1980: Recordar um dia trágico para democracia no restaurante de luxo de Lisboa que sobreviveu à monarquia
Restaurante Tavares, em Lisboa
Estúdio Nuno Correia
Fundado em 1784, sobreviveu à Monarquia e à República, a revoluções e guerras mundiais. As paredes faustosas, revestidas de espelhos e talha dourada, assistiram a refeições de gala e conheceram a nata da aristocracia, política, das letras e artes. Esta é a história do Tavares, um ícone da restauração nacional, onde Francisco Sá Carneiro fez a última refeição antes da trágica morte em Camarate, mas também a primeira cozinha que fez brilhar José Avillez. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.
A 4 de dezembro de 1980, o país entra em estado de choque ao início da noite. O Cessna que transporta o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro de Lisboa para o Porto despenha-se em Camarate, pouco depois de levantar voo. Na queda do avião morrem o chefe de governo e a companheira, Snu Abecassis, o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, e a mulher, Maria Manuela Vaz Pires, o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, e os pilotos. O destino teria sido um comício do general Soares Carneiro, candidato à presidência da República apoiado pela Aliança Democrática (AD), coligação no poder liderada por Sá Carneiro e formada pelo PPD/PSD, CDS e PPM. Sá Carneiro iniciara esse dia fatídico a trabalhar em São Bento. Antes da última conferência de imprensa no Hotel Altis, ao lado de Freitas do Amaral e Soares Carneiro, almoça na sala privada do primeiro piso do Restaurante Tavares, em Lisboa. Acompanham-no Adelino Amaro da Costa, Soares Carneiro, Gonçalo Ribeiro Telles, António Capucho, Cunha Rego e Luís Beiroco (pelo menos). Como explica Maria João Avillez no livro “Francisco Sá Carneiro: Solidão e poder”, Sá Carneiro “aproveita o almoço para trabalhar”, eDiogo Freitas do Amaral “chegará mais tarde”.
Veja a fotogaleria que recorda a história do bicentenário restaurante Tavares, atualmente encerrado:
Restaurante Tavares, em Lisboa
Estúdio Nuno Correia
Restaurante Tavares, em Lisboa
Estúdio Nuno Correia
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Quem os serviu foi Fernando Lopes, então proprietário do Tavares. Almoçaram a perdiz que Sá Carneiro adorava. Fernando costumava retirava-lhe a pele e servia-a desossada, muitas vezes preparando-a à frente do cliente. Nesse dia, foi feita na cozinha. Terminado o repasto, Sá Carneiro atravessa o corredor em direção a Fernando. “Dá-me um abraço, hoje as perdizes estavam como nunca!”, regozija. Na poética caixa de madeira que Manuel Lagos lhe oferecera, a “Ilíada de Homero”, sobrava um charuto. “Não quer levar o charuto?”, questiona Fernando. “Não. Quando ganhámos a AD, tu convidaste-nos para almoçar contigo lá em baixo, eu, o Ribeiro Telles e o Freitas do Amaral. E na segunda-feira [após as eleições] vamos repetir. O general vai ser presidente da República, vamos ganhar, e eu vou fumar o charuto”, confia o governante. Fernando responde que vai pôr champanhe no gelo, a postos para o convívio. “Não o fumou, eu fiquei com o charuto e ele deteriorou-se. Restam os resíduos e a caixa, que era uma bonita obra literária. Deu-me um grande abraço e foi-se embora. Era uma pessoa muito simpática, afável, meiga e encantadora de se falar, era maravilhoso. Andei um mês a chorar com a morte do Sá Carneiro. Não foi a perda de um cliente, mas de um amigo”, confessa Fernando. A relação entre os dois era antiga. Assistira aos almoços de Sá Carneiro com Francisco Pinto Balsemão.
Fachada do Tavares em foto de arquivo cedida pela Plateform
Depois do 25 de Abril, choviam insultos a quem entrasse no Tavares, para muitos associado ao antigo regime: “Eram todos fascistas, capitalistas e ladrões”, lamenta Fernando Lopes. Teve de fechar a casa - só servia um buffet no piso superior, que Mário Soares encheu “todos os dias” -, até ao momento em que Sá Carneiro quis ir almoçar com o embaixador de França e entrar pela porta principal. E entrou. “Fiquei fascinado com a vaidade de alguém me reabrir o Tavares”, conta. Noutra ocasião, sabendo do apreço de Sá Carneiro por salmão do Minho, confirma junto de Snu Abecassis o preparo preferido, agarra na peixeira onde cozera o salmão, ainda com água quente, e foi servi-lo em sua casa. Fernando também não se esqueceu de outros clientes habituais, presos após a Revolução, como Manuel Ricardo Espírito Santo, Jorge de Brito, Vera Lagoa, Agostinho Silva e o irmão. Levou-lhes, à cárcere, petiscos e vinhos a gosto.
Francisco Sá Carneiro almoçou no Tavares no dia da trágica morte do então primeiro-ministro
Arquivo A Capital
História secular
Dois séculos antes, em 1784, Nicolau Massa fixou o “seu” café de bilhar na Rua Larga de São Roque, atual Rua da Misericórdia, no Bairro Alto. Em 1823 estava na posse dos irmãos Manuel e António Tavares, cujo apelido batiza para sempre o espaço. “Trajavam sempre de jaqueta e sapatos de ourelo e dirigiam-se aos fregueses em verso”, conta Mário Costa em “O Chiado Pitoresco e Elegante”, apoiando-se no cronista Tinop. Associado aos liberais no reinado de D. Miguel, e de ambientetaciturno, “com uma espécie de quiosque junto à coluna central, iluminada a azeite de peixe”, vendia bebidas, café, “neve no verão, carapinhas depois das 11 horas da manhã e sorvetes de tarde”. A grande viragem do espaço inicia-se em 1861, na gerência de Vicente Caldeira, e depois continuada pelo filho, Manuel, até à morte em 1923.
Fachada do Tavares no início do século XIX, em foto cedida pelos atuais proprietários, o grupo de restauração Plateform
Os Caldeiras inauguraram “a era do requinte decorativo e gastronómico” do Tavarese elevaram-no aos “brazões da fama”, lê-se no dossier sobre este restaurante publicado pelo Semanário em 1984, aquando dos 200 anos de vida do Tavares. Completamente renovado, o agora Café Restaurante Tavares combina os estilos da Belle Époque e Art Nouveau. Ostenta atalha dourada, grandes espelhos e lustres, cristais e veludos, estatuária e porcelanas elegantes, talheres Christofle, vitrais no alpendre e relógios intemporais. Lisboa conhecia um luxuoso Olimpo de bem estar e bem comer, o “Tavares Rico” - ali perto, Vicente Caldeira abriu o “Tavares Pobre”, mais acessível ao bolso. No primeiro piso do Tavares Rico abrem duas pequenas salas e os famosos Gabinetes reservados, refúgios de “picantíssimos pormenores”, afiançava um texto de João da Silva Carvalho reproduzido no Semanário. Os Gabinetes terminariam no século XX, numa época em que já “havia cenas à porta do Tavares, de mulheres que tinham visto os maridos entrar”. Aflitos, alguns “saíam pela porta da cozinha”. Nessa zona do restaurante fez-se uma sala maior, para banquetes, que se podia transformar em três. Atrás, surge uma sala mais singela, batizada por Fernando Lopes como “a sala do Dr. Sá Carneiro”.
O presidente da Câmara de Lisboa, Krus Abecassis entrega a Fernando Lopes a Medalha de Prata de Mérito Profissional
Sob a aura do romantismo, desfila a boémia entre o Chiado e o Bairro Alto. Fidalgos, pessoal dos teatros (São Carlos, Trindade, Ginásio..), das lojas, jornais e livrarias, dos hotéis, restaurantes e cafés como a Brasileira, a par de artistas, escritores e “diplomados” em conversa. E é óbvio que o Tavares navega com a maré... Amândio Cândido revelou à revista ABC que foi lá, “entre uma colherada de doce e uma gargalhada de champanhe”, que se fundou o grupo de intelectuais Vencidos da Vida, congregando, entre outros, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e Eça de Queiroz. Na obra “Os Maias”, de Eça de Queiroz, a personagem Ega saboreia no Tavares um “excelente” bife que vem “fumegante, chiando na frigideira de barro”. Também a geração de Orpheu, alimentada por Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro ou Almada Negreiros, ali se reuniria, pelos vistos... “ao pequeno almoço!”. Outros nomes apareciam, como Manuel Teixeira Gomes, Egas Moniz e Rafael Bordallo Pinheiro. A 4 de dezembro de 1917, “véspera da revolução que preparou e comandou, foi no Tavares Rico que almoçou o malogrado Sidónio Pais”, acrescenta “O Chiado Pitoresco e Elegante”.
Foto antiga da sala principal do Tavares cedida por Fernando Lopes
Novos sabores No final do século XIX já se acenava ao apetite com “perus truffados” e “sopa au fromage e choucrôute” e, num anúncio de 1908, com a “cozinha à franceza”, almoços a 600 réise jantares a 800, e serviço de cozinha até às 02h00. Em 1956, após alguns encerramentos e um leilão, o Tavares reabre com uma ceia evocativa. Servem-se “Caldo à Portuguesa”, “Robalo à maneira dos irmãos Tavares”, “Franguinhos à Manuel Caldeira”, “Um doce de Lisboa dedicado aos Vencidos da Vida” regado a espumante Diamante Azul, “Frutas da estação”, “Café de S. Tomé” e palestras.
Desde 1949 que Fernando Lopes trabalhava no Tavares. Natural de São Julião, em Valença, cumpriu aos 12 anos o anseio de vir para Lisboa, num dia de chuva torrencial. Viaja clandestino numa camioneta com pipas de vinho e galinhas. Na capital, labutou arduamente em carvoarias, tabernas e restaurantes, como o Horcher. Estreou-se no Tavares como empregado de mesa e ficou “assustado” quando lá entrou. Ainda chegou a trabalhar no Tamariz e a servir Juan Carlos, Conde de Barcelona, durante o exílio na Villa Giralda. Reentra no Tavares com a gerência de 1956, como chefe de vinhos. Este restaurante “tinha a melhor garrafeira em Portugal” e Fernando aprofunda a formação em enologia. O ministro da Educação de Salazar apresenta-o a um enólogo ligado à Junta Nacional do Vinho para fazer dele o “melhor escanção português”. O formando, que seria distinguido com o Colar Gastronómico Internacional e a Medalha de Prata de Mérito Profissional pela Câmara de Lisboa – o restaurante recebeu a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa -, entrou entretanto para a sociedade e foi comprando as quotas dos outros sócios até ser proprietário. Consegue, então, arranjar apoios para remodelar o espaço, que recebe cada vez mais notáveis. Trabalhou sempre na sala e nunca se anunciava como patrão.
Fernando Lopes decanta um vinho a 20 de março de 1972, no economato do primeiro piso do restaurante
Neste tempo valorizavam-se o “produto português fresco” e a comida feita ao momento. As principais bandeiras eram a “Santola recheada à Tavares” (870 escudos), a “Lagosta suada”, os tornedós, peixes e salmões inteiros, com molhos à parte. Numa das ementas constavam, como sugestões do dia, “Medalhões de lombo com míscaros” (680 escudos) e “Robalo Court Bouillon com molho holandês”. Nas especialidades portuguesas, a “Canja de pato à portuguesa” e “Timbal de Eiroz à Costa Nova”. “Figados de ganso à Tavares”, “Caviar Malossol”, “Consommé de tartaruga com Madeira” e “Filetes de linguado com champanhe” eram outras iguarias que chegavam à mesa.
Fernando Lopes com Horácio Pereira da Silva, o último chef durante a sua gestão, no dia da entrega da Medalha de Prata de Mérito Profissional
Marcello Caetano e Soares, Amália e Bellucci O último presidente no Estado Novo, Américo Thomaz, almoçava todas as semanas na mesa 14 com o conselheiro Albino dos Reis e Mário Figueiredo. O diretor da DGS/PIDE, Silva Pais, ficava sempre na mesa 20, a “ver o que se passava”, e era “um grande amigo”, tal como o último presidente do Conselho, Marcello Caetano, a quem o escanção do Tavares ofereceu garrafas de whisky de malte. Banqueiros, políticos e empresários, como António Champalimaud, eram habitués. Fernando era um “confidente” e fazia circular, discretamente, papelinhos com recados, de e para namoradas noutras mesas, granjeando de todos a confiança e “muito dinheiro”. Àfilha regalavam vestidos. Em 1966, dá-se no Tavares o primeiro encontro do grupo político brasileiro Frente Ampla, juntando à mesa dois antigos adversários, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. Distraído, Otelo “esqueceu-se da pistola no sofá”, após um almoço.
O último presidente no Estado Novo, Américo Thomaz, almoçava todas as semanas na mesa 14. Marcello Caetano também era cliente
Arquivo A Capital
“Quando veio o Dr. Mário Soares, mais o Dr. Álvaro Cunhal, que foi pela primeira vez ao Tavares, aquilo foi um sururu à porta que o senhor não faz ideia!”, recorda Fernando. Havendo lagosta para grelhar, Soares satisfazia-se. Ele notava que Fernando tinha um relacionamento diferentecom Sá Carneiro e talvez por isso Fernando sentisse uma certa “antipatia” do socialista. Um dia, Soares vem pela Rua Da Misericórdia com a comitiva, na primeira campanha presidencial, e vê Fernando à porta. Aproxima-se e entrega-lhe um panfleto: “Eu sei que você não é socialista, mas tome leia lá!”. Consumada a vitória, convida presidentes estrangeiros para uma refeição no Tavares, com “Santola recheada” e “Tornedó Grand-Duc” na ementa. Fernando avisa o empregado que vai sair um bife sinalizado para Soares, muito passadocomo ele gostava. “Não te enganes...”, avisa, mas em vão, já que o bife especial calhou em sorte, ou azar, ao presidente de Moçambique. Soares comeu em silêncio. À saída, despede-se e dá uma “alfinetada” a Fernando: “O senhor faz sempre aquilo que quer, não aquilo que deve fazer”. Andava Ramalho Eanes em campanha para a presidência da República, “em cima de um carro com os braços no ar, porque toda a gente dizia que o iam matar”, quando Fernando Lopes e o proprietário da Severa vão para Monsanto distribuir pregos e cervejas aos soldados. Dias após a eleição, Eanes almoça no Tavares com um famoso pintor português e pede “as perdizes que comia o Sá Carneiro”. No dia em que fez 46 anos, Cavaco Silva teve no Tavares um jantar “cordial” com Lucas Pires, na altura presidente do CDS. Marcelo Rebelo de Sousa veio em comitiva antes da presidência e comeram em privado.
Capa de um menu antigo do restaurante Tavares
Do mundo do espetáculo frequentaram, por exemplo, Vasco Santana, Hermínia Silva, João Villaret, Ribeirinho e Amália Rodrigues. Certa noite, “uns americanos” iam visitar Amália e Fernando confeciona e serve o jantar em casa da fadista. Ainda houve tempo para os americanos se zangarem “à estalada”... Fernando também assistia os convivas das festas em casa de Amália, amiúde até às 5h00 ou 6h00. Era ver sair os pastéis e pataniscas de bacalhau, as iscas na frigideira, garrafas de champanhe e umas quantas “coisas malucas”. Ganhava “mais dinheiro numa noite dessas, em gorjetas, do que num dia no Tavares”. Num dos repastos feitos no Tavares em 1994, quando Lisboa foi Capital Europeia da Cultura, a diva do fado estava “muito mal”. Esperavam-na um jantar e 80 convidados ansiosos que, mal a veem, soltam os habituais “Amália, você está ótima!”. “Estou linda? Eu quero é que vocês todos se lixem, eu é que sei como é que estou...”, devolve a artista. Segundo o chef Hélder Martins, que chefiou o Tavares cerca de cinco anos, haverá registos da passagem do último czar russo, Nicolau II, pelo Tavares. Saciou-se com um “manjar de ostras servidas à francesa, com guarnições desde caviar a chalotas”.Quatro foram as vezes que o chef viu Mónica Bellucci no restaurante. Bellucci gosta de “comer bem, comida dos dias de hoje, mas num ambiente que lhe lembre o passado”. Pediu quase sempre “Bife à Marrare”.
"A horta da galinha dos ovos de ouro", um dos pratos que José Avillez criou na passagem pelo Tavares
A estrela Michelin de Avillez Não foi fácil para Fernando vender o restaurante a José Pereira dos Santos, que era advogado em Leiria. Sentia o Tavares como “um filho”, mas o cansaço e a idade levaram ao negócio em 2002. José – que faleceu em 2022 - disse-lhe que “gostava muito” de gastronomia. Segundo o artigo “As vidas que o Tavares viveu”, publicado por Fortunato da Câmara no jornal Público, José sonhava “ter em Portugal um restaurante com nível de cozinha dos ‘estrelados’ do guia Michelin”. Instala no primeiro andar um salão de chá, depois um restaurante italiano, “mas não funcionou”, conclui Fernando. Nem a gestão inicial do negócio à distância, que José tentou reverter assumindo a direção. Em 2006, passa a gestão para a empresa J. R. Costa.
O sonho de José concretiza-se pela mão do chef José Avillez, que entra para o Tavares em 2008, ano em que renovou a cozinha e o espaço e em que o restaurante recebe o prémio de “Melhor Restaurante do Ano”, pela Revista de Vinhos. Em 2009, é distinguido com uma estrela Michelin. “Foi uma importantíssima conquista para mim, para a equipa e para a cidade de Lisboa”, considera o chef. “Foi um marco importantíssimo, um orgulho imenso tanto para mim, como para a equipa. Foi a primeira vez que recebi uma estrela Michelin, estrela essa que foi confirmada em 2010”, realça. No começo de 2011, deixou o Tavares em divergência com a administração. Hoje à frente do Belcanto, com duas estrelas, não duvida: “A cozinha [do Tavares] era rigorosa e criativa e foi o berço do trabalho que hoje desenvolvemos no Belcanto. Ali nasceram pratos icónicos, que ainda hoje estão presentes no Belcanto, como A Horta da galinha dos ovos de ouro e o Mergulho no mar”.
chef Hélder Martins, com a equipa, liderou a cozinha do Tavares de 2014 ao final de 2019
Hoje no In.Vulgar, o chef Hélder Martins liderou a cozinha do Tavares de 2014 ao final de 2019. Sentiu “todos os dias” a responsabilidade ao entrar neste local histórico, “faustoso e brilhante”. Era quase como entrar “num templo romano, mas bastante português e com cheiros e visual de outrora”. Sentia que o trabalho da sua equipa podia ficar na história. A sala pedia um serviço clássico, mas a comida era contemporânea, e portuguesa. Nas entradas, apostava na nobreza da proteína: o lavagante azul do Algarve, a amêijoa-cristã da Ria Formosa, o peixe-espada preto da Madeira, o atum barbatana azul dos Açores, as carnes Barrosã, Mertolenga e Arouquesa e o porco Ibérico. Produtos que “tanto podiam ser vendidos aqui como em Barcelona ou Nova Iorque”. Hélder pesquisou símbolos de Lisboa, como a “Perdiz à Convento de Alcântara”, o “Bife à Marrare”, os antigos “Peixinhos da Horta” e o “Cozido à Lisboeta”, com enchidos e legumes da zona saloia. Também revisitou o “Crepe Suzette”, a “Queijada de Sintra” e o “Pastel de nata”.
Facahado do restaurante Tavares durante a gerência de Fernando Lopes
Árabes, o sismógrafo e a divisão “secreta” Ao comer no Tavares, “entrava-se num mundo diferente, do passado, mas com elementos do presente”. Imaginamos os aristocratas, sonhadores e os curiosos, as glórias e desilusões, os manjares secretos e os episódios de humor, como o incrível “caso dos árabes”. Um grupo de amigos, disfarçados de árabes, engendra uma partida de Carnaval no Tavares. Vinham “mais ou menos da Arábia Saudita” tratar de assuntos “mais ou menos relacionados com petróleo”, lê-se no dossier do Semanário. Enganaram muita gente, incluindo imprensa nacional e estrangeira, e foram processados pelo diretor d'O Século. Hélder Martins acrescenta outras curiosidades, como a existência de um barómetro e um sismógrafo, de cadeiras com pequenas placas nas costas com nomes de famosos, como Sá Carneiro e Madonna, e de uma espécie de “divisão secreta” na zona técnica, entre a cozinha principal e a pastelaria que é no piso superior: com um escadote, acedia-se a um alçapão que guardava os arquivos.
Tavares pode reabrir no final de 2023
O Restaurante Tavares (Rua da Misericórdia, 37, Lisboa, Tel. 213421112) está fechado para reabilitação. Pertence, hoje, à Plateform e uma fonte do grupo de restauração liderado por Rui Sanches, explica que a pandemia forçou a uma alteração de planos de novos projetos. O novo Tavares está “numa fase inicial” de desenvolvimento. “O projeto de reabilitação (espaço e cozinha) é bastante complexo e teremos como missão respeitar toda a história do espaço para restitui-lo à elite dos grandes restaurantes de Lisboa e do país”, o que “deverá acontecer no último trimestre de 2023/primeiro de 2024”.
Sala do restaurante Tavares
Estúdio Nuno Correia
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
O atual gerente da loja de Coimbra, Carlos Saraiva, recorda-se de ter chegado ao Recheio da Figueira da Foz, em 1978, e muito do trabalho ser ainda manual. Os inventários faziam-se em papel, durante fins de semana a fio, e havia funcionários que passavam tardes a carregar ou descarregar toneladas de produtos, como o açúcar, de ou para camiões. Porém, a empresa estava atenta às dificuldades, crescia e tinha de encontrar “novas formas de trabalhar”, refere o gerente. Carlos soube “que os antigos patrões já tinham ido a países estrangeiros para ver como funcionavam” outros sistemas e como “podiam modernizar” o negócio, arranjando soluções para automatizar algumas tarefas. No início dos anos 80, sensivelmente, começaram a chegar soluções como empilhadores e as euro paletes para substituírem os estrados. O Recheio terá sido “das primeiras empresas em Portugal” a introduzi-las. Além de rentabilizarem o negócio, porque tudo passou a ser feito em muito menos tempo, estas estruturas e maquinaria permitiam dosear o esforço individual.
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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