A Beleza das Pequenas Coisas

Isabél Zuaa: "As pessoas dizem 'ah, fez-lhe a vida negra...' Se lhe fez a vida negra, fez-lhe a vida boa. Porque ser negra é bom!"

É uma das atrizes portuguesas mais prestigiadas no Brasil e anda há mais de uma década entre travessias no cinema, dança, teatro e performance. Largamente premiada no grande ecrã, Isabél Zuaa foi este ano distinguida com uma menção honrosa no ‘Los Angeles Brazilian Film Festival’ pelo filme “A Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky. No teatro, as suas co-criações “Aurora Negra” e “Cosmos” trouxeram um novo movimento que aborda a arte como possibilidade de reparação histórica e agitação de consciências. “É dever de um artista refletir sobre os seus tempos, como dizia Nina Simone. Em tudo o que faço quero estar com as minhas fragilidades e fortalezas e reverberar com a ficção sobre o presente e futuro para nos libertarmos e curarmos.” Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

A artista multidisciplinar Isabél Zuaa tem dado que falar no cinema brasileiro, mas também no teatro, e faz parte de um movimento de resistência que aborda a arte e os palcos como possibilidades de reparação histórica e agitação de consciências além do estereótipo e da margem a que têm sido remetidas as pessoas racializadas.

No seu trabalho há muito que se dedica à pesquisa de dramaturgias onde corpos e “corpas” negras são protagonistas das suas próprias narrativas e experiências. Caso disso são os espetáculos em que participou enquanto co-criadora e intérprete “Aurora Negra” e “Cosmos”, ambos estreados na sala principal do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e que têm passado por vários outros palcos no país e no mundo.

2021 foi um ano feliz para Isabél Zuaa, já que recebeu vários prémios como melhor atriz: no “Brazil International Monthly Independent Film Festival”, pelo filme “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham as estrelas”, de Sérgio Silva e João Marcos de Almeida, e no “Festival Rima International Awards”, pelo filme "Malandro de Ouro" de Flávio Flamingo.

Este ano foi distinguida com uma menção honrosa no “Los Angeles Brazilian Film Festival 2022” pelo filme “A Viagem de Pedro” de Laís Bodanzky e com “O Novelo” de Cláudia Pinheiro. Também faz parte da “Powerlist 2022” da revista online “BANTUMEN”, como uma das 100 personalidades mais influentes da lusofonia.

O cinema parece mesmo ser o seu nome do meio, mas Isabel conta-nos que durante muito tempo os prémios que recebia serviam, acima de tudo, para se sentir validada. E que tem outros horizontes: “Durante algum tempo sentia que os prémios no cinema eram mais para que a minha família soubesse o que estava a fazer e a dar certo, por mais que não estivesse na novela das oito. Mas quero experienciar ser a vilã ou as trigémeas numa telenovela.”

Isabél Zuaa é a filha mais nova de um casal de origens africanas diferentes. O pai é da Guiné-Bissau e a mãe de Angola. Quando Isa - como é tratada pela família - estava com a família do pai, diziam que era “super angolana”. E quando ia para a família da mãe, diziam que era “super guineense”. Na escola diziam que Isa era africana, em casa diziam que era muito portuguesa. E, na verdade, Isabel Zuáa sempre sentiu muito misturada, de muitos lugares.

Neste podcast, a atriz partilha ainda que na sua infância a reflexão sobre si e os seus era muito negativa, que a narrativa do continente africano a colocava para baixo, com baixa autoestima. E que essa autoestima tem sido recuperada através da literatura, da poesia, da história, da ciência, do teatro. “Lembro-me de ser uma miúda de 3 anos e ouvir ‘ó preta, vai para a tua terra!’ E de perguntar à minha mãe: ‘Mas onde é a minha terra?’ E ela responder-me: ‘É aqui em Portugal, filha!’”.

Assim, durante muito tempo, Isabel dizia que era de um “não lugar”. Mas depois de se mudar para o Brasil, em 2010, para estudar artes cénicas, percebeu que afinal estava num “entre lugar”. E que todas essas culturas se acrescentam, se atravessam e reverberam de forma muito potente em si e nas obras que tem criado. E, meio a brincar, diz de si que é “pretoguesa”.

E fala do poder regenerador de “resignificar“ palavras ou de criar novas. “No movimento negro vamos escurecer o pensamento, para o prazer, para a perspetiva dos nossos corpos (negros). Quando no Brasil se diz que ‘a vida está preta’, a vida está boa!”

Como Isabel conta, a sua história pessoal e ancestral é um verdadeiro “triângulo amoroso” entre África, Europa e Brasil, terras com um passado cheio de feridas e fraturas por sarar. Mas sem nunca perder o sorriso, a esperança, a festa.

“Através da dor pode-se fazer a festa, sempre. Esta é a resiliência que o continente africano tem na base. Imaginemos uma mulher violentada, roubada, saquearam-lhe os diamantes, o ouro, os filhos, os corpos, tudo. E, mesmo assim, ainda consegue levantar-se, dançar, nutrir. Apesar do cansaço ancestral, existe uma resiliência e uma festividade que não nos tiram!”

Crescida no Bairro do Zambujal, em Loures, Isabel já era uma menina de “entre lugares”, como ela me contou. Tanto dançava num grupo do bairro, coreografias de músicas tradicionais ou contemporâneas de Cabo Verde, Senegal ou Angola, como jogava futebol e futsal. Curiosamente tinha o hábito de pintar as unhas de vermelho antes de cada treino. E isso era visto pelos outros como uma contradição. Mas todos nós podemos ser muitas coisas. E as caixinhas do masculino, aspas aspas, e feminino, aspas aspas, foram desde cedo demasiado limitadoras e pequenas para si.

Sobre os racismos e outros “ismos” deixa um exemplo das violências que ainda vive, apesar de considerar ser tantas vezes a única negra em lugares de poder. “Quando ligo para um serviço e ouvem a minha voz, as pessoas são simpáticas. E depois, frente a frente, é outra coisa, respondem com violência. Para alugar a casa é o mesmo. ‘Ah! foi a menina que ligou?’, e depois aquele olhar. O racismo e os preconceitos são por vezes sofisticados na sociedade, mas magoam, são micro agressões e violências quotidianas que nos podem adoecer”

Isabel conta ainda neste episódio que gosta muito de falar de ancestralidade, de astrologia e de terapias holísticas. E que é bem capaz de não assinar um importante contrato se o mapa astral não estiver de feição. Sobre saúde mental chega a partilhar: “É no detalhe em que a saúde mental deve ser cuidada, com prevenção. Faço acupuntura, cuido da alimentação, do corpo, e faço terapia para desatar nós, organizar pensamentos e ajudar-me no que quero dizer. No Brasil não conheço nenhum ator que não faça terapia, aqui alguns fazem, outros não.

Mas há muito mais para escutar neste episódio, como os momentos especiais em que Isabél trauteia à capela canções de Ana Moura e Sara Tavares, revelando a belíssima e versátil voz que tem, e lê um manifesto da peça “Aurora Negra”.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos desta vez são da autoria do Nuno Fox. A sonoplastia deste podcast é do João Martins e João Luís Amorim.

Até para a semana e boas escutas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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