Paulo Magalhães: “Não há sucesso no combate às alterações climáticas porque o clima não é um bem comum no direito internacional”
No mar podemos dividir o espaço como fazemos em terra, ao criarmos as águas territoriais, mas não podemos dividir o sistema que opera dentro da água dos oceanos, tal como o sistema que opera no espaço aéreo
Alexis Rosenfeld/Getty
Bem-vindo às Conversas da Casa Comum. Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade, organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria com a agência de notícias The Planetary Press
A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da Casa Comum da Humanidade (CCH). O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha (pode ver as três primeiras entrevistas e vídeos AQUI, AQUI e AQUI).
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns o planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (IIDMA, Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.
"O clima é algo absolutamente diferente para o direito internacional porque não é um território, é um sistema que funciona bem, um padrão de estabilidade do Sistema Terrestre favorável à vida humana"
Hoje entrevistamos Paulo Magalhães, investigador do Centro de Investigação Jurídico-Económica (CIJE) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, membro do conselho geral da organização ambientalista ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável e fundador e presidente da CCH - Casa Comum da Humanidade (ouvir entrevista completa em inglês AQUI).
O que inspirou a CCH a lançar um apelo global para o reconhecimento jurídico do Sistema Terrestre no direito internacional?
A ideia principal, o ponto de partida, foi quando verifiquei que havia uma disfunção jurídica, uma incapacidade para explicar a lei. E isto aconteceu em 2002, quando o petroleiro “Prestige” se afundou perto da fronteira marítima entre o norte de Portugal e a Espanha, em águas espanholas, provocando uma grande maré negra. A primeira reação das autoridades espanholas foi tentar empurrar o navio para águas portuguesas, mas a Marinha Portuguesa enviou navios para o local. A verdade é que havia vários barcos no meio do derramamento de petróleo e este invadia as águas dos dois países, ou seja, havia uma linha de fronteira abstrata, uma obstrução legal a dividir o mar, mas não podemos dividir o mar. Podemos dividir o espaço do mar, mas não dividir as águas, o sistema, a qualidade da água ou os peixes. Portanto, há uma incapacidade da lei para explicar a realidade deste planeta interligado e por isso, quando perdemos as conexões entre a abstração, a configuração jurídica e a realidade do planeta, temos de procurar soluções. Precisamos de uma nova abstração legal que seja capaz de representar as interligações do planeta.
Tivemos acordos para enfrentar a crise climática, como o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris em 2015, mas ainda estamos a lutar para mudar a direção da agulha. O Relatório Anual do Gap de Emissões da ONU de 2019 revela que as emissões globais de gases de efeito de estufa devem cair mais de 7% por ano na próxima década, se quisermos limitar o aquecimento a 1,5 graus. E falhámos em alcançar qualquer uma das metas globais de biodiversidade estabelecidas uma década atrás. O que nos impediu de seguir em frente e encontrar uma solução?
Um dos principais erros foi a nossa incapacidade mental de lidar com o que é global. Temos de aceitar que tudo está interligado, é o que disse atrás sobre a ausência de uma abstração legal que seja capaz de representar as interligações, ou seja, a interdependência do nosso planeta é, a meu ver, a razão estrutural para não alcançarmos nenhuns resultados em relação à emergência climática ou à biodiversidade. Quando o clima entrou pela primeira vez nas discussões da ONU nos anos de 1980, a primeira questão levantada foi: “O que é clima do ponto de vista legal?”.
O clima é algo absolutamente diferente para o direito internacional porque não é um território, é um sistema, aliás é mais do que isso, é um sistema que funciona bem. É um padrão de estabilidade do funcionamento do Sistema Terrestre que é previsível, que permite que possamos ter estações bem definidas todos os anos, um padrão que se repete continuamente. E temos um “pacote” de temperaturas que fica dentro destes limites.
O clima está assim ligado a um Sistema Terrestre que funciona bem, isto é, que funciona de uma forma favorável à vida humana e de outras espécies. E este modelo operacional do Sistema Terrestre é intangível, é como um software. Não é um território, o hardware. A grande questão é que do ponto de vista jurídico ainda olhamos para o planeta como fazíamos nos séculos XVIII, XVII, XVI, ou mais para trás. Ainda estamos a olhar para a Terra apenas como um território dividido entre Estados, onde o que sobra são os bens comuns globais. E isto não é verdade.
O que torna a Terra diferente de todos os planetas que conhecemos é o Sistema Terrestre. Todos os planetas têm um território, maior ou menor do que a Terra. O que não têm e nós temos, é um sistema que sustenta a vida. O Sistema Terrestre a funcionar bem é o nosso património principal, é a coisa mais valiosa que temos na Terra porque sustenta a vida e a civilização humana. E para o direito internacional este sistema não existe porque é intangível, porque não podemos dividi-lo por fronteiras, apropriarmo-nos dele, privatizá-lo. No mar podemos dividir o espaço como fazemos em terra, quando criámos as águas territoriais, mas não podemos dividir o sistema que opera dentro da água dos oceanos, tal como não podemos dividir o sistema que opera no espaço aéreo. Esta é a grande diferença.
Como não aceitamos no direito internacional que temos bens comuns globais sem fronteiras, não administramos o clima como um bem comum global. Esta é a grande questão. Quando o clima entrou nas negociações da ONU na década de 80, a primeira proposta, da iniciativa de Malta, era o reconhecimento de um clima estável como Património Comum da Humanidade. Mas em 1992, na Cimeira do Rio (Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento), a decisão foi considerar as alterações climáticas apenas como “uma preocupação comum” da Humanidade.
"Como não reconhecemos o clima estável como um bem público global, todos os benefícios que mantêm e produzem esse clima estável não existem para a lei, e por isso não existem para economia"
d.r.
E isso faz toda a diferença.
Claro, esta é a principal razão pela qual ainda não temos nenhum resultado no combate às alterações climáticas, porque, com esta decisão na Cimeira do Rio, o clima não é um bem comum, é apenas um problema como qualquer outro, e ninguém sabe o que é uma preocupação do ponto de vista jurídico, em termos de direitos e obrigações. Ou seja, não aceitámos que o clima é um sistema que existe no mundo real e não um problema, não aceitámos que seja um bem comum global e não o administrámos dessa forma. E como não reconhecemos o clima estável como um bem público global, todos os benefícios que mantêm e produzem um clima estável não existem para a lei, e por isso não existem para economia.
Por exemplo, a questão da Amazónia, a que eu chamo o paradoxo da Amazónia. Todos sabem que a floresta amazónica é um dos ecossistemas-chave do planeta para manter e produzir um clima estável. Esta floresta tem o mais elevado valor para a Humanidade. É esse valor que todos sentem e conhecem, mas não é visível para a economia. Porquê? Porque quando falamos do valor da Amazónia, estamos a falar do trabalho intangível que os seus ecossistemas e outros ecossistemas à volta do Mundo realizam no modelo de operação do Sistema Terrestre, no trabalho intangível da Natureza, nas alterações químicas que a floresta fez na atmosfera, na água, no solo. E essas alterações químicas, esse trabalho intangível, não existe porque o bem comum não existe no direito internacional.
Do ponto de vista jurídico, este trabalho é feito numa lacuna legislativa global. O global não existe, porque a lei considera os bens comuns globais apenas como sobras dos territórios. Só que a Terra é mais do que um território e nenhum jurista no Mundo pode dizer que isso não é verdade. A verdade é que este planeta é mais do que um território e a Natureza não está errada. É a lei que está errada. Sem corrigirmos este erro será totalmente impossível restaurar o Sistema Terrestre porque não temos um quadro legal para restaurar um bem comum global, ninguém fará melhorias num bem comum global que não existe à face da lei, em que não será compensado por isso, enfim, ninguém produzirá benefícios com base numa lacuna do direito internacional.
O resultado da abordagem do problema das alterações climáticas como “preocupação comum” não é uma decisão para gerir um bem comum global, que implica um consenso nas regras da sua apropriação e da sua provisão, mas apenas um sistema de mitigação entre os Estados para tentarem produzir menos emissões de gases com efeito de estufa. No final, este é um jogo de soma negativa porque continuaremos a produzir emissões, e esta é a única maneira como a nossa economia funciona. Sem mudarmos o direito internacional não conseguimos fazer um jogo de soma positiva, fazer benefícios no Sistema Terrestre, restaurar um sistema que é invisível para a economia. E deste modo não vamos garantir um futuro para a próxima geração.
Ao discutirmos um bem comum global intangível sem fronteiras, o problema inicial é como lidar com as fronteiras nacionais e a soberania. Qual é a solução?
Devemos compreender que são duas realidades diferentes: uma é a divisão do espaço, outra é o Sistema Terrestre. E este é o grande segredo do condomínio, tal como hoje num condomínio residencial é possível ter, em termos jurídicos, bens comuns dentro do espaço da propriedade privada. Porque são coisas diferentes, uma é o espaço do meu apartamento, outra é o sistema de eletricidade, de água, dos elevadores. Uma é a divisão funcional, outra é a divisão espacial. Podemos conciliar ambas através do modelo jurídico bem-sucedido do condomínio, e é isto que precisamos de fazer no planeta.
Precisamos de considerar o Sistema Terrestre como um bem comum global que existe dentro e fora de todas as soberanias, e isto não significa que tenhamos de acabar com as fronteiras, com as soberanias. Para ser honesto, a única maneira de manter a soberania nos territórios é manter o Sistema Terrestre de uma forma que funcione bem. Sem um sistema em bom funcionamento, não há nenhuma soberania que possa dizer que não concorda com as alterações climáticas. Esta é a realidade do planeta e não está sob a soberania ou jurisdição de qualquer Estado.
A única forma de gerir os bens comuns, o primeiro passo, é defini-los, como muitas vezes nos disse Elinor Ostrom, professora da Universidade de Indiana (EUA) e Prémio Nobel da Economia em 2009, atribuído precisamente pela sua análise da governança económica, em especial dos bens comuns. O primeiro passo é, assim, definir o Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, como património imaterial que suporta a vida. E hoje já temos as ferramentas científicas necessárias para o fazer: o Espaço de Operação Seguro para a Humanidade, isto é, o conjunto dos nove processos críticos do Sistema Terrestre (alterações climáticas, camada de ozono, integridade da biosfera, etc.) e das suas interações, bem como a sua manutenção dentro de limites cientificamente definidos, os chamados Limites do Planeta
A segunda etapa é criar congruência entre as regras de apropriação e as regras de provisão do bem comum. Sem estas condições estruturais é impossível desenvolver uma ação coletiva. As alterações climáticas não são um problema de CO2, são antes de mais um problema económico, de gestão de bens comuns. Sem criarmos as condições para esta gestão ser possível e bem-sucedida, não vamos ganhar a guerra contra as alterações climáticas. Porque este é um problema de que ninguém fala.
Portanto, a mudança climática é essencialmente um sintoma, não a causa principal da doença?
Exatamente, é um sintoma. Mas o sentimento de soberania tem dificuldade em aceitar que temos um bem comum dentro do nosso território. Independentemente de aceitarmos ou não, o bem comum e a sua função estão lá, não temos soberania sobre o bem comum que é o Sistema Terrestre, mas o nosso futuro, bem como o futuro das próximas gerações, dependem dele.
"Sem mudarmos as regras continuaremos num jogo de soma negativa em que tentamos reduzir as emissões mas não conseguimos restaurar o Sistema Terrestre, porque não criamos uma atividade que cuide dele, seja compensada e se torne visível no PIB"
d.r.
Historicamente, o crescimento económico tem um custo devastador para os sistemas naturais da Terra ou bens comuns globais. Quando destruímos o ambiente criamos riqueza sem penalizações mas, ao mesmo tempo, não há incentivos em vigor para recompensar as principais soluções positivas. E estudos recentes revelaram que a Natureza poderia criar biliões de euros por ano em oportunidades de negócio, mas o atual sistema é disfuncional. Como podemos reconciliar o desenvolvimento económico com as crescentes preocupações ambientais?
É novamente uma questão jurídica que está por detrás da conceção de valor, do que é a criação de riqueza na nossa sociedade, se aceitarmos que temos um bem comum sem fronteiras, intangível, que não é uma ameaça às soberanias. Esta é a única maneira de manter as soberanias a trabalhar para o futuro. De aceitar que o clima que dentro do meu país depende do que outros países fizeram do outro lado do planeta e dos seus ecossistemas. Se aceitarmos este bem comum, devemos colocar competências numa instituição que o vai gerir, como a ONU, para determinar quais são os impactos positivos e negativos que cada país causa nesse bem comum, de modo a criar um sistema de contabilização desses impactos e uma política pública global da sua manutenção. Assim podemos mudar as regras do jogo em que a criação de riqueza na sociedade apenas acontece quando destruímos a Natureza.
Se reconhecermos o bem comum, podemos dar valor ao trabalho intangível da Natureza, como acontece na floresta tropical da Amazónia e nos outros ecossistemas. Destaco a Amazónia porque é o maior ecossistema do planeta.
Os pulmões da Terra…
Sim, a floresta da Amazónia pertence a nove países que partilham este espaço na Terra. O trabalho que é feito lá é comum porque não há fronteiras para o trabalho da Natureza: a evapotranspiração, a absorção de CO2, o oxigénio, a matéria orgânica que vai para a água e depois alimenta todos os oceanos, etc. Mas essa floresta pertence aos países que lá estão. Por isso precisamos de criar uma contabilidade que compense esse trabalho, isto é, os benefícios que esses territórios proporcionaram aos ecossistemas, de que todos nós partilhamos, da mesma forma que todos nós partilhamos os danos que a poluição e as emissões de CO2 provenientes do uso de combustíveis fósseis provocam em todo o lado. Portanto, a única maneira de harmonizar esta questão é reconhecer os bens comuns e depois criar um sistema de governança do seu uso, e admitir que ao introduzirmos esses benefícios numa contabilidade, toda esta contabilidade mudará. E terá efeitos em cascata na lógica das emissões de CO2, na lógica do que está no PIB de cada país. Sem mudarmos as regras hoje existentes continuaremos num jogo de soma negativa em que tentamos reduzir as emissões, mas nunca conseguimos restaurar o Sistema Terrestre, porque não estamos a criar uma atividade em cada país que cuide deste sistema, seja compensada e se torne visível no seu PIB.
E onde haja um balanço entre os impactos positivos e os impactos negativos da intervenção humana. Ao introduzirmos os impactos positivos, mudamos as regras do jogo porque tocamos nas condições iniciais do Sistema Terrestre, o que terá efeitos dominó em toda a economia, em todas as relações entre o Hemisfério Norte e o Hemisfério Sul, em todas as relações dentro de cada país, ou seja, é uma mudança de paradigma, de modelo de desenvolvimento. E para conseguirmos resultados esta mudança é inevitável. Afinal, se já tivemos tantas mudanças de paradigma ao longo da História, porque não podemos ter agora mais uma?
Mas temos uma base jurídica, económica e científica para promover essa mudança?
Sim, temos. Repare, hoje já reconhecemos um estatuto legal para o Património Comum da Humanidade, já reconhecemos objetos jurídicos intangíveis no direito internacional como os direitos de autor ou o Tratado do Espaço Exterior (que define os princípios que regem as atividades dos Estados na exploração e uso do Espaço). Por outro lado, já definimos o Espaço de Operação Seguro para a Humanidade e os Limites do Planeta que referi atrás. Este espaço não é territorial, físico, é intangível, é um espaço de qualidade do Sistema Terrestre. E definimos também uma série de parâmetros quantitativos e qualitativos que definem o bom funcionamento do Sistema Terrestre.
Enfim, temos hoje todas as ferramentas de que precisamos para mudar, para reconhecer e definir um bem comum global, e medir os seus impactos. O único obstáculo que temos nas nossas cabeças, nas nossas ideias, é não aceitar que há um bem comum global sem fronteiras, o Sistema Terrestre. Temos de fazer uma escolha clara: dar a oportunidade às próximas gerações de prosperarem e viverem bem, ou então de enfrentarem uma disrupção climática. O único obstáculo neste momento é a crença de longa data de que não há um bem comum global sem fronteiras.
A grande questão é que temos de afastar a nossa mentalidade de território e abraçar a ideia de sistema. É verdade que precisamos das fronteiras dos territórios para manter a paz mas, ao mesmo tempo, precisamos de construir uma estrutura legal que seja capaz de representar a função global do Sistema Terrestre. É uma abstração legal, quando propomos reconhecer o Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade é uma representação deste sistema com o melhor conhecimento que temos agora, como Espaço de Operação Seguro para a Humanidade. E depois é necessário criar um sistema de governança global deste bem comum. Deste modo, ao introduzirmos na nossa contabilidade, no nosso PIB, o trabalho da Natureza, podemos fazer uma mudança de paradigma na definição de valor económico. E construir uma economia não só para reduzir as emissões de CO2, que já começamos a fazer, mas também para restaurar o Sistema Terrestre.
"O crescimento do nacionalismo é o resultado de não termos uma solução de governança à escala global. Cada país está a fechar-se nas suas fronteiras pensando que é a melhor solução, mas as alterações climáticas ou as pandemias não respeitam nenhuma fronteira"
d.r.
Os países que usam os principais ecossistemas do planeta devem ser compensados?
Obviamente, mas porque estão a fornecer serviços que sustentam a vida para todos. E esta mudança gerará novos empregos, novas formas de criação de riqueza. É preciso trabalhar em ambos os lados, reduzindo os impactos e restaurando os ecossistemas, mas para isso precisamos que os resultados desse trabalho se tornem visíveis no sistema económico global. E não podemos esquecer que quando investimos em equipamentos com menos emissões ou com captura de CO2, estamos a trabalhar nos bens intangíveis naturais, isto é, em produzir benefícios no Sistema Terrestre.
Assim, estamos a falar da construção de uma economia de intangíveis naturais que são o suporte da vida no planeta, mais do que de uma economia de matérias-primas (commodities). É uma nova economia que criará empregos e atividades diferentes da economia atual, onde não haverá uma contradição entre o que percebemos como valor e como criação de riqueza, e a Natureza. A economia não deve ser um novo caminho para a Natureza. O que deve ser um novo caminho é o nosso conceito do que é valor e criação de riqueza na Natureza.
O Fórum Económico Mundial publicou recentemente um relatório em que destaca como as soluções positivas para a Natureza são boas para a economia, abandonando o business as usual, um tema agora importante com a Covid-19 e a recuperação verde, e adotando atividades que podem criar biliões de euros por ano em oportunidades de negócio e quase 400 milhões de empregos nos próximos 10 anos.
Sem dúvida, e com algumas grandes vantagens, como tecnologias muito boas com emissões zero que estão a capturar CO2 sem outros danos, ou programas com soluções baseadas na Natureza. Precisamos de um quadro jurídico que capture quais são as externalidades positivas da economia para termos muitos empresários a investir em soluções baseadas na Natureza. Mas obviamente que ninguém vai colocar milhões e milhões de euros em soluções baseadas na Natureza porque os resultados destas soluções são intangíveis naturais, são benefícios no Sistema Terrestre que precisam de ser compensados.
Então, falar sobre um conflito entre a economia e a Natureza é uma completa loucura, no sentido de que o problema não é economia, o problema é a definição de valor. E eu pergunto: o que é valor para a Humanidade, mais iPods ou mais commodities ou mais biologia das condições físicas que sustentam a vida? Precisamos de produzir menos mercadorias e mais intangíveis naturais que sustentam a vida no planeta, porque sem matérias-primas naturais ninguém vai ganhar dinheiro, o Sistema Terrestre entrará em colapso. O sistema não muda, a única coisa que pode mudar é a economia e a lei, porque as leis da Natureza não mudam. Portanto, a única solução é adaptar as nossas leis e a nossa economia para sustentar a vida e as próximas gerações. Não há desculpa para não o fazer.
Tem algumas ideias finais que queira acrescentar?
Sim. Podemos gerir o Sistema Terrestre sem prejudicar o território, a soberania dos Estados. É uma nova solução do ponto de vista jurídico e político, porque este é também o momento de ligar as novas ciências do Sistema Terrestre, a realidade deste sistema, com os conceitos legais, com a conceção de soluções políticas e o desenho de instituições que projetem uma governança global. Só ligando tudo isto podemos gerir o Sistema Terrestre. Esta é a nova sociedade de que precisamos para garantir a 100% como as próximas gerações podem viver.
Não podemos pensar que no Antropoceno, a nova era geológica emergente, viveremos da mesma forma, com o mesmo pensamento que vivíamos há cinco, dez ou 20 anos atrás. E tudo o que estamos a ver agora, como o crescimento do nacionalismo e o recuo da globalização em todo o Mundo, é o resultado de não termos uma solução de governança para a realidade de estarmos todos ligados, de dependermos uns dos outros à escala global.
Por isso cada país está a tentar fechar-se nas suas fronteiras, pensando que esta é a melhor solução. E sabemos que isso não é verdade, porque alterações climáticas ou pandemias não respeitam nenhuma fronteira. Por isso, só com uma abordagem sistémica, mantendo as fronteiras físicas no território e permitindo que o Sistema Terrestre exista sem fronteiras, podemos encontrar novas soluções.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press