Isabela Figueiredo: “Escrevo sobre assuntos que partem da minha ferida aberta. Eu enfio-me dentro dos meus livros"
Com o novo romance, “Um Cão no Meio do Caminho”, a escritora Isabela Figueiredo aponta desta vez o foco a um dos grandes males da vida moderna, a solidão que mora nas periferias dos grandes centros. Desta vez, as personagens estão menos coladas a si, mas continuam a dar corpo e voz a muitas das feridas a que Isabela sempre regressa para curar. “A escrita ajuda-me muito a fazer terapia.” E, neste podcast, a escritora assume que as suas obras não têm escapado às discussões “woke” no meio literário internacional. “No meu livro “A Gorda”, se lhe fosse amputado o título e todas as referências a ‘gordas’ desapareceria como obra. E também percebo que ofende as pessoas quando leem “os pretos” no Caderno de Memórias Coloniais. É uma questão que me colocam muito em França e na Alemanha. Mas escrevi-o com olhar crítico. Não posso amputar a História do que existiu, do que foi. É uma ginástica difícil.” Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” com Bernardo Mendonça
Passaram dois anos desde a primeira vez que a escritora Isabela Figueiredo esteve à conversa neste mesmo podcast. Nessa altura acabara de lançar o romance premiado ‘A Gorda’ e afirmou: “Sempre me vi como imprópria. Anormal. Desadequada.” Agora com novo romance, ‘Um Cão no Meio do Caminh’, editado no final de 2022, escreve sobre um dos grandes males da vida moderna, a solidão, e como um amor mal curado pode ser uma dor eterna. Uma escritora escreve melhor e com mais verdade e profundidade quando escreve sobre as suas feridas, mesmo dando-lhes outros nomes, outros lugares, outros contextos? Isabela responde a esta questão logo no início deste episódio.
Isabela Figueiredo tem como nome verdadeiro Isabel Maria Figueiredo de Almeida Santos, e inspirou-se no nome faiscante da atriz Isabela Rossellini, para a sua identidade literária. E afirma-se algo “punk” neste país dos brandos costumes. Sobre isto, chega a afirmar neste podcast: “Contra todas as minhas expectativas o meu lado ‘punk’ é apreciado. A minha autenticidade e lealdade para com os outros e a minha consciência é apreciada. Sou muito amada pelas pessoas apesar de dizer tudo sem filtros. Porque sou o que podem ver e ler.”
Isabela tornou-se logo um nome incontornável da literatura lusófona quando lançou em 2009 o livro “Caderno de Memórias Coloniais” num ajuste de contas com a sua memória e a narrativa suave do pós-colonialismo. E, nessa obra, assumiu a relação amor-ódio com o pai, que foi capaz de ações que ela condena. Em 2016 a escritora Isabela Figueiredo voltou a dar que falar com o primeiro romance, “A Gorda”, uma bomba literária distinguida com o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues e que nos levou a calçar os sapatos de uma mulher com excesso de peso que um dia decide reduzir o tamanho do estômago. Uma obra de autoficção que é uma declaração de dor, de perda e solidão e que afinal tem muito de si, já que Isabela escreveu o livro logo após se submeter à mesma cirurgia, o que a levou a perder mais de 40 quilos.
Desta vez, a personagem principal é José Viriato, um homem de 50 e poucos anos, sempre acompanhado de sacos e dos seus cães, que vive com muito pouco e anda aos caixotes durante a madrugada para vender o que outros deitaram fora. Um recoletor de lixo que vive o luxo do tempo livre sem obrigações ou prisões laborais ou materiais. E que é espiado por uma vizinha misteriosa, conhecida no café do bairro como “a matadora”, que foi parar à Margem Sul por um acidente com um amor falhado, e que vive soterrada de objetos em casa.
Uma febre súbita aproxima estas duas ilhas e muda-lhes o horizonte. Aqui se fala sobre como os amores mal curados são dores eternas. E aborda-se um dos grandes males da vida moderna, a solidão.“A solidão serve os monges, não quem está no mundo.”, pode ler-se neste seu livro.
E sobre José Viriato, a personagem marginal a quem Isabela dá voz e aponta o foco, afirma: “Não há pessoas com vidas menos importantes. As pessoas que andam a apanhar lixo não têm uma vida menos importante do que eu, nem têm sentimentos menos valiosos do que os meus.” E ainda acrescenta: “Temos preconceito com as pessoas solitárias que dão comida aos pombos, aos cães, e que aguentam o mundo. E que permitem que ações belas e generosas aconteçam. Estou muito atenta aos loucos de Lisboa. Vejo-os fazerem, às escondidas, atos que são verdadeiras benesses para a humanidade. Eles escondem-se para fazer o bem a outras criaturas. E quero dar-lhes visibilidade.”
Antes de viver da literatura, e de se reconhecer escritora, Isabela foi jornalista, no DN, e depois professora no secundário. E aqui recorda esses tempos e o que mais e menos gostou.
Também se fala do facto de Isabela se ter mudado recentemente com as suas duas cadelas, Serrinha e Marisol, para uma aldeia no Alentejo numa fuga ao barulho das obras, embora mantenha a morada em Almada. E comenta-se o facto destas companheiras de quatro patas, não só lhe fazerem companhia, como serem normalizadoras da sua existência e protegerem-na dos olhares exteriores. Uma mulher sozinha é ainda uma ameaça neste mundo patriarcal, mesmo 49 anos depois do 25 de abril? E o seu lado “punk”, tem refinado e aumentado com o tempo? Ou suavizado? Pode ouvir as respostas neste episódio desassombrado e algo errante, como são as melhores conversas.
A escritora ainda refere neste podcast os abusos e assédios que sofreu na infância e fase adulta, revela as suas preocupações sobre o atual cenário político e os temas sociais que mais a inquietam.
Revela depois as músicas que a acompanham, lê um excerto deste seu último romance e de um outro livro que lhe agrada muito. E revela um pouco sobre o novo romance que vem aí.
Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de António Pedro Ferreira. A sonoplastia deste podcast é do João Ribeiro e teve o apoio de Salomé Rita.
Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!
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