A Beleza das Pequenas Coisas

Francisca Van Dunem: “Um ministro não ganha para o que faz. É só para pessoas com um grande amor à causa pública ou que estão no desemprego"

Francisca Van Dunem esteve seis anos no Governo a liderar a pasta da Justiça e enquanto ministra orgulha-se de ter criado mais meios para o combate à corrupção, de ter aliviado as prisões dos crimes mais leves e de ter ampliado o mapa judiciário. Crítica sobre o mediatismo do crime e dos seus protagonistas, confessa que o cargo que ocupou teve uma pesada fatura moral e financeira para si e família.“Honrou-me muito ter passado pelo governo e servir o meu país, mas do ponto de vista financeiro foi uma tragédia.” Aos 66 anos, depois de um notável percurso no Ministério Público, Van Dunem jubilou-se e afirma estar a viver a fase mais “livre” e “feliz” da sua vida, dedicando-se à família, aos livros e ao seu jardim.Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Nas últimas décadas instalou-se uma sensação cada vez mais permanente na sociedade de que há a justiça dos ricos, dos poderosos, dos grandes empresários, dos políticos, com os processos a estenderem-se no tempo, de forma quase obscena - e tantas vezes a montanha de acusações parirem um rato - e depois, depois há a justiça das pessoas comuns, com mão mais pesada e implacável.

Já tivemos juízes corruptos, grandes bancários e empresários corruptos, dirigentes dos principais clubes de futebol corruptos, e até tivemos um primeiro-ministro acusado pelo ministério público de corrupção e que está a ser julgado por branqueamento de capitais e falsificação de documentos. Com tudo isto, há a perceção de que vivemos no faroeste dos ricos e poderosos. Há de facto um problema profundo e sistémico de corrupção no nosso país ou é, acima de tudo, uma questão de perceção e ilusão mediática? E se partirmos do pressuposto que há uma corrupção de fundo, esse é um problema cultural ou o resultado de uma justiça demasiado permissiva, mansa e lenta? Vivemos ainda no país da cunha e do ‘amiguismo’?

Estas foram algumas das perguntas colocadas neste episódio em podcast à ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem, que durante seis anos fez parte do antigo governo de Costa.

E chega a dizer: “Penso que para as pessoas deixou de ser suportável que estes processos [mais complexos] não tenham um desfecho ao mesmo tempo que têm o desfecho as notícias das nove. Estamos a falar aqui de um fenómeno relevante, que é o da mediatização da Justiça. O julgamento mediático é diferente do julgamento da Justiça, porque trabalha com critérios e métodos radicalmente diferentes. E pode chegar a resultados muito diferentes. Mas se me pergunta se há processos que demoram muito tempo, não tenho dúvida nenhuma. É factual.” E ainda deixa a crítica aos juízes que vêm para a praça pública expor conflitos e contendas internas. “A Justiça ganharia se não houvesse tantos estados de alma, desabafos, reações intempestivas”.

Com um currículo invejável no combate ao crime, Van Dunem pertenceu ao Ministério Público onde exerceu durante 30 anos as mais variadas funções. Entre elas foi diretora do DIAP, o Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, e Procuradora Geral Distrital de Lisboa. Quando foi nomeada para o Governo foi notícia por ser a primeira mulher negra a ser ministra num país de brancos costumes. E aqui confessa a surpresa, e expectativas negativas que sentiu de algumas pessoas, por ocupar tão alto cargo político.

“Houve perplexidade por ser uma mulher negra a ocupar determinado lugar. Sinto pena. As coisas não mudam muito. Nem sequer na sua face.

Há semanas foi condecorada com a Cruz de Honra da Ordem de São Raimundo de Peñafort pela Ministra da Justiça de Espanha, que destacou que sem as contribuições dos condecorados “não poderíamos gozar do Estado Social e Democrático de Direito.”

Nascida em Angola, Van Dunem veio para Portugal no início dos anos 70 para tirar Direito na Universidade de Lisboa e aqui partilha os primeiros tempos difíceis para se adaptar a um país demasiado cinzento nos costumes e olhares.

Sobre essa época recorda o episódio traumático para a sua família e para o povo angolano, que aconteceu no MPLA, e passou a ser conhecido como o "27 de Maio", de 1977 - que se traduziu numa purga interna que durou dois anos e na qual terão sido executadas cerca de 30 mil pessoas, segundo a Amnistia Internacional. Entre as vítimas estava o seu irmão, José, e a sua cunhada, Sita Valles. Os seus corpos nunca foram encontrados, nem se sabe ainda ao certo o que aconteceu. E conta que desde aí a sua família ficou perdida num mar de interrogações e num longo purgatório até que se apure a verdade. Esta é uma ferida que não sara enquanto não se souber o que realmente aconteceu, afirma.

Agora que está jubilada, aos 66 anos, Francisca Van Dunem revela estar a viver uma fase feliz e livre, dedicada agora ao pequeno jardim que tem em casa, à família, às suas leituras - “gosto desvairadamente de literatura” - e às viagens. E aqui fala ainda de como conheceu o amor da sua vida, o prestigiado jurista Eduardo Paz Ferreira, conta o que a faz rir e partilha as músicas que a acompanham e chega a ler um excerto de um texto do poeta Jorge de Sena.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos desta vez são da autoria de José Fernandes. E a edição áudio deste podcast é do João Martins.

Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá escrevam-nos, comentem, ativem as notificações, partilhem, classifiquem o podcast e, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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