1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade
A mesa de Eusébio na Adega Tia Matilde
Só a família pode sentar-se na mesa de Eusébio na Adega Tia Matilde, em Lisboa. Foi a homenagem que este restaurante, propriedade do sócio número 1 do Sport Lisboa e Benfica, Emílio Andrade prestou ao Pantera Negra, que ali comia diariamente. Em 1973, foi dentro das quatro linhas, no Estádio da Luz, que uma chuva de estrelas nacionais e internacionais prestou tributo ao “Rei”. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar os 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.
A 24 de setembro de 1973, o aeroporto da Portela entra em alvoroço. Um a um, chegam a Lisboa as estrelas maiores do futebol mundial que vão defrontar o Benfica no Estádio da Luz, no jogo de consagração de Eusébio da Silva Ferreira, no ocaso de uma carreira brilhante de águia ao peito. Para o tributo ao “Rei” equipam-se, entre outros, José Iribar, Di Stefano, Piet Keiser, Jack e Bobby Charlton, o brasileiro Paulo César, Santiago Barnabéu, Gordon Banks e o irreverente George Best. À capital portuguesa chega também D. Elisa, mãe de Eusébio, a tempo de ver o filho na capa dos jornais, a 25 de setembro, o dia da homenagem: “A festa do 'Rei', escrevia o Diário de Notícias, “As mil e uma noites de Eusébio têm sido tantas quantas as vezes que jogou pelo Benfica”, garantia o Diário Popular, “Obrigado Eusébio!”, agradecia o Record.
Tributo a Eusébio no Estádio da Luz
Arquivo A Capital
O mesmo jornal dedicou a Eusébio sete páginas, onde se descobrem as palavras da mulher, Flora, para quem, como futebolista, o Pantera Negra, era “simplesmente fabuloso”. Ao Diário Popular, o então presidente da direção do Benfica, Borges Coutinho, deixava a garantia: “Como Eusébio, só de cem em cem anos”. Entre elogios de técnicos, amigos e colegas de profissão, estava tudo pronto para a festa. Ou para a festa possível... Surpreendentemente, o treinador do Benfica, Jimmy Hagan, abandona o estádio em desacordo com a direção por se ter autorizado que os jogadores Toni e Humberto (que o treinador deixara de fora) se equipassem. O episódio, que culminou na saída de Hagan do clube, manchou, em parte, o tributo a Eusébio. Fernando Cabrita assumiu o comando técnico do clube.
Num primeiro embate defrontam-se jogadores da Seleção de 1966 (Magriços) e uma equipa de Ultramarinos, terminando com um empate a duas bolas, o mesmo resultado do “prato principal”, o Benfica vs Seleção Mundial, com dois golos de Nené, pelos encarnados, que alinharam, entre outros, com Jordão, Simões, Toni e Artur Jorge. Eusébio é rendido a 15 minutos do fim e dá a volta ao relvado, em ovação e com a bola. Nessa noite, recebeu lembranças e condecorações, como o Grau de Cavaleiro da Ordem do Infante.
Busto de Eusébio no bar da Adega Tia Matilde
Busto de Eusébio no bar da Adega Tia Matilde
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Eusébio e a Adega Tia Matilde
Para chegar a esse momento de glória é preciso recuar a dezembro de 1960, quando Eusébio voa de Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, e aterra em Lisboa em busca do sonho. No livro “Eusébio como nunca se viu”, António Simões descreve o que se seguiu: “De táxi, Eusébio foi para o Lar do Jogador, na Calçada do Tojal, entre a igreja e o cemitério de Benfica. Comeu uma sanduíche e puseram-no a dormir no quarto onde estavam José Torres e Amândio. Acordou e foi à Luz. Treinou ao de leve. No sábado, leu em A Bola a reportagem de Cruz dos Santos e almoçou na Adega Tia Matilde. À tarde partiu da estação do Rego com a equipa que jogaria com o Sporting da Covilhã para o campeonato”. Aestreia oficial, todavia, só acontece em maio de 1961, num jogo contra o Vitória de Setúbal.
Iniciava-se, assim, uma relação para a vida entre o Pantera Negra, o Benfica e a Adega Tia Matilde, um dos mais conceituados restaurantes de Lisboa. “O Benfica partia de comboio para jogos fora e os jogadores almoçavam sempre aqui, antes de saírem”, recorda Jorge Sampaio, neto do proprietário da Adega Tia Matilde, Emílio Andrade, que é o orgulhoso sócio número 1 do Sport Lisboa e Benfica. Eusébio “parava diariamente” na Adega, que se torna uma segunda casa. “O meu pai era o pai branco do Eusébio. Acompanhou-o sempre, desde que chegou a Lisboa. O Eusébio vinha para cá pelas 14h30, almoçava e o meu pai sentava-se com ele e passavam a tarde a conversar e a ver jogos de futebol no bar. Era muito chegado a nós, por vezes participava em formações com os colaboradores e vivia connosco os nossos aniversários. Era um amigo muito grande”, recorda Isabel Andrade, uma das filhas de Emílio.
As famílias de Emílio e Eusébio à mesa na Adega Tia Matilde
À mesa, o Pantera Negra apreciava canja de cherne com gambas, um prato “pouco comum”. De entrada, comia camarão tigre e a seguir um bife à Tia Matilde ou cabrito. Frequentou este restaurante ao longo do percurso pelo Benfica, clube ao serviço do qual venceu uma Taça dos Clubes Campeões Europeus (e ajudou a alcançar mais três finais), 11 campeonatos nacionais e cinco Taças de Portugal. Pela seleção, foi o melhor marcador do Mundial de 1966, em Inglaterra, recebendo a Bota de Ouro e ficou na história pela incrível reviravolta no jogo contra a Coreia do Norte, em que marca quatro dos cinco golos lusos e vira uma desvantagem de três bolas.
Foi também na Adega Tia Matilde que Eusébio almoçou pela última vez, antes de falecer na madrugada de 5 de janeiro de 2014, vítima de paragem cardiorrespiratória, aos 71 anos. Mas o seu legado e memória perduram... Colocou-se um busto no bar e apenas a família do jogador se pode sentar na “sua” mesa, eternamente reservada para a lenda. O “Rei” aparece em grande parte das centenas de imagens que decoram as paredes do restaurante, umas das quais “vale uma fortuna”, conforme se lê na legenda, ao mostrar Eusébio a servir à mesa o próprio Emílio, que acompanhara o Benfica numa ida à Coreia. Noutra, vê-se o fundador da Adega da Tia Matilde a dar o pontapé de saída de época, num jogo frente ao Mónaco. Nesse dia, convidou Eusébio para o acompanhar e ajudar, mas afinal foi Emílio a apoiar o campeão, que não estaria nas melhores condições.
Emílio Andrade, no 100.º aniversário com Luís Filipe Vieira
SL Benfica
O clube e o restaurante do coração
“O Benfica para o meu pai é muito grande, é algo transcendente”, comenta Isabel, recordando uma história revelada por Emílio: “Quando era miúdo, o meu avô prendia-o com uma fita à perna de uma cadeira para ele estudar. O meu pai cortava-a e saltava pela janela. Chegou a sair em cuecas para ver o Benfica. Claro que, quando chegou a casa, sofreu as consequências...”. “Os amigos traziam-lhe calças e casacos, abriam-lhe a janela do piso térreo e ele ia ver os jogos. Era uma paixão que levava muito a sério”, acrescenta Jorge Sampaio. Mal o Benfica foi campeão europeu pela primeira vez, Emílio convida a banda de música da esquadra do Rego e arranja um autocarro, a “Charanga do Benfica”, para esperar a equipa. As histórias davam um livro... “Os antigos jogadores Costa Pereira, José Águas e Cavém tinham uma confiança e amizade tal que, quando regressavam das viagens, o pai ia com a Matilde e as esposas deles esperá-los ao aeroporto. Mais tarde, apareceu o Humberto Coelho e o Toni (de quem os meus pais foram padrinhos de casamento, tal como do Cavém), ambos amigos desta casa, que têm acompanhado ao longo dos anos. Luís Filipe Vieira também é cliente, tal como o Simões, a Flora e as filhas. E Rui Costa já aparece de vez em quando, trazido pelos mais velhos”, revela Isabel.
Emílio Andrade a mostrar cartão de sócio do Sport Lisboa e Benfica
DR
Prémio Carreira e Mesa com Mérito
Em 2021, Emílio Andrade foi distinguido pelo Boa Cama Boa Mesa, ex-aequo com Lurdes Graça, do restaurante Manjar do Marquês, com o Prémio Carreira. No ano anterior, o guia atribuiu ao restaurante a distinção Mesa com Mérito. Já em 2022, aos 101 anos, Emílio Andrade vestiu a camisola do Benfica e sentou-se à mesa com o cartão de sócio número 1. No “currículo” encarnado consta também a contribuição para a construção do estádio anterior. Apesar dos convites, nunca quis assumir um cargo no clube do coração.“A minha vida é esta [o restaurante]”, confessava.O espaço foi fundado em 1926 pela sua mãe, a “Dona Matilde” e, no início, era apenas uma tasca de bairro apoiando o apeadeiro dos comboios, ali ao lado. O chão era em terra batida e ao balcão serviam-se copos de vinho e petiscos. Certo dia, um grupo de construtores, apreciadores de cabidela, trouxe tábuas das obras para fazer um piso por cima do jogo da Laranjinha. Montaram aí uma mesa, bancos e serviu-se a primeira refeição do restaurante: cabidela. “Um começo curioso”, nota Jorge Sampaio, que se orgulha de, ainda hoje, o prato continuar a ser um dos mais procurados pelos clientes.
Cabrito na Adega Tia Matilde
Restaurante de referência
O gosto de Emílio pela Laranjinha, um jogo popular com bolas de madeira, leva-o a conhecer Isabel, já que os pais da futura mulher também tinham uma tasca onde se jogava em Caneças. Isabel “sabia transmitir às colaboradoras o gosto e entusiasmo com que confecionava qualquer prato”. Tinha “um grande talento para a cozinha”, descreve Jorge. O restaurante Adega Tia Matilde ganha um impulso decisivo com os cozinhados de Isabel. Hoje, Emílio, com 101 anos, e as filhas, Matilde e Isabel, com a ajuda do neto, Jorge, dão continuidade ao negócio, que floresceu. A irmã de Isabel, Matilde Andrade, orienta as encomendas, as ementas diárias e assegura que na cozinha se respeitam os melhores preceitos, mantendo a “qualidade dos produtos, da confeção e apresentação”. Recebeu da mãe “um grande ensinamento” ao nível do preparo, tal como da família do marido, um minhoto, e das casas nortenhas de bem comer que conheceu.
Começaram, entretanto, a aparecer mais figuras conhecidas, de vários quadrantes, e a Adega Tia Matilde torna-se uma referência nacional. As várias salas amadeiradas e repletas de fotos, as mesas com atoalhados impecáveis e a inclusão de uma garrafeira à vista são expressões da elegância. Acrescente-se o bar descontraído, onde também se vê um busto de Amália Rodrigues, e o parque de estacionamento coberto, de acesso direto à sala, para os clientes. Apesar da ligação ao Benfica, aqui todos são bem-vindos. Essa abertura atraiu, também, as mais diversas cores políticas: Ruben de Carvalho, do PCP, era bastante assíduo, tal como o socialista António Costa, atual Primeiro-ministro. E por aqui passam muitos outros nomes, como Luís Montenegro, atual líder do PSD, Marques Mendes ou Rui Moreira. Lula da Silva fez uma visita depois de deixar a presidência do Brasil e deixou-se fotografar na cozinha, sorridente. Jornalistas e personalidades das artes, como o maestro Vitorino de Almeida e o cineasta António Pedro Vasconcelos, que o Boa Cama Boa Mesa encontrou numa das últimas visitas, são outros clientes da atualidade.
Adega Tia Matilde
Comida tradicional
O que todos procuram é o ambiente tranquilo, o serviço atencioso e o cuidado na preparação das especialidades, harmonizadas com uma farta e certeira garrafeira. O farol foi sempre a cozinha tradicional portuguesa: simples, saborosa e com produtos frescos. No “Pato corado com arroz” (€22), por exemplo, os patos são comprados ao mesmo fornecedor “há mais de 40 anos”. Saem inteiros da assadura lenta, no forno, com um “impressionante” tom dourado, sendo desossados e trabalhados com o arroz carolino, e rematados por duas rodelas de laranja e uma de chouriço vermelho, “português e tradicional”. Inicie com “Peixinhos da horta” (€5,25), “Presunto Pata Negra” (€14), “Salada de polvo”, “Camarão tigre grelhado” (€27,50) ou os recentes (e imperdíveis) “Espargos com ovos, camarão, lâminas de presunto e cebola”.
Relíquias são também o “Arroz de frango à Tia Matilde” (€18,50), com uma liga de sangue “perfeita”, ensinada pelos mais velhos, o inevitável “Cabrito no forno” (€24,50), guarnecido por uma batata de calibre específico, as “Pataniscas de bacalhau com arroz de grelos” (€17,50), a “Caldeirada à Tia Matilde”, a clássica e aromática “Canja de garoupa com amêijoas e espinafres” (€38) e ainda, à época, a lampreia, à minhota ou à Bordalesa. Não se dispensa o generoso “Bife (lombo) à Tia Matilde” com batata e ovo (€24,50), nem a imperial fresquinha. O Arroz-doce (€5,50) destaca-se nas sobremesas, a par da “Tarte folhada de maçã” e da clássica “Mousse de chocolate”.
O restaurante Adega Tia Matilde (Rua da Beneficência, 77, Lisboa. Tel. 217972172) funciona de segunda a sexta-feira, ao almoço e ao jantar, e sábado, apenas ao almoço.
Homenagem a Eusébio nas paredes do restaurante
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar os restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa. Na próxima quinta-feira, recuamos até 1974, para conhecer um restaurante que recebeu diversas reuniões preparativas do que abril se transformou na Revolução dos Cravos.
O Recheio foi fundado em 1972, mas é no ano seguinte que é inaugurada, na Figueira da Foz, a primeira loja cash & carry daquela que é hoje a marca líder de mercado neste segmento de negócio. No dia de abertura, o espaço recebeu 200 clientes curiosos com o conceito inovador e com a oferta disponibilizada.Nessa época, o bacalhau era o produto mais procurado dada a escassez. 50 anos depois, Estrela Bento, que na época, “era ainda uma menina, com apenas 17 anos”, e hoje é responsável de garrafeira do Recheio de Ramalde, no Porto, ainda se recorda das primeira tarefas que desempenhou: “Encher sacos de pimenta, colorau, amendoim e outros produtos que chegavam à loja a granel”. Nesta viagem no tempo é importante recordar que a torrefação de café ou de amendoim ainda era feita na loja para depois ser embalada e disponibilizada aos clientes. Já Joaquim Perpétuo, que começou a trabalhar na Figueira da Foz com 15 anos, como ajudante de motorista e hoje é responsável de frente de loja, orgulha-se dos primeiros tempos no Recheio. Nesses anos, como existiam poucos fornecedores, “nós é que íamos buscar as mercadorias com um camião, que depois distribuíamos por mercearias”, lembra. A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, o Recheio, agora com 39 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantém como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes e, ao mesmo tempo, apresentar produtos que, hoje em dia, são tendência ou inovadores.
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