Exclusivo

Sociedade

Polémica com inseminação pós-morte: mulheres só podem recorrer a um tratamento com baixa taxa de sucesso e querem mais

Ângela Ferreira, uma mulher do Porto que quer engravidar do marido falecido em 2019, é o rosto da mudança legislativa que levou à legalização da inseminação pós-morte, em 2021.
Ângela Ferreira, uma mulher do Porto que quer engravidar do marido falecido em 2019, é o rosto da mudança legislativa que levou à legalização da inseminação pós-morte, em 2021.
FERNANDO VELUDO

Há dúvidas sobre os tratamentos de procriação medicamente assistida possíveis nos casos de pós-morte. Os centros de PMA atiram para o Conselho Nacional de PMA, que não conseguiu responder e devolveu a questão à Assembleia da República. Entretanto, pelo menos três mulheres esperam contra o tempo

Polémica com inseminação pós-morte: mulheres só podem recorrer a um tratamento com baixa taxa de sucesso e querem mais

Joana Ascensão

Jornalista

Fez três anos em março que Hugo faleceu. Passado este período de tempo, o teste de gravidez de Ângela Ferreira revelou-se positivo, logo após a primeira tentativa de juntar o sémen criopreservado do companheiro com os seus óvulos recém-estimulados. Mas rapidamente foi contrariado pelos exames sanguíneos, logo no dia 3 daquele mês. E aqui nasceu um imbróglio.

No centro onde realiza os tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA), o Hospital de São João, no Porto, disseram-lhe que não era possível tentar mais nenhum tipo de tratamento que não a inseminação artificial, conhecida na gíria como “tratamento de primeira linha”, por ser o mais simples e mais barato entre aqueles que estão disponíveis e que consiste na colocação do sémen diretamente no útero da mulher durante o período fértil.

Ângela Ferreira, a primeira signatária e cara do movimento que levou à aprovação da inseminação post mortem, em março de 2021, questionou-se: aos olhos da lei não é possível um tratamento com mais chances de sucesso?

“O número máximo de tentativas que tenho é o mesmo previsto para qualquer procedimento de PMA: três. Já gastei uma. Agora não quero arriscar mais, precisamente para ter uma margem para tentar um tratamento com uma maior taxa de sucesso”, explica ao Expresso. Resolveu parar de tentar até obter uma resposta.

“Conseguimos o impensável, que foi mudar uma lei. Não cheguei até aqui para morrer na praia.”

Ângela Ferreira
Primeira signatária da petição que antecedeu
a aprovação da inseminação 'post mortem'

Caso de Ângela colocou a Assembleia contra o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida

De facto, a inseminação artificial acarreta uma taxa de sucesso de 15% a 20%, esclarece Sónia Sousa, a médica do Hospital de São João responsável pelo caso de Ângela Ferreira.

Outros tratamentos, como a fertilização in vitro (FIV) – em que o óvulo e o espermatozóide são juntados em laboratório e formam um embrião só depois transportado para o útero da mulher – sobem aos 35% a 40% de probabilidades de êxito.

No entanto, diz a clínica, “enquanto a lei não for clarificada e regulamentada, o único tratamento que podemos realizar é a inseminação intra-uterina”. Isto porque, “quando se faz qualquer tratamento de PMA, é necessário assinar o consentimento apropriado, que já existe para a inseminação pós-morte mas não para FIV pós-morte”.

É o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) que formula e faculta os consentimentos informados, que neste caso consentem apenas as mulheres, um dia, após a morte dos companheiros, a tentarem engravidar a partir de uma inseminação artificial. Nada mais.

“A dúvida do Conselho é absurda e inaceitável.”

Eurico Reis
Juiz desembargador e ex-presidente do
Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida

O grupo de trabalho que elaborou a mudança legislativa e, em especial, o deputado do PS responsável pela alteração, Pedro Delgado Alves, já fizeram saber que o objetivo seria o de poder aplicar no caso pós-morte todos os tipos de tratamento disponíveis.

“A interpretação do Conselho não tem razão de ser”, acusa o juiz desembargador Eurico Reis, antigo presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) e apoiante do movimento de mudança legislativa.

“O Conselho fez uma interpretação restritiva da lei. Na alínea que faz referência à inseminação post mortem, fala em inseminação, mas ‘inseminação’ é diferente de ‘inseminação artificial’. Se for ao dicionário, percebe que ‘inseminação’ é sinónimo de ‘fecundação’”, alega ainda, o que o faz concluir que “à luz das regras da interpretação legislativa, a dúvida do Conselho é absurda e inaceitável”.

Carla Rodrigues, que se lhe seguiu na presidência do CNPMA e já tinha qualificado a lei como “inaplicável”, admite que o organismo regulador a que preside “foi induzido pela lei, porque ‘inseminação’ é o que diz a lei”. “Em caso de outras técnicas [de PMA] como a FIV, teria de haver mais informação sobre os embriões e quantos podem ser transportados, por exemplo”.

“A partir do momento em que a AR esclareça que estava no seu espírito incluir na inseminação post mortem todos os tipos de tratamento de PMA, elaboraremos os novos consentimentos informados”

Carla Rodrigues
Presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida

Vários centros de PMA com dúvidas

O Hospital de São João e outros dois centros de PMA tiveram dúvidas. “O CNPMA não conseguia responder”, reforça a jurista Carla Rodrigues, pelo que a decisão do organismo foi pedir, em fevereiro, que a AR “se pronunciasse sobre o sentido e alcance da lei”, deixando a decisão nas mãos da comissão de saúde da AR, que, sabe o Expresso, ainda não se reuniu para debater o problema.

Ângela Ferreira versa: “Conseguimos o impensável, que foi mudar uma lei. Não cheguei até aqui para morrer na praia”. Em caso de tudo correr mal, a força da última promessa que fez a Hugo fá-la avançar para os tribunais.

Mas sob críticas de elementos do grupo de trabalho que elaborou a lei e das mulheres que correm contra o tempo, por só terem três anos para conseguirem engravidar após a morte do falecido companheiro, o CNPMA deixa uma garantia. Ao Expresso, Carla Rodrigues assume o compromisso de que “a partir do momento em que a AR esclareça que estava no seu espírito incluir na inseminação post mortem todos os tipos de tratamento de PMA, serão elaborados os novos consentimentos informados”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jascensao@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas