A Beleza das Pequenas Coisas

Daniel Sampaio: “Este discurso da Igreja velha não é empático. É o mais terrível, o “pedimos perdão” não se sente que é sincero”

Seis semanas depois da apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, são muitas as dúvidas sobre a estratégia que a instituição tomará depois do terramoto de denúncias. O médico psiquiatra Daniel Sampaio, que integrou a Comissão, aponta críticas ao clericalismo no poder e espera mudanças. "O discurso da Igreja velha não é empático. Talvez seja a característica mais terrível. O discurso é “pedimos perdão”, “vamos indemnizar”, “vamos estar atentos”, mas não se sente que é sincero. O que se traduz numa ausência de medidas." E acrescenta uma inquietação? "Que apoio psicológico as vítimas estão a ter? Zero. Ninguém fala das vítimas desamparadas.” Ouçam-no no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Passaram seis semanas desde que o relatório sobre os abusos sexuais de crianças na Igreja foi tornado público pela Comissão Independente e o terramoto no interior da Instituição parece estar a começar. Isto apesar da grande desilusão que foi a Conferência de Imprensa, em Fátima, ao ser apresentada uma mão cheia de nada depois de se serem dadas a conhecer as conclusões.

Recorde-se que houve 512 testemunhos validados de vítimas sexuais de padres. E apurou-se que a rede de vítimas abusadas poderia chegar a “um número mínimo” de 4815 pessoas. Destas, 25 seguiram para o Ministério Público abrir investigações. Um número considerado baixo por esta Comissão, por razões de prescrição e anonimato, e que se considera ser apenas a ponta do icebergue. Até porque a maior parte dos testemunhos de abusos vieram apenas de zonas do litoral do país, com pessoas com mais escolaridade.

Há um Portugal real, mais rural e interior, ainda não foi ouvido? O médico psiquiatra Daniel Sampaio, que integrou esta Comissão Independente, não tem dúvidas sobre essa realidade e chega a afirmar neste episódio em podcast: “Para evitarmos isso propusemos que os senhores padres no final da missa fizessem um apelo ao testemunho. E não foi feito. Foi-nos dito por um bispo: ‘Nós não podemos ser arautos dessa notícia. Nem pensem fazer isso.’”

O que é que isso traduz? - foi-lhe de imediato perguntado. “Uma cultura de silenciamento do problema. Seria uma coisa fundamental no interior do país, em zonas rurais, onde as pessoas não têm muitos estudos, haver o senhor padre a dizer “está aqui este número, telefonem.” Enviámos folhetos para todas as dioceses e nem todas os distribuíram. O estudo poderia ter sido mais significativo do ponto de vista do número, se tivesse havido mais empenhamento da Igreja no apelo ao testemunho. A Igreja velha não quer que se fale no assunto e quer desvalorizar o relatório. Não compreendo por que é que não está já formada uma nova Comissão para dar continuidade, há pessoas disponíveis para esse trabalho.”

Importa dizer que é preciso ter um estômago forte para ler os relatos dos abusos a crianças e jovens, a maior parte deles continuados, que constam neste relatório e perceber como terá havido um alegado encobrimento e silenciamento por parte de padres e bispos, ao longo de décadas e décadas, criando traumas e feridas para a vida de tantas pessoas.

Sampaio deixa entrever que esta atitude defensiva da Igreja é sintoma de que há bispos implicados no encobrimento de padres abusadores de crianças e jovens. “Não temos a menor dúvida. Os senhores bispos sabem que nós sabemos que eles sabem muita coisa. Houve vítimas que falaram connosco presencialmente e que tinham exposto a situação a bispos e a sua posição não foi validada por eles. Fui psiquiatra durante muitos anos num hospital público, vi situações muito difíceis, mas nunca vi tanta gente com tamanha intensidade de sofrimento.”

Isto mesmo depois do Papa Francisco ter declarado tolerância zero a estes abusos que considera uma “monstruosidade”, e mesmo depois de serem conhecidos os relatos terríveis de centenas de testemunhos de abusos a menores ocorridos na Igreja desde os anos 50 até hoje.

O próprio Presidente da República declarou-se desiludido com a resposta da Conferência Episcopal Portuguesa ao relatório sobre estes abusos sexuais e defendeu uma reparação das vítimas, considerando que foi tardia a posição da Igreja e que "ficou aquém em todos os pontos que eram importantes".

E que apoio psicológico estão a ter as centenas de vítimas que abriram o baú destes traumas ocorridos no passado? Quem as ampara? E a Igreja estará disposta a indemnizá-las?

Daniel Sampaio defende uma estratégia urgente de apoio psicológico e psiquiátrico às vítimas e futuras indemnizações.

Estará a Igreja portuguesa preparada para ir até ao fim e até ao fundo deste gigante Iceberg de atos pedófilos? E estará disposta a assumir as culpas e a abdicar de um certo poder e, se for preciso, afastar não só padres, como bispos que terão encoberto e perpetuado estes crimes? Que bastidores do processo de investigação e recolha de depoimentos de abusos mais espantaram, surpreenderam e chocaram Daniel Sampaio? E o que espera da nova Comissão que a Igreja promete criar?

Estas e muitas outras perguntas são lançadas neste episódio ao médico psiquiatra e escritor Daniel Sampaio, que foi o rosto principal do serviço de psiquiatria do Hospital Santa Maria durante anos, irmão do antigo Presidente Jorge Sampaio, que já escreveu mais de uma dezena de livros, foi distinguido com a Ordem do Infante D. Henrique, e tem feito um grande trabalho junto dos mais jovens.

O último livro que publicou foi sobre a maior batalha que enfrentou até hoje, quando esteve internado durante 50 dias, depois de ser infetado com a Covid-19 e viu a morte de perto. O que mudou em si, depois desta experiência?

Daniel fala desse marcante momento, navega por muitos outros, e aborda a temática dos amores de longa duração e a receita mágica para que perdurem no tempo, apesar das inevitáveis crises.

E ainda nos dá música e cita de cabeça um poema de Luís Vaz de Camões.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. A sonoplastia deste podcast é de Salomé Rita e João Martins.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas