Ana Nunes de Almeida e os abusos na Igreja a rapazes: “A mulher está configurada na Virgem Maria, na nossa mãe. Não se toca nesse corpo”
No podcast As Mulheres Não Existem desta semana, Carla Quevedo e Matilde Torres Pereira entrevistam Ana Nunes de Almeida, a mulher que tem estado no olho do furacão da opinião pública no rescaldo da apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Com o nome “Dar voz ao silêncio”, é um documento fundamental para a compreensão de um fenómeno que só agora começa a ser olhado de frente
Se, na família, o abuso sexual de crianças atinge sobretudo raparigas, no seio da Igreja são os rapazes a maioria das vítimas. Na família são pais, tios, avós e irmãos os abusadores. No contexto da igreja, a vasta maioria são sacerdotes. Há ligação entre homossexualidade e pedofilia? “Zero”, sublinha a socióloga Ana Nunes de Almeida. O fim do celibato é uma solução? Dificilmente. É a socialização num meio predominantemente masculino que fragiliza a afetividade e sexualidade de um grupo social confinado, há muito, à “instituição total”, citando um conceito do sociólogo Erving Goffman.
Entrevistada no podcast As Mulheres Não Existem, Ana Nunes de Almeida reflecte também sobre as conclusões do relatório francês aos abusos sexuais na igreja e traça uma importante análise à figura feminina no contexto eclesiástico, que pode ajudar a compreender a maior incidência deste tipo de abusos sobre rapazes vulneráveis: “A mulher é uma representação, para muitos, da pureza e intocabilidade”. “A mulher está configurada na Virgem Maria, na mãe, na nossa mãe. Não se toca nesse corpo. Por outro lado, também se associa [o corpo da mulher] ao pecado original. É um corpo desconhecido.”
NUNO BOTELHO
Depois de mais de um ano, foram validados 512 testemunhos de abuso e estimados um “número potencial de 4.815 vítimas”. A estimativa é “grosseira”, afirma a socióloga. “A sensação que tínhamos era tremenda, quando nos chegava um caso, parecia que estávamos a levantar uma porta, e por baixo escondia-se um terreno…um lamaçal de perversidade e sofrimento”, descreve.
Centrando a conversa também na convidada, ficámos a conhecer alguns episódios marcantes no seu percurso impressionante. Já era casada e tinha um filho quando se dirigiu a um seu professor da Universidade de Genebra para lhe propôr fazer a tese de doutoramento em sociologia na sua “alma mater”. A resposta, para seu grande choque e indignação, foi uma pergunta: “Pensa ter mais filhos?”. Por ser “Portuguesa, mulher e mãe”, sentiu uma discriminação atroz por parte daquele que era considerado na altura o mais eminente sociólogo da família a nível europeu. Anos mais tarde, quando defendeu a tese em Portugal, dedicou-lhe a investigação e enviou-lhe com uma dedicatória: uma fotografia dos filhos - os três.
Tiago Pereira Santos
Houve ainda espaço para falar na socióloga Mirra Komarovsky, pioneira na introdução das questões da mulher na academia. Nas recomendações, um poema de Adília Lopes e uma leitura a partir da Sagração da Primavera de Cecília Meireles.
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