1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos
25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos
Arquivo A Capital
Por ser perto de casa, foi à mesa do restaurante O Pote, em Lisboa, que Melo Antunes apresentou aos camaradas um manuscrito com os princípios para um programa do Movimento dos Capitães. No dia da Revolução dos Cravos ninguém lamentou, neste restaurante tradicional, terem ficado no tacho as mãozinhas de vitela e a lampreia. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar os 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.
No final dos anos 60 e início dos anos 70 do século XX, cresce o descontentamento em Portugal, um país a braços com a Guerra Colonial, emigração “a salto” e uma “asfixiante” falta de liberdade. A influência e efeitos do Estado Novo (nos últimos anos dirigido por Marcelo Caetano, por impedimento de António de Oliveira Salazar) eram profundos e, no seio militar, desenha-se um golpe de Estado. Como explica Vasco Lourenço, um dos mais influentes Capitães de Abril e presidente da Associação 25 de Abril, “só os militares tinham condições para derrubar o regime da ditadura”. Conscientes de que a “enorme maioria” da população ansiava por isso e iria apoiá-los, decidiram avançar. “E tudo aconteceu como prevíamos...”
Vasco Lourenço
Arquivo A Capital
O “1º Congresso dos Combatentes do Ultramar”, realizado de 1 a 3 de junho de 1973, abriu portas “ao início da contestação” e ao avanço dos militares, cansados de que se criassem condições para manter a guerra. Mas o ato considerado “fundador” do Movimento dos Capitães - mais tarde designado de Movimento das Forças Armadas (MFA) -, foi a reunião de Alcáçovas, a 9 de setembro. A 1 de dezembro, em Óbidos, Vasco Lourenço sentiu que a ação militar já “era inevitável”. A conspiração adensa-se nos meses seguintes, em inúmeras reuniões.
A fachada antigo do restaurante
A fachada antigo do restaurante
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Dos contactos do Movimento dos Capitães (Exército) com a Marinha e a Força Aérea, “conseguiu-se, essencialmente, a neutralidade desses dois Ramos” das Forças Armadas, alémde uma “participação importante na feitura do Programa do MFA, por parte da Marinha”, refere Vasco Lourenço. Um dos oficiais da Marinha a envolver-se foi Carlos de Almada Contreiras, que salienta que também neste ramo das forças armadas se vivia “um ambiente de algum descontentamento e interrogação” desde os anos 60, com alguma organização no início dos anos 70. O contacto com a sociedade civil e a literatura “vai abrindo horizontes” a muitos oficiais. Constatavam que havia um “atraso socioeconómico importante” no país e que “a questão da guerra e de manter o status quo colonial ia um pouco contra o movimento do mundo ocidental”. Esses oficiais vão trocando informações em cafés, por norma no Cais do Sodré, de onde saía o comboio, e em almoços no Faz Frio. Em meados de fevereiro (provavelmente dia 13) de 1974, Almada Contreiras encontra-se na sua Renault 4L com Manuel Martins Guerreiro e Ernesto Melo Antunes, em frente à pastelaria Nortenha, em Algés. “Avançou-se com a ideia de que o Movimento dos Capitães só fazia sentido se houvesse um programa e assentámos que o major Melo Antunes ia fazer um primeiro manuscrito”, recorda Almada Contreiras.
Capa do livro "Melo Antunes, O Sonhador Pragmatico", de Maria Manuela Cruzeiro
O primeiro esboço do programa do MFA
Uma semana depois, Melo Antunes apresenta-lhes o manuscrito à mesa do restaurante O Pote, na Avenida João XXI, em Lisboa, perto de casa. Era o primeiro esboço de princípios de base para um futuro programa do MFA. As notas sobre essa apresentação de Melo Antunes, tomadas por Almada Contreiras e reproduzidas na obra “O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A Questão das Atas”, de Maria José Tíscar Santiago, apontavam para um governo provisório de feição democrática, a “dissolução do atual Governo, Assembleia Nacional e Câmara Corporativa”, amnistia para presos políticos, a extinção da PIDE e LP, reestruturação das polícias e a restauração de liberdades públicas e direitos individuais como a liberdade de imprensa, de reunião e de associação, bem como o “cessar-fogo e início do processo conducente à autodeterminação dos povos africanos”. Da fusão desse documento, entretanto transcrito à máquina, com outros dois apresentados a 3 de março em casa do major Seabra, em Algés, nasce o documento “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”, aprovado a assinado a 5 de março na célebre reunião de Cascais. “Aí aparece, pela primeira vez, uma palavra completamente proibida, que era democracia, conseguimos meter esse cavalo de Troia”, sublinha Almada Contreiras. Muita coisa aconteceu até ao dia decisivo, como a transferência compulsivade alguns capitães e a constituição de três comissões: uma militar para tratar das operações, uma de ligação e uma política, encarregue de redigir o programa do MFA. Nas vésperas do 25 de Abril, “está pronto”, assinala Almada Contreiras.
A atual fachada do restaurante
O dia da Revolução
Vasco Lourenço teve de acompanhar a queda da ditadura a partir de Ponta Delgada, nos Açores, onde se encontrava “desterrado”. Às 04:25 de 25 de Abril de 1974, ouve no Rádio Clube Português a frase "Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas", introduzindo a repetição do primeiro comunicado do MFA.“Quando Salgueiro Maia chegou a Lisboa, de acordo com a Ordem de Operações, comandando a força da EPC, os principais objetivos do MFA estavam conquistados”. E “o mesmo se viria a passar, aliás, em todo o país, com forças que atuaram nas localidades onde estavam, ou […] se deslocaram, para Lisboa (com passagem por Peniche), ou para o Porto”. Momentos determinantes foram, para si, aqueles em que “o atirador de um carro de combate, na Ribeira das Naus, se recusa a atirar sobre Salgueiro Maia, como o brigadeiro segundo-comandante da RML lhe ordenou” e quando, ainda com Salgueiro Maia, “forças às ordens do poder se passaram para o lado do MFA”. Mesmo considerando que o MFA “não preparou devidamente 'o Dia Seguinte'” à Revolução dos Cravos, “salvou-se” a apresentação pública de um programa político. As principais conquistas? “Liberdade, Paz, Democracia e Justiça Social”. “Considero-as tão importantes que olho para o 25 de Abril como um dos atos mais relevantes, no sentido positivo, da História de Portugal”, remata.
Manuel, Nuno e António Montenegro
Um panelão de mãozinhas de vitela
No dia da Revolução, ficou por vender um panelão de mãozinhas de vitela no restaurante O Pote. “Era só gente na rua e não nos deixavam abrir a porta”, revela Manuel Montenegro, que em 1968 adquiriu este espaço com o irmão, António Montenegro – outro irmão, já falecido, entraria como sócio mais tarde. As mãozinhas foram transportadas dentro de um tacho, numa grande alcofa, até à morada de alguns funcionários. Todos se juntaram ali e puderam saboreá-las durante a semana, com um percalço pelo meio:“As mãozinhas tinham aquela gelatina... O tacho largou-a pelo caminho e ela ficou marcada rente aos prédios, por aí abaixo, durante anos! Anos! Cada vez que lá passava, dizia... - Isto nunca mais sai daqui! (risos)”, graceja António. A marca desapareceu, com o tempo, mas ficou a memória de outro tesouro, “caríssimo naquele tempo”, que também não se pôde vender e serviu para alimentar o pessoal: lampreia.
Quando Manuel e António compraram o espaço, já ali funcionava uma taberna com esplanada e cozinha na montra. Mantiveram o nome, que os lembrava dos cozinhados à lareira, na sua terra natal de Paredes de Coura, mas só serviam pregos, bifanas, conquilhas, bitoques, presunto ou miolos com ovos, e cerveja, fechando pelas 04h00. Nas noites de fado compareciam fregueses habituais, como João Braga, Ana Rosmaninho, Manuel “Lindinho” Nobre Costa, José Luís – Mestre Guerra, o “ti Alfredo Marceneiro” e José Pracana, mais os seus admiradores. O Pote começa a ser frequentado por figuras públicas da época: cantores, artistas do teatro de revista, locutores, jornalistas e jogadores de futebol campeões da Europa. Em 1972, abre a sala do primeiro andar (mantém-se o painel de azulejos retratando um pote, galinhas, coelhos e presunto), com uma atuação de Alfredo Marceneiro. Gerou-se tal confusão que os fados terminam nessa noite. Da cozinha saíam pratos cada vez mais compostos, uma aposta consolidada com a aquisição, em 1974, de uma antiga perfumaria e o aumento da área no rés-do-chão, onde está o balcão.
O Pote, em Lisboa
Mesa do Canto e o funcionário escritor
O período revolucionário foi vivido no restaurante O Pote “com grande intensidade”, tendo passado pela casa “importantes protagonistas”. João Almeida, o funcionário mais antigo, entrou em 1975 e lembra-se de servir Melo Antunes, mas também José Manuel Barroso e Sanches Osório, outro “habitual”. O restaurante começa a receber tertúlias de estudantes que enchiam o corredor à espera de vaga, isto se não ficassem lá fora... O Pote foi também palco de histórias como a da desaparecida Mesa do Canto. Ficava junto à escada e era muito requisitada por um grupo de amigos, onde se incluía Jorge Moedas. “Um dia, ele vem almoçar e diz que tem que se despachar mais cedo porque tinha uma reunião com o senhor ministro. Para não sujar o fato e a gravata, o meu colega Aires trouxe-lhe uma toalha branca. Às tantas, quando já estava no café, um cliente pediu ovos estrelados. Ele tira a toalha, prepara-se para ir embora, o Aires traz a travessa com os ovos, há um gajo que lhe toca na travessa e os ovos vão aterrar exatamente em cima da gravata e da camisa! (risos). Foi um pandemónio! Hoje rimos, mas naquela altura o homem teve de ir comprar uma camisa e uma gravata!”, conta João Almeida. O azarado do dia posterizou numa toalha os Estatutos da Mesa do Canto, uma “entidade gastronómica com personalidade e que se define pelos limites coincidentes com os da doce amizade e sã camaradagem”, lê-se no site do restaurante O Pote (Avenida João XXI, 7 – D, Lisboa, Tel. 218486397).
Incentivado por clientes e amigos, como António Lobo Antunes e Daniel Sampaio, João Almeida começou a escrever e é já autor de três livros: “Deliciosas Colinas”, “Descalços em Tempos de Botas” e “Poesia ao Gosto Popular”. Ao longo de décadas, muitas foram as personalidades a visitar o restaurante, como Vera Lagoa, do jornal O Diabo, quase todos os ministros do Trabalho, Pedro Mota Soares, que a casa conhece “desde miúdo”, ou aindaRaul Durão e Teresa Guilherme. António Costa era assíduo, sobretudo antes de ser primeiro-ministro, e Marcelo Rebelo de Sousa já aqui esteve “até quase à uma da manhã” com um grupo. Do imprevisível mundo da noite aparecia, por vezes, um indivíduo com uma abordagem sui generis: “Chegavam aqui e diziam – Epá, guarda aí a arma! E a gente ficava à rasca e tinha que guardar...”, resignava-se o staff.
Cozinha tradicional no restaurante O Pote
A nova vida do restaurante O Pote
Em 2011, Nuno Montenegro, filho de Manuel, entrou para a sociedade e, no final do ano passado, adquiriu as quotas dos outros sócios. O novo proprietário pretende “não falhar perante a história”, continuar com o negócio e “evoluir de uma forma diferente”, atraindo as novas gerações. Preservam-se bandeiras como o Cozido à Portuguesa, a Feijoada e o Bife à Pote (agora com uma fatia de presunto e batatas às rodelas), o Bacalhau à Brás (€9,90), Jardineira de vitela, o Arroz à Valenciana (entre vários arrozes), mas também o polvo e bacalhau assados à Lagareiro. E ainda os pratos do dia, como o Arroz de pato, Língua estufada, as Favas à portuguesa e o Cabrito ao domingo. O novo chef, Pedro Alcântara, diversifica o menu com outro tipo de carnes e guarnições, mais peixes e mariscos, arroz e massada de tamboril e pratos como o Cação à Bulhão Pato, por vezes as Lulas à Algarvia, e o Esparguete negro com camarão (€10,90), risottos e as grelhadas mistas de peixe e de carne. Para petiscar à tarde, há saladas de polvo, orelha e de ovas, peixinhos-da-horta, pregos e ovos com farinheira. Nos doces, os principais destaques são o Pudim de ovos e o Cheesecake caseiros, bem como as mousses de caramelo e de chocolate.
João Almeida, funcionário do restaurante O Pote
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar os restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa
O 25 de Abril de 1974 não foi um dia igual aos outros para Estrela Bento. A atual responsável de garrafeira no Recheio de Ramalde, no Porto, lembra-se de fecharem a loja onde trabalhava, devido à Revolução em curso, e de ir com as colegas e amigas, “todas com cravos”, para a Praça da Liberdade. Durante o Estado Novo, “as pessoas tinham medo de andar na rua, não podiam falar senão iam presas”, e viviam em dificuldade: “Queríamos comer e não tínhamos. Fui criada na Ribeira, ia lavar bacias de roupa de vizinhas minhas para termos dinheiro para comer, eu e os meus irmãos, mas éramos unidos”, sublinha. Arroz, açúcar e bacalhau eram bens escassos. Começaram a “vender-se mais” com a mudança de regime e o passar dos anos, e entretanto vêm os iogurtes e o leite embalado. Em contraponto, vendia-se “muita cevada”, vinhos e congelados. Estrela Bento começou por encher sacos de pimenta, colorau, amendoim e outros produtos que chegavam à loja a granel, e ajudava a “descarregar os camiões”. Hoje em dia, nota que as condições de trabalho melhoraram: “Agora temos tudo, desde calçado a farda e segurança no trabalho, tudo o que é preciso. Tive momentos difíceis, e esta firma ajudou-me muito”, conclui. A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, o Recheio, agora com 39 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantém como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes e, ao mesmo tempo, apresentar produtos que, hoje em dia, são tendência ou inovadores.
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