ofereceu-me uma máquina, uma Underwood, que era uma máquina de datilografia, e eu comecei a passar os poemazinhos na máquina, e depois a publicar nos jornaizinhos da escola e nos jornaizinhos académicos, e a minha professora de português gostava muito do que eu escrevia. Comecei assim. Isto é uma coisa que me encanta desde criança, porque o poema tem ritmo. Pode não rimar mas a poesia tem de ter ritmo.
E além de ritmo, um poema tem de ter o quê?
Não “tem”. Porque isto de poesia não tem de ter nada. Poesia liberdade livre, já dizia o Rimbaud.
Então na sua opinião, a poesia além de ritmo deve ter o quê?
O “deve” também me custa a usar. Para eu gostar do poema há muitas maneiras. Pode ser um belo poema místico, por exemplo. Se a pessoa faz passar bem a ideia do misticismo, pode ser. Sei lá, há imensas... Agora, o que não pode ser é uma literatice. Há muitas pessoas que têm uma grande competência versificatória, eu conheço alguns, conheço os seus textos e até se lê aquilo, mas depois no fim uma pessoa diz assim: “mas qual é a imagem forte com que eu fico disto? De que é que me vou lembrar neste poema?” Um poema para mim, para ser bom, tenho de me lembrar de alguma coisa que ele lá diz. Porque se me esqueço, para mim não é um poema conseguido.
Ou seja, o poema não deve deixar a pessoa igual ao que estava antes de o ler, é isso?
É, tem de surpreender. A poesia tem de surpreender. A poesia tem de, como hei de dizer, sabotar o lugar comum.
Foi isso que procurou nos poetas que convidou para participarem neste seu grande projeto que são as revistas Hífen?
Sim. Mas também tinha outras premissas, por exemplo, várias gerações. Os poetas tinham liberdade completa. Realmente eu procurava aqueles nomes como o Luís Miguel Nava, o Nuno Júdice, o Gastão Cruz, a Fiama, a Sophia, que me mandou três poemas. Eram os poetas da ocasião e outros que estavam a surgir. O João Luís Barreto Guimarães, o Carlos Poças Falcão, aqueles que tinham publicado um livro. Porque eu ia à Leitura, que era uma grande livraria do Porto, ia à bancada de poesia e via o que lá estava.
Andava à pesca.
Andava à pesca. E trazia os livros comigo, os livros dos estreantes e dizia: “ah este até tem densidade, tem um universo interessante.” E procurava saber a direção, que ainda não havia mail nessa altura, e contactava-o, pedia-lhe para me mandar inéditos.
Acha que teria cabimento voltar a fazer a revista Hífen hoje?
Acho que hoje deveria ter pelo menos uma secção de crítica, ou de livros saídos. Qualquer coisa que informasse mais sobre a galáxia poética.
E essa galáxia poética de hoje, a Inês acompanha-a, presumo. O que pensa dela?
Eu acho que neste momento, como há a globalização, temos conhecimento de poetas muito bons de outros idiomas. Há um poeta aqui do Porto, o Jorge Sousa Braga, que vai traduzindo poetas americanas e publicando no facebook, mulheres, coisas fantásticas.
Mas perguntava-lhe pela galáxia portuguesa.
Se calhar ainda estamos em plena efervescência, ainda não dá para ter a suficiente distância para permitir um juízo. Mas há gente que… claro que agora pôr-me a dizer nomes…
É desagradável para quem não é nomeado.
Ora, exatamente. Mas tenho lido coisas interessantes, acho que sim. Há um ou outro caso que realmente acho um bocado, como hei de dizer?, o Barthes falava numa palavra que era papagueante. Não era papagueante que ele dizia mas quer dizer, as pessoas pegam numa cena do quotidiano ou num assunto do quotidiano e é um bocadinho redutor, acho eu. Preciso de mais qualquer coisa. (risos) Quer dizer, embora se sirva das palavras comuns, que acho muito bem, e de assuntos do quotidiano, a poesia tem de meter sempre lá uma volta que dê para alguma densidade existencial. Tem de ter uma porta que nos dê para dizer "isto vai ali para o fundo", não é só dizer estas coisinhas engraçadas.
Quando diz “vai ali para o fundo” quer dizer ter densidade.
Ter densidade. Tenho lido alguma poesia que até vai a muitos festivais precisamente, e até é editada em editoras que antigamente eram upa upa e agora está a editar gente que eu sinceramente... E nota-se isso, uma pouca densidade, fica-se só por umas impressões. Como dizia há pouco, eu não me vou lembrar daqueles poemas. Não me tocam no essencial, naquilo que é comum a todos os humanos, não me tocam. É um fait divers daquela pessoa que escreveu.