A Beleza das Pequenas Coisas

Ricardo Pais (parte 1): “O ego atrapalhou-me no caminho. Mas aprendi com as mortes que a vida é precária e curta. Não vale a pena insuflar”

Ricardo Pais acaba de cumprir 80 anos e garante nunca ter ambicionado ser um homem do seu tempo, embora considere que “antigamente o futuro era habitado com mais esperança” O seu percurso é marcado pela direção de grandes instituições teatrais, com uma fugaz passagem pelo Teatro Nacional D. Maria II e uma forte presença no Teatro Nacional São João, do Porto. Isto além dos seus múltiplos papéis artísticos, enquanto encenador, ator e professor. Ricardo afirma que, agora que vive mais fora de cena, está a tratar da sua cabeça e a dedicar-se ao novo tempo, depois das sobras, sem grandes saudosismos ou pretensões. Ouçam-no nesta primeira parte da conversa com Bernardo Mendonça

João Ribeiro

Sonoplasta

Ricardo Pais (parte 1): “O ego atrapalhou-me no caminho. Mas aprendi com as mortes que a vida é precária e curta. Não vale a pena insuflar”

Nuno Fox

Fotojornalista

Ricardo Pais considera-se um “insatisfeito bem disposto“, com um amor que lhe atravessa a vida inteira, o Teatro. Numa vida inteira de aplausos, criações e bastidores, sentiu-se mais amado ou desamado e incompreendido?

“Vivi na ideia de que era desamado. Uma forma de inflacionar a autoestima, convencido de que era especial. Caganças de miúdo de teatro.”

Nuno Fox

Conhecido pelo perfeccionismo e pela grandiosidade cénica, por vezes feérica, dos seus espetáculos, Ricardo abre a cortina sobre si e sobre uma certa obsessão:

“Luís Miguel Cintra criticava-me por ter uma obsessão por ser amado. Por querer muito ser gostado. Pensei muito sobre isso. Ele tinha razão. Mas ninguém vai para o teatro que não seja para ser amado. Dos mais geniais, aos mais medíocres ou mal dispostos!”

Nuno Fox

Ricardo Pais acaba de cumprir 80 anos, afirma que encenou a festa de aniversário como um grande espetáculo, com todos os detalhes pensados, como numa grandiosa encenação. E revela que pensou com o mesmo rigor, a mesma minúcia, a forma como será a sua última despedida. Já depois de partir desta vida.

Pais reafirma que nunca ambicionou ser um homem do seu tempo, seja lá o que isso quer dizer, sabendo – como Ionesco – que “quem quer ser do seu tempo já está ultrapassado”.

Nuno Fox

Mas, por outro lado, será que é possível escaparmos disso, da marca indelével da época em que fomos a nova geração que abriu caminho, pontes e novas linguagens? A pergunta é-lhe colocada.

A terra onde Ricardo nasceu tem o curioso nome “Maceira-Liz”, uma espécie de paraíso industrial plantado em Leiria, embora a maioria das pessoas julguem que é natural de Viseu, onde passou a adolescência. É possível que haja também quem o considere natural do Porto, pela marca cultural e teatral que deixou na cidade Invicta.

Por caminhos tortos, Ricardo Pais estudou Direito em Coimbra, mas, por sorte, conheceu o argentino Victor García, integrou o CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e livrou-se do Código Penal. E começou a aprender outros códigos, os do teatro.

Nuno Fox

Em 1968 cruzou a fronteira para fugir à tropa, passando a jovem refratário, para não ser enviado para a Guerra Colonial. E assim, até ao 25 de abril, viveu exilado com a mulher Regina, em Londres, para tentar o caminho como ator, mas acabou por se formar no Drama Centre como encenador.

Terá sido por essa altura que percebeu que tinha a obsessão pelo detalhe, assim como pela beleza, pela verdade na arte, pela palavra que chegue a todos e por querer fazer tudo, tudo bem feito.

Em terras de sua majestade Isabel II, mas também em terras de suas majestades das artes: Hitchcock, Virginia Woolf ou Elizabeth Taylor, Ricardo Pais foi guia registado no London Tourist Board, com domínio em vários línguas, passeou turistas pela National Gallery, mas também trabalhou na cozinha dos restaurantes londrinos, atividades que foram para si “experiências fundadoras de liderança e humildade”.

E como nesta vida, não há só uma verdade e somos todos uma perfeita contradição, consta que foi em Inglaterra que um amigo lhe disse que ele “não sabia o que é a humildade”.

Como tal, “devia mandar”. Ricardo explica neste podcast esta vocação para liderar, que vem de sempre. E de como se considerou, com alguma provocação, “o maior”.

“Faço sempre essa rábula. Tenho tão bem a noção da pequenez de tudo, que francamente só posso dizer isso com humor.”

Nuno Fox

O seu percurso é fortemente marcado pela direção de grandes instituições teatrais. Teve uma fugaz passagem pelo Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e uma permanência desassossegada e marcante no Teatro Nacional São João, no Porto. Aqui reafirma que foi um “triste acidente de percurso” a experiência na capital. E deixa a ‘boutade’.

“Não gosto de Lisboa por princípio. A arrogância prevalece na capital. Até há uns anos Lisboa era infinitamente mais provinciana do que o Porto ou qualquer outra cidade.”

Mas resumir o seu percurso às direcções de teatros é dizer pouco do tanto que fez nos seus múltiplos papéis e cargos no mundo artístico.

Uma das suas assinaturas foi a encenação de grandes clássicos da dramaturgia universal e o espetáculo D. João (2006) levou a imprensa italiana a classificá-lo como “o expoente máximo de uma geração culta de encenadores europeus”.

Nuno Fox

E não foi caso único da chamada de atenção da crítica internacional para os seus espetáculos.

Ricardo Pais gosta de ver-se como “encenador de música”, que lhe deu fôlego e inspiração para um sem fim de imaginários cénicos.

Além disso é um fazedor teatral e para ele expressões como “gestão cultural” ou “subsídios teatrais” em vez de investimento causam-lhe uma certa ‘comichão alérgica’…

Atualmente Ricardo olha com desconfiança para a nova pasta da Cultura que divide Ministério com o Desporto e a Juventude. E considera haver “muitos políticos” que não vão ao teatro e não se interessam minimamente pela Cultura. Um país que não trata bem a cultura e os seus artistas o que é? É-lhe perguntado.

“Está mal a forma como o sistema de subsídios está montado. Quanto a mim é feito de uma forma completamente repressiva, burocrática, no pior e mais quase kafkiano sentido do termo.”

O nome de Ricardo Pais está ligado a uma certa marca visual, a um certo aparato cenográfico, plástico, e feérico, sem nunca desinvestir no que considera essencial: A palavra, a voz, a língua.

O que o move são os “textos-textos que dizem coisas-coisas”. Como quando encenou dois Hamlet’s – um em 2002, outro em 2004 – um mais canónico, outro mais alternativo.

É atribuído a Ricardo Pais a refundação em Portugal do conceito de teatro nacional, ao erguer o Teatro Nacional São João, sempre preocupado com tudo o que envolve um teatro: desde a gestão da bilheteira à estratégia de comunicação e ao plano editorial.

Ricardo gosta de nadar fundo em todas as águas do Teatro, até já cantou em palco “o Homem Fantasma”, de Sérgio Godinho, e considera-se “diabolicamente exigente.”

Depois da saída de cena no Teatro Nacional São João, há mais de dez anos, continua a ser um diretor fantasma?

Sou muito acarinhado. Tenho uma boa relação com todos os diretores que se seguiram. Por outro lado, há uma fantasmatização do meu universo artístico em certos criadores. Imitam-me. São más cópias. Isso inquieta-me muito. Não se libertam de mim, desse fantasma [que represento para eles.]”

Neste podcast é recordado que em 2000, no mesmo ano em que estreava a peça “Madame” num texto inédito de Maria Velho da Costa, e que juntou em palco duas divas do teatro português e brasileiro: Eunice Muñoz e Eva Wilma Ricardo Pais interpretava no cinema a personagem de Marcello Caetano, o último chefe do governo do Antigo Regime, no filme “Capitães de Abril”, realizado por Maria de Medeiros. Curiosamente, muitos anos antes fora seu aluno de direito.

“Recordo-me bem dele num dos auditórios da Faculdade de Direito e de como caminhava, com uma posição pélvica ligeiramente projetada, inclinada. Tentei fazer o mesmo no filme. Não tenho o mesmo corpo, obviamente. Aliás, isso foi um golpe rude na minha autoestima sexual, pensar que era parecido com o Marcello Caetano, porque eu achava que era a denegação do sexo ou do desejo.”

Noutro palco, importa referir o papel de Ricardo Pais enquanto professor na Escola Superior de Cinema, no Instituto Politécnico de Viseu e na Universidade Católica, e que uma das maiores qualidades e predicados que lhe é dirigido é a forma apaixonada como dirige atores, como ama as suas equipas, e como gere com carinho essas equipas e as motiva para a criação conjunta: sejam criativos, intérpretes ou técnicos.

Valerão esses elogios mais do que os tantos prémios, medalhas, condecorações e distinções que recebeu? A pergunta é feita neste podcast.

Aos 80 anos, como se relaciona Ricardo Pais com a passagem do tempo? É tudo demasiado veloz como numa peça de teatro, que sai de cena e fica apenas na memória de quem a viu e viveu? Como gere atualmente a sua eterna inquietação e alguma solidão?

E como se relaciona com o teatro atual, contemporâneo, que desbrava novos caminhos e que será a memória do futuro?

Será que se revê na famosa frase do comediante alemão Karl Valentin, que dizia que “antigamente o futuro era melhor?”

Noutro campo, no campo político, como assiste Ricardo Pais às ‘teatradas’ que têm acontecido na Assembleia da República e nas campanhas para as próximas eleições que se avizinham?

E, já agora, chegado aos 80 anos, com uma vida tão longa e tão cheia, se tivesse que escolher um momento forte da sua infância ou adolescência para o início de um filme ou de uma peça de teatro, que cena escolheria? A conversa em podcast com Ricardo Pais começa com estas respostas.

Nuno Fox

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate