Um dos grandes flagelos de há muito nas sociedades modernas, e que sempre que falamos em qualidade de vida em centros urbanos, pobreza ou habitação vem à baila, é o fenómeno das pessoas sem-abrigo. E faço questão de realçar a expressão “pessoas”, para que mentes mais distraídas não se esqueçam do fundamental — estamos a falar de pessoas. E, já agora, de pessoas que podíamos (e ainda podemos) ser cada um de nós
Este é um fenómeno que, na sua versão moderna, remonta ao século XIX, com a Revolução Industrial e o seu impacto na urbanização, mas que na realidade sempre existiu nas sociedades, e normalmente associado a movimentos migratórios forçados, segmentos marginalizados da sociedade ou grandes desastres naturais. Mas sempre associado à pobreza e à inerente exclusão social.
Ou seja, uma realidade daquelas que, contra o que desejaríamos, tem persistido ao longo de diferentes períodos e atravessado diferentes conjunturas, e que deve ser um tema que merece reflexão, ainda que não estejamos nesta situação ou sequer conheçamos quem esteja.
Ao contrário do que se possa pensar, esta situação não acontece apenas em franjas da sociedade consideradas desprivilegiadas — para ser simpático — ou marginalizadas, mas também, cada vez mais, afeta segmentos da sociedade que por diversas circunstâncias têm visto as suas condições socioeconómicas fragilizadas. Um bom exemplo disto é a chamada “pobreza escondida ou envergonhada”. Partes da sociedade que no passado tiveram uma vida confortável, mas que por diversas razões deixaram de auferir os rendimentos a que estavam acostumadas e que, por motivos de constrangimento social, preferem não comentar ou falar disso nos seus entornos. Um aparte para louvar o trabalho de uma organização portuguesa que, nesta matéria, tem feito um trabalho notável — o projeto “Cozinha com Alma”, liderado pela Cristina de Botton, uma grande inovadora social que conseguiu criar uma solução bastante engenhosa para apoiar estes segmentos, no que se refere à sua subsistência básica. Nomeadamente no acesso digno à alimentação de qualidade.
Mas porque o espanto e o choque normalmente ajudam ao ganho de consciência, vamos aos números:
- Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2022, estima-se que havia cerca de 8000 pessoas sem-abrigo em Portugal;
- A nível europeu, segundo dados da FEANTSA (European Federation of National Organisations Working with the Homeless), em 2022, havia cerca de 700.000 pessoas sem-abrigo na União Europeia. Para se ter uma noção de dimensão mais contextualizada, estamos a falar de quase um terço da população da Área Metropolitana de Lisboa;
- De acordo com o Relatório Anual de 2022 da Associação de Apoio aos Sem-Abrigo (ASA), Lisboa e Porto são as cidades mais afetadas pela questão das pessoas sem-abrigo, concentrando a maioria dos casos registados;
- Ainda segundo dados de 2021 desta associação, 80% das pessoas sem-abrigo são do sexo masculino. Este dado estatístico, já agora, repete-se um pouco por toda a Europa. Seria interessante perceber por que razão isto acontece, uma vez que este é um dos casos em que o ser parte do género masculino parece constituir uma desvantagem em termos de inclusão.
Para os mais céticos, poderia surgir a dúvida — mas 8000 pessoas em 10 milhões é um rácio que não é assim tão significativo. Afinal de contas, estamos a falar de menos do que 0,1% da população total do País.
Mas já para não falar do elementar sentido de humanidade e consciência de cidadania, segundo o qual, idealmente, o facto de haver uma vida que seja sem o necessário apoio e suporte deveria ser motivo de desconforto para todos, vamos então pensar nos custos que este desafio representa para a sociedade como um todo. Se não é pelo amor e pela consciência altruística, então que seja pela dor e pela consciência do bolso. Mas que seja.
Estamos a falar de custos diretos para a sociedade que esta situação impõe, como, por exemplo, custos relacionados com serviços de emergência (hospitais e polícia, além de outros organismos envolvidos, pagos com dinheiro dos contribuintes), de custos relacionados com a assistência social e outros. De acordo com o estudo publicado pelo IHRU (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana), em 2020, com o título “O Custo da Não Habitação em Portugal”, estes custos representavam, então, cerca de 3% do orçamento anual do Estado português;
Mas também podemos falar de custos indiretos, entre os quais talvez o mais evidente seja o do impacto que este fenómeno tem ou pode ter na economia local, em zonas de alta densidade populacional, nomeadamente no que respeita ao turismo, comércio local e mercado imobiliário.
Eu acrescentaria, ainda, a estes custos o risco da “banalização do fenómeno”, com toda a deterioração ao nível dos sistemas de valores que isto pode significar para uma sociedade que cada vez mais se quer ver como sustentável e consciente. A “desumanização” é um risco sério que as sociedades em que vivemos correm e que, para além da qualidade de vida dos cidadãos, afeta questões mais profundas como a da cultura de cidadania que queremos cultivar, e a da ética pela qual nos queremos reger enquanto coletivos.
Perante esta realidade, o que fazer? Temos vários níveis de possível intervenção, em diferentes setores da sociedade. Mas começando pelo mais óbvio: o da regulamentação e o do papel do Estado:
- Em 2015, Espanha criou um plano para eliminar o problema das pessoas sem-abrigo até 2020;
- Em 2021, o Governo alemão estabeleceu como objetivo o de acabar com as pessoas sem-abrigo até 2030;
- E, no início do ano passado, o Príncipe William anunciou um plano para acabar com este fenómeno social em cinco anos — ou seja, até 2029 — no Reino Unido.
Seria bom que não só as entidades que têm em concreto a responsabilidade, atribuições e meios de estabelecerem estes objetivos ambiciosos o fizessem, como também que estas declarações de intenções, atrativas do ponto de vista da comunicação, não ficassem na perenidade imóvel das parangonas e passassem para a realidade dos sistemas vivos da sociedade. Por outro lado, seria para mim, enquanto cidadão português, motivo de orgulho se uma igual ambição existisse em Portugal, até porque pela dimensão do problema existem mais do que condições para acabar com ele.
A indústria imobiliária tem também, obviamente, uma palavra relevante nesta matéria. Seja na construção de habitação social acessível ou, por exemplo, na reabilitação de edifícios abandonados. Para além, claro está, de um ajuste do modelo de negócio por forma a encaixar com consciência social as necessidades existentes. E se é certo que não podemos exigir que entidades que vivem e florescem na prosperidade de uma economia de mercado o deixem de fazer — e que tal não seja desejável para ninguém —, também é certo que é a ética de como atuam que em grande parte determina as regras não escritas que, muitas das vezes, são determinantes nos resultados que temos como coletivo.
E é bom recordarmos que não estamos a falar apenas das necessidades de pessoas sem-abrigo como também, de forma crescente, nas necessidades de fatias cada vez mais significativas da população que não conseguem comportar os custos da habitação nos grandes centros urbanos. E não basta trazer investimento para Portugal, em operações financeiras de grande envergadura, com investimentos imobiliários que beneficiam sobretudo as empresas imobiliárias e os investidores. Seria importante que cada vez mais houvesse uma articulação progressiva entre players nos diversos níveis deste sistema — Governo, autarquias, empresas e proprietários — no sentido de criarem condições de inclusão nesta matéria, garantindo que o enriquecimento, legítimo, é acompanhado por condições que não se esqueçam dos segmentos menos privilegiados.
João Pedro Tavares, presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE)
No que toca ao cidadão comum, diria que existem dois passos fundamentais — um na consciência e outro na ação:
- Entender como parte de um processo progressivo de cidadania consciente o fenómeno das pessoas sem-abrigo, que inclui não apenas os casos daqueles que estão nas ruas, mas todos os que estão nas quatro categorias identificadas pela FEANTSA, como parte do ETHOS (European Typology of Homelessness and Housing Exclusion). Ou seja: Roofless — sem teto; Homelessness — sem casa; vida com falta de condições mínimas de segurança doméstica; e falta de habitação com condições adequadas. Esta compreensão levaria, no meu entender, a um reposicionamento da questão das pessoas sem-abrigo que seja mais realista. E, como tal, assim o espero, mais ativa na procura de soluções;
- Ter um papel ativo no voluntariado, como primeiro nível de atuação, e na inovação empreendedora, como segundo nível, no suporte e criação de condições que criativamente possam ajudar estas pessoas a verem assegurado um direito básico que lhes é garantido como Direito Fundamental, por Constituições e ordenamentos jurídicos supranacionais, um pouco por todo o mundo.
Em resumo, é importante que se assimile que este não é um problema de alguns segmentos das sociedades em que vivemos. É um problema de todos, na medida em que todos estamos a contribuir — quanto mais não seja pelo silêncio, pela negligência ou pela inatividade confortável — para que o problema não apenas se mantenha, como se agrave, e também porque os inerentes custos societais, como acima referi, a todos tocam.
Mas afinal, o que é preciso? Que um filho ou um pai estejam na rua? Espero que não tenhamos que chegar a isso. Já fizemos um longo caminho de consciência. Vamos honrá-lo. Estamos a falar de Pessoas.