Que voz é esta?

Doença bipolar: “Não é possível estar curado, mas é possível estar tratado e fazer uma vida normal"

A perturbação bipolar afeta cerca de 200 mil portugueses e caracteriza-se por variações acentuadas do humor, com crises repetidas ou alternadas de depressão e de «mania». No novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, falamos das causas e dos sintomas desta doença, dos desafios do seu tratamento e do impacto que tem na vida dos doentes e das famílias, com o psiquiatra Ricardo Caetano e o testemunho de João (nome fictício), que há várias décadas sofre desta doença

Uma paixão não correspondida nos últimos anos do liceu arrastou João (nome fictício) para uma depressão profunda. No final da adolescência foi tratado e melhorou, mas a sua vida nunca mais voltou a ser igual.

“Os antidepressivos fizeram o seu caminho e o pior da crise passou, embora ficasse sempre um rasto [dessa tristeza] que me acompanhou ao longo da vida”, recorda, hoje com 73 anos, no mais recente episódio do "Que Voz é Esta?", o podcast do Expresso sobre saúde mental, desta vez dedicado à doença bipolar.

Depois dessa crise, a semente de tristeza que sentia crescer dentro de si desde a infância voltou a manifestar-se algumas vezes, traduzindo-se, de tempos a tempos, em novos episódios de depressão. Até que, aos 35 anos, viveu, pela primeira vez, o outro polo desta doença - a mania, um estado de euforia que tomou conta de si e o deixou esfuziante, como nunca tinha estado. Só aí chegou o diagnóstico: doença bipolar, uma perturbação psiquiátrica grave que afeta cerca de 200 mil portugueses.

Ouça aqui o episódio:

João sentia-se como nunca tinha estado. Alegre, expansivo, enérgico, muito confiante e otimista. Eufórico com a possibilidade de ganhar dinheiro na bolsa, não pensou duas vezes antes de investir, com os piores resultados possíveis. “Tinha criado algumas ilusões que vivi com muita intensidade. Depois, quando a questão se inverteu, caí rapidamente e entrei numa fase depressiva”, lembra.

O diagnóstico da doença bipolar só pode ser feito depois do aparecimento de um primeiro episódio de mania, que frequentemente só ocorre depois de algumas crises de depressão. Por isso, muitos doentes acabam por ser diagnosticados tardiamente, explica Ricardo Caetano, coordenador da Unidade de Internamento de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental e professor de Psiquiatria na Universidade Nova de Lisboa.

2600 internamentos por ano

"Numa crise de mania, a pessoa tem um humor expansivo, às vezes irritável, e um aumento da energia e da autoestima, com algumas ideias de grandiosidade. Está mais expressiva, o pensamento acelera e as ideias fogem umas das outras. Tem tanta energia que não necessita de dormir”, descreve o especialista, adiantando que a redução do número de horas de sono é um dos primeiros sinais deste tipo de crises, durante as quais podem surgir ideias megalómanas ou de perseguição; são frequentes comportamentos de risco como investimentos financeiros irrefletidos ou envolvimento sexual com desconhecidos.

Pela sua severidade e pelo impacto que têm na vida dos doentes, as crises de mania, assim como os episódios graves de depressão, conduzem muitas vezes ao internamento. De acordo com Ricardo Caetano, a doença bipolar é responsável por uma média de 2600 internamentos por ano em Portugal, normalmente por períodos longos, acarretando um custo de cerca de 9 milhões de euros para o sistema nacional de saúde.

Neste episódio do podcast "Que Voz é Esta?", o psiquiatra Ricardo Caetano explicou as causas e sintomas da doença bipolar
Ricardo Lopes

Para evitar que as crises de depressão ou mania se instalem de forma mais intensa e duradoura é fundamental que o doente e a família mais próxima estejam atentos aos sintomas, sabendo identificar precocemente os primeiros sinais de cada um desses estados, para que a medicação possa ser de imediato corrigida.

Mas sendo caracterizada por dois polos opostos, esta perturbação levanta grandes desafios do ponto de vista do tratamento, sobretudo durante as crises de depressão. "Temos de ter muito cuidado porque a introdução dos antidepressivos pode levar àquilo que se chama uma viragem para o outro polo”, diz o especialista.

A carga dos genes e o peso da vida

A doença bipolar é uma das perturbações psiquiátricas com maior componente hereditária. Pessoas com familiares diretos com doença bipolar, como João, têm uma probabilidade muito maior de vir também a sofrer dela. Podem nascer com essa predisposição genética, mas os eventos de vida, nomeadamente traumas na infância, constituem um fator importante no efetivo aparecimento da doença.

Relativamente ao prognóstico, Ricardo Caetano explica que "não é possível estar curado, mas é possível estar tratado e fazer uma vida normal", desde que os doentes cumpram a medicação e mantenham um acompanhamento médico regular e hábitos de vida saudáveis, especialmente no que diz respeito à higiene do sono.

Ainda assim, só menos de 20% dos doentes conseguem estar mais de cinco anos sem sofrer nenhuma crise. João faz parte desta minoria. Depois de ter sido internado no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental já depois dos 50 anos, com uma depressão grave e pensamentos suicidas, não tem qualquer crise há cerca de uma década.

“Hoje sinto-me mais estável. Não digo que estou incólume, mas será muito pouco provável que volte a ter uma crise”, acredita.

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

Lançado em maio, “Que voz é esta?” é um podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, falamos de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico.

O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.



Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: JBastos@expresso.impresa.pt

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