Joana Manuel (parte 1): “O nosso silêncio não nos vai proteger. Escolho falar. As fronteiras dos países e dos corpos não fazem sentido”
É uma prestigiada atriz de teatro e a voz de inúmeras lutas sociais. Enquanto ativista participou na campanha pela legalização da IVG, deu a cara pela igualdade no casamento, pela despatologização das pessoas trans e integrou o grupo inicial que convocou a manifestação “Que Se Lixe a Troika — Queremos as Nossas Vidas”, de 15 de Setembro de 2012. Ouçam-na nesta conversa em podcast com Bernardo Mendonça
Há mais de uma década, uma intervenção de Joana Manuel numa conferência em que falou da desesperança de uma geração precária, viralizou no Youtube com milhares de visualizações. Este ano, a atriz protagonizou no teatro a extravagante matriarca 'Mortícia' no musical “A Família Adams” e prepara-se para participar numa nova série da Netflix. Apesar das críticas ao atual Governo, e da precariedade da profissão, Joana deixa claro: “O teatro salvou-me a vida!”
Joana Manuel é atriz, cantora e preparadora vocal. Decidiu-se pela ‘teatra’ para viver outras vidas e canta desde que se lembra de ser gente.
Nasceu em Oeiras no final dos anos 70 e conta que o seu apelido se deve ao seu avó Zé Manel, porque o seu pai vem de uma longa linhagem de alentejanos sem nome de família e identificados com a profissão de “trabalhador”; que no Baixo Alentejo é como quem diz, “fome”.
Do lado Pereira dos Santos deixa claro que “não há engano”, cristãos-novos do Alentejo, que é como quem diz, “marranos”, que é como quem diz, “judeus que não foram embora com os pais do Spinoza.”
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Do lado dos “trabalhadores”, Joana anda a ver se tira a limpo a origem, cheira-lhe a ramo cigano (aliás, a sua amiga Serena, orgulhosa, assegurou ao ver uma foto do seu pai que ela era tão bonito que de certeza que era cigano).
O lado da mãe de Joana vem da zona de Castelo Rodrigo, na Beira Alta, e a maior parte dos ramos emigrou, sobretudo para além dos Pirinéus.
Ou seja, Joana é uma portuguesa “originária” com muitas aspas, porque é também isso que para Joana “português” quer dizer: “emigrámos para todo o lado e não somos brancos em parte nenhuma do mundo senão nos discursos dos aldrabões que andam a papar votos pra ver se nos comem as papas (e os serviços públicos) na cabeça.” Palavras suas.
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Em 2013 uma intervenção de Joana Manuel na Conferência Portugal Soberano, sobre os desafios dos jovens, a precariedade e emigração - em que falou da desesperança de uma geração, e recordou a vida difícil dos pais e dos avós - deu muito que falar, e viralizou no Youtube com milhares de visualizações. O que mudou no país desde aí? Esta questão é-lhe colocada.
Joana é formada na Escola Superior de Música de Lisboa, no Conservatório e no Hot Club, chegou mesmo a ser membro do Coro Gulbenkian, mas afirmou-se no teatro onde tem um longo e notável percurso, além de outras tantas participações na televisão e no cinema.
Este ano, Joana Manuel esteve em cena com o espetáculo musical “A Família Adams”, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, onde deu vida à matriarca e excêntrica Mortícia Adams, numa encenação de Ricardo Neves-Neves.
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Ao longo do seu caminho, Joana Manuel trabalhou com muitas companhias e encenadores, durante quase uma década fez parte do elenco do Teatro Nacional de São João, no Porto, mas se tivesse de escolher uma família, Joana contou-me que a chamaria sempre de Praga:
“Como em ‘Teatro Praga’, como em praga de gente que não anda cá para desperdiçar o tempo, o coração, os neurónios e o resto para o qual temos nomes vagos e conceitos extra-razão pura e binária.”
A propósito, Joana Manuel confessa que tem um …ódiozinho no seu coração especialmente devotado ao filósofo e físico francês René Descartes, o pai da filosofia moderna e da famosa conclusão “Penso, logo existo”.
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Joana chega a explicar melhor esta sua irritação e outras tantas onde inclui “todo o tipo de palhaços e bobos da corte, que, convenhamos, são os únicos que se safam. E é também por isso que there’s no business like show business...”
Quem são os palhaços e bobos da corte de serviço que mais lhe mexem com os nervos? Joana responde.
Neste seu caminho, Joana Manuel tem feito política e costuma preferir manter os currículos - como ela própria diz - “saudavelmente separados”.
Isto, para depois acrescentar: “como se as minhas redes sociais não fossem explícitas o suficiente para me cortar as vazas profissionais.” Palavras suas. Depois encolhe os ombros ao que acha ser uma inevitabilidade.
Uma atriz que tem voz política é ainda uma ameaça para as estruturas e está sempre em risco de ficar fora de cena?
Mas o teatro, e a arte no geral, não é em si um ato político? Com tantas adversidades no apoio à Cultura, qual o gatilho que a leva a continuar a representar? Estas perguntas são-lhe também colocadas nesta primeira parte da conversa.
Importa dar conta que Joana Manuel foi um membro bastante ativo da direcção do Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músico, também conhecido por Cena-STE, mas como a Joana afirma: “Também sou gente e, por isso, estou em licença sabática, porque durante a pandemia parecia mesmo que íamos todos e todas juntos e agora já se dispersaram outra vez.”
Em todo o caso, Joana deixa o recado que espera “que se dispersem como sementes …e não só como átomos…”
Recorde-se ainda que Joana participou na campanha pela legalização da IVG, deu a cara pela igualdade no casamento (e, para isso, encenou e protagonizou um beijo mediático com outra mulher frente à Assembleia da república, ambas vestidas de noivas), isto entre outras lutas da comunidade LGBTQIA+ - nomeadamente a da despatologização das pessoas trans - e integrou o grupo inicial que convocou a manifestação “Que Se Lixe a Troika — Queremos as Nossas Vidas” de 15 de Setembro de 2012…. bem como os vários grupos alargados que convocaram as manifestações seguintes, até Outubro de 2013.
Joana confessa ainda que tem a mania de tentar ensinar a toda a gente a estrutura da letra da Grândola, para que a malta deixe de se espalhar recorrentemente ao comprido na segunda estrofe.
Embora Joana dê conta que já não aguenta ‘manifes’ em modo terapia de grupo, repetindo as mesmas cantilenas, quando na sua opinião já podíamos começar a perceber que gritar “somos muitos muitos mil, etc” não nos livra de apanhar na boca à porta de um teatro no 10 de Junho…” Palavras suas.
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Ainda assim, todos os anos junta-se ao desfile do 25 de Abril, e lá está ela a descer a Avenida da Liberdade, de cravo na mão. “If you wanna kill me I'll be there.”, atira Joana.
A atriz mantém-se cética com o rumo das coisas, e está certa que “o papá e a mamã das instituições não são o que nos vai safar.” Afirmando-se mesmo pessimista como o filósofo italiano Franco ‘Bifo’ Berardi, o tal que considera que “a espécie humana não sobreviverá a este século”.
Um pensador que apesar de assumir ter perdido a esperança, é da opinião de que “temos de criar as condições para a alegria e a solidariedade durante a agonia…”
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Joana usa menos floreados do que ‘Bifo’ e acha mesmo que “estamos fritos; a não ser que aconteça algo” - e ninguém sabe ainda o que é e que forma poderá ter esse “algo”, mas segundo Joana estará intimamente relacionado com “o encarar dos nossos traumas, particulares e coletivos, presentes e inter-geracionais, e com beber copos relaxadamente com todos os nossos demónios.” Estaremos preparados para esse brinde interior dos infernos?
E assim Joana diz que a única coisa que tem mesmo certa é que “o nosso silêncio não nos vai proteger”, como escreveu a Audre Lorde, e que “calados vamos morrer na mesma… ”
E que, parafraseando a personagem Sheldon Cooper do “A teoria do Big Bang”, afirma que a Identidade é uma ‘heartless bitch’.
Além de tudo isto, Joana escreve por vezes uns textos. É de prosa danada e afiada. “Umas merdas”, diz ela. E gosta muito de ler em voz alta. E em voz baixa também. E adora cantar. E terá a oportunidade de fazer tudo isso mesmo neste podcast. Ouçam-na.
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Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Tomás Almeida. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.