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Até o PS já pede esclarecimentos ao Governo: contradições e críticas sobre um parecer que, afinal, não existe

Até o PS já pede esclarecimentos ao Governo: contradições e críticas sobre um parecer que, afinal, não existe
TIAGO PETINGA

Parecer que estaria na base dos despedimentos na TAP no centro de nova polémica na comissão de inquérito. Governo já teve várias versões. Oposição pede esclarecimentos ao primeiro-ministro - e o PS também

Um parecer que não podia ser entregue à comissão parlamentar de inquérito (CPI), mas que, afinal - nova versão -, nem sequer existe, está na origem de mais críticas da oposição ao Governo e da renovação dos pedidos de demissão de Fernando Medina. Mas já não é só a oposição a pedir esclarecimentos. Até o PS pede ao Governo que esclareça as suas próprias contradições.

"Quem tem de esclarecer este caso em concreto é o Governo. O grupo parlamentar e a comissão de inquérito não gerem o Governo. Pedem informação ao Governo, o Governo terá de emprestar essa informação e nós avaliaremos essa informação. Se há dúvidas sobre um determinado processo como este, o Governo esclarecerá. Se a comissão de inquérito ou o parlamento não se sentirem esclarecidos, voltará a pedir esclarecimentos ao Governo", disse o deputado Bruno Aragão, o novo coordenador do PS na CPI, em declarações à TSF.

Nesta sexta-feira de manhã, no Parlamento, a generalidade dos partidos da oposição voltaram a criticar o Governo, sendo que o deputado socialista foi mais cauteloso optando por não se centrar nas aparentes contradições, mas sim no facto de o governo “não se ter recusado a entregar documentos". O que houve, disse Bruno Aragão, foi um pedido da comissão para aceder a um conjunto de documentos, e uma resposta do Governo a alegar que não cabia no objeto temporal da comissão.

Certo é que o processo teve várias contradições ao longo da semana. Primeiro, o Governo recusou enviar documentação por considerar que o que estava a ser pedido já saía do âmbito da CPI, depois alegou que a divulgação do parecer poderia ‘dar armas’ à presidente executiva que foi demitida e vai processar o Estado português. E, esta quinta-feira, o ministro das Finanças revelou que, afinal, não há propriamente um parecer, mas apenas umas trocas de mails e uma deliberação.

Apelos ao primeiro-ministro

Os ministros não têm já capacidade sequer de se coordenarem entre si e de apresentarem versões minimamente coerentes dos factos, há um completo descontrolo naquilo que é o Governo da República portuguesa neste momento”, acusou já esta sexta-feira o líder da Iniciativa Liberal (IL), em declarações no Parlamento, apelando ao primeiro-ministro que “fale com os seus ministros” e “venha dizer ao país qual dos ministros está a mentir”.

Também o líder do Chega, André Ventura, voltou a desafiar o primeiro-ministro a dar explicações ao país sobre este caso, considerando que, se mantiver a confiança nos ministros das Finanças, Assuntos Parlamentares e Presidência, “está a dar respaldo à mentira, à insensatez e ao amadorismo”. O líder do Chega anunciou ainda que o seu partido vai pedir que sejam entregues à comissão de inquérito à TAP “toda a documentação” e troca de correspondência entre os serviços centrais jurídicos do Estado, o Governo e a tutela sobre este caso, argumentando que não acredita que o Governo não tenha “um único documento jurídico” que sustente o despedimento de Christine Ourmières-Widener.

“Tendo em conta a elevada quantidade de ministros envolvidos neste caso, e as várias versões sobre este parecer que afinal não existe, seria importante que o primeiro-ministro pudesse esclarecer esta situação e dizer o que pensa sobre ela”, pediu também a deputada Marina Mortágua, do Bloco de Esquerda. E a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, considerou que o Governo deve “um cabal esclarecimento ao país” sobre estas demissões, considerando que há elementos que têm vindo a público que “são contraditórios” e que “suscitam dúvidas”.

A comunista, contudo, também criticou a "instrumentalização que está a ser feita à comissão de inquérito à TAP, com o único objetivo de favorecer o crime que constitui a privatização” da companhia aérea.

Rui Tavares, deputado do Livre, criticou o Governo por “não se conseguir entender acerca de se teve ou não um parecer adicional acerca da demissão” de Ourmières-Widener e Manuel Beja. E Inês de Sousa Real, do PAN, criticou o “episódio inusitado do parecer da TAP”, que “mais parece uma brincadeira de mau gosto”, e defendeu que devem ser dados “mais esclarecimentos”, em particular através da entrega dos emails sobre este caso à comissão de inquérito à TAP.

A cronologia de uma contradição

Tudo começou quando, no dia 6 de março, Fernando Medina e João Galamba anunciaram, em conferência de imprensa, a demissão do presidente do Conselho de Administração e da presidente executiva da TAP na sequência do relatório da Inspeção Geral de Finanças que considerava ilegal o acordo de rescisão que tinha levado à saída (com indemnização) da gestora Alexandra Reis. Na altura, Fernando Medina afirmou que o afastamento de Chistine Ourmières-Widener e Manuel Beja se equiparava a uma demissão por justa causa, garantindo que estava “juridicamente blindado” na decisão. Christine Widener e Manuel Beja, contudo, alegam não ter sido informados da justa causa quando foram demitidos, com a antiga CEO da TAP a garantir que vai levar o caso a tribunal.

Foi na formulação de palavras de Fernando Medina que a oposição pegou, com o PSD à cabeça, para pedir a fundamentação jurídica dessa decisão. E é aí que começam as contradições. Eis como o governo justificou a recusa em enviar a referida fundamentação jurídica, que começou por ser um parecer formal mas que afinal já não era mais do que um relatório da IGF e emails trocados com os serviços jurídicos do Estado:

1. Depois de a comissão de inquérito ter enviado um requerimento formal ao governo para enviar a documentação, recebe como resposta três comunicados - iguais - de três ministérios: Finanças, Infraestruturas e Presidência do Conselho de Ministros. O argumento invocado era só um: o pedido extravasa o período temporal sobre o qual a comissão de inquérito foi mandata para investigar. “A Resolução da Assembleia da República n.º 7/2023, de 14 de fevereiro, foi aprovada no dia 3 de fevereiro de 2023 para constituição de uma comissão parlamentar de inquérito à tutela política da gestão da TAP SGPS e da TAP, S.A. Nos seus termos, foi delimitado o respetivo objeto (cfr. alíneas a) a g) da referida resolução) e, bem assim, o horizonte temporal (período entre 2020 e 2022)”, indicavam as respostas, em separado, do Ministério das Finanças, das Infraestruturas e da Presidência, ao presidente da Comissão de Inquérito à TAP, todas assinadas a 17 de abril.

“Extravasando o aludido objeto da comissão parlamentar de inquérito e/ou reportando-se a factos posteriores à respetiva constituição, as informações requeridas não recaem no escopo do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 5/93, de 1 de março, na sua redação atual”, continuava a ler-se na explicação. Em nenhum momento, os três ministros usavam a palavra “parecer jurídico”.

2. Dois dias depois, a ministra Mariana Vieira da Silva é ouvida numa audição regimental na comissão de Economia. Questionada sobre o assunto, começa a ensaiar outro argumento (o do “interesse público”), a par do argumento do “horizonte temporal”. "O governo entende que, tendo em conta que os pedidos feitos são todos de factos que aconteceram posteriormente à comissão de inquérito parlamentar, estão fora do seu âmbito porque, senão, estaríamos num caso muito tratado na ficção científica de procurar investigar factos posteriores", começou por dizer a ministra.

Depois, continuou: “Além disso, estando em causa um parecer jurídico, julgamos que a defesa do interesse público e dos interesses do Estado nesta matéria beneficiam de poder não tornar público um conjunto de informação nesta matéria”. Ou seja, além de usar a expressão “parecer jurídico”, a ministra explicava nessa altura que além de o Governo não enviar a documentação porque a demissão era posterior ao horizonte temporal da CPI, também não o fazia porque estaria a zelar os interesses do Estado na sua defesa contra Christine Widener em tribunal.

3. Ao mesmo tempo que Mariana Vieira da Silva era ouvida no Parlamento, chegava às redações um comunicado do Ministério dos Assuntos Parlamentares, de Ana Catarina Mendes, a invocar esse mesmo argumento: o do interesse público. “O parecer em causa não cabe no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito e a sua divulgação envolve riscos da defesa jurídica da posição do Estado. A resposta do Governo à CPI corresponde apenas à procura da salvaguarda do interesse público”, escrevia, admitindo e alimentando, tal como Mariana Vieira da Silva o fizera, a existência de um “parecer jurídico”.

4. Nesse mesmo dia, à tarde, a comissão de inquérito toma a decisão de não acolher os argumentos do Governo para recusar a entrega do alegado parecer. Todos os partidos, incluindo o PS, concordam com a decisão de instar o Governo a enviar a documentação. “A nossa posição é a que tem sido a desde o início: que o senhor presidente, tal como fez em relação a outros requerimentos, possa, junto do Governo, manifestar a pretenção desta comissão” no sentido de aceder aos documentos, dizia o deputado socialista Bruno Aragão. “O formalismo é absolutamente essencial”, insistia, pedindo que se aguardasse então pela resposta que o Governo entendesse dar ao apelo da comissão.

5. Um dia depois, esta quinta-feira, Fernando Medina estava a ser ouvido no Parlamento a propósito de outro assunto, o Programa de Estabilidade, e foi questionado sobre a problemática do parecer que o Governo se recusava a enviar à comissão de inquérito à TAP. E é aí que surge a grande contradição: afinal, “não há nenhum parecer”. "A ideia que se criou [à volta] do parecer, não há nenhum parecer adicional…”, foi dizendo o ministro, explicando que a blindagem jurídica a que se tinha referido era afinal, apenas, o relatório da IGF que apontava para as irregularidades da demissão de Alexandra Reis cometidas pela administração da TAP.

“Os motivos que levam às decisões da demissão do presidente do Conselho de Administração e da presidente executiva da empresa são muito claros, são aqueles que decorrem das conclusões do relatório da Inspeção-Geral de Finanças. Não há um parecer adicional. Se leu o relatório da IGF, o relatório conclui pela existência de uma ilegalidade grave”, disse Medina. Além do relatório da IGF, o que há, continuou Medina, é uma troca de emails com os serviços de apoio jurídico do Estado, a JurisApp, que serviram de suporte à deliberação de despedimento da CEO e do Chairman da TAP.

Foram precisos quatro dias, portanto, para o Governo ter dito que não havia parecer nenhum, depois de quatro dias onde o mesmo Governo ensaiou dois argumentos diferentes para evitar entregar ao Parlamento esse mesmo parecer.

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